De acordo com o Michaelis, felicidade significa:
“1.Estado de espírito de quem se encontra alegre ou satisfeito; alegria, contentamento, fortúnio, júbilo:...”
“2. Acontecimento ou situação feliz ou alegre, sorte, sucesso, ventura....” (1).
Eu me deparei ao acaso com o livro do filósofo suíço Botton, quando empreendi uma viagem ao exterior e busquei num determinado momento, um descanso “literário” numa livraria. O livro me chamou a atenção inicialmente pelo título, pois nunca tinha pensado nos edifícios decorrentes dos processos de projeto arquitetônico (e de design) sob o prisma da felicidade. A minha visão, mesmo aquela mais estética foi sempre técnico-funcional e racionalista e impulsionada por um olhar treinado pelas lentes de décadas de pesquisas em Avaliação Pós-Ocupação. Depois, ao contrário de uma maioria dos livros voltados a interessados e estudiosos das cidades e seus edifícios, que têm uma tendência a serem apresentados em grandes formatos e capas duras, Architecture of Happiness era (é) de pequeno formato, capa mole e cabia na minha sacola de andarilha. Tais condições, incontornáveis, me levaram a comprá-lo.
Pude, então, lê-lo não só durante o restante da viagem e ajustar com frequência a minha lente sobre as cidades que percorri em relação a algumas ideias de Botton, mas também persistir com algumas dessas reflexões em minhas pesquisas subsequentes.
Para Botton, se bem entendi, o conceito de felicidade está imbricado especialmente com aqueles sobre o belo (e o seu antônimo, o feio) e também com o tratamento aparente das fachadas e dos ambientes interiores quanto a simetria e a repetitividade de colunatas, a escala e o gabarito da edificação em relação aos espaços abertos, aos diferentes usos desde a habitação social aos palácios e aos templos, além de percorrer diferentes períodos, desde a pré-história, passando pelo renascimento, pelo moderno até o contemporâneo. A existência ou não de elementos decorativos, dos diferentes estilos, do mobiliário mais ou menos funcional e os olhares culturalmente mais ou menos ocidentais ou orientais, podem também estar associados ao tema da felicidade, para o autor, de grande complexidade e diversidade.
Botton, na construção da sua lógica textual, demonstra que no caso das cidades, suas edificações e artefatos, a felicidade é um caldeirão de temas. Botton, na verdade, tem conhecimento da interdisciplinaridade que rege o campo da arquitetura, a qual tangencia a filosofia, a psicologia ambiental, a psicanálise, dentre outros campos. Neste contexto, as relações entre o usuário e os ambientes são sempre o alvo (ou deveriam ser) da boa prática arquitetônica e parte inerente das soluções técnicas alcançadas. E por esta razão, o autor esforça-se em apresentar no livro, incontáveis exemplos de arquitetura (e o design) que buscam o belo e a fruição, seja sob a perspectiva do seu usuário final, do cliente ou mesmo dos observadores passantes ou usuários temporários. Ou seja, o relato contido no livro, pode inspirar não só os profissionais treinados, mas também os observadores leigos.
O autor apresenta uma narrativa teórica bem escrita e agradável, recomendada a todos aqueles que pretendam conhecer cidades, edifícios e elementos escultóricos. Esta narrativa está amarrada a um conjunto de fotos, imagens e desenhos (plantas arquitetônicas e urbanas) muito pertinentes ao que se pretende exemplificar.
Botton divide o livro em seis capítulos. O primeiro, sobre a significância da arquitetura; no segundo discute os estilos arquitetônicos; o terceiro, o fato dos materiais que compõem os edifícios e das esculturas terem sempre algo a dizer e a representar, enfatizando que nada é sem propósito no processo de produção dos objetos arquitetônicos e dos artefatos; no quarto discute os ideais da casa (e não do edifício habitacional) no sentido das memórias afetivas e a sua associação com as ambiências religiosas; o quinto aborda as virtudes das edificações trazendo Palladio para o centro do texto, no que se refere a conceitos como ordem, simetria e complexidade, equilíbrio e coerência (talvez o capítulo mais instigante) e, finalmente, o capítulo seis, sobre a relação nem sempre equilibrada entre espaços abertos e edificados, entre a natureza, as florestas, os jardins e os ambientes construídos.
Os conceitos presentes no livro, em sua maioria, não são novos. Já foram (e continuam sendo) discutidos nos meios acadêmicos nacional e internacional em pesquisas e seus resultados nos campos da psicologia ambiental, a percepção ambiental, a semiótica, a avaliação pós-ocupação e outros (2). Pode-se resgatar, por exemplo, a descrição de Button sobre o projeto habitacional cubista e moderno de Le Corbusier para operários de uma fábrica francesa, nos anos 1920, em Pessac, França e as transformações empreendidas pelos seus moradores nas décadas seguintes, tendo como resultado, nos anos 1990 uma aparência muito mais próxima do vernacular (pp.163-165) do que dos ideais corbusianos.
O autor também cita exemplos no Brasil, resultantes da arquitetura de Oscar Niemeyer, como no caso de Brasília e a casa de Juscelino Kubistcheck, na Pampulha, Belo Horizonte, no capítulo IV respectivamente às páginas 142 e 229-230. (3) A casa simples, para finais de semana e com telhado borboleta (vista frontal), para o então prefeito da capital mineira, na Pampulha, é dos anos 1940 e está situada num amplo terreno com paisagismo de Burle Marx e relação com a natureza. A sensualidade nos seus projetos de arquitetura indicada pelo próprio Niemeyer (menção de Botton, à p. 229) estaria associada aqui à conexão com os espaços abertos e a natureza e seria um exemplo de felicidade?
Ao ler Botton, é preciso considerar que as visões discutidas no livro refletem o contexto social, político, econômico e geográfico em que se inserem e o repertório dos profissionais envolvidos e dos seus contratantes (clientes) à luz dos períodos históricos em que viviam e vivenciaram.
Mas o foco do autor, sobre a felicidade, é sim diferenciado e pode estimular estudantes, profissionais e leigos a perceberem a cidade e sua(s) arquitetura(s) de sua forma reflexiva e crítica, mas otimista, relativamente à qualidade de vida urbana.
Possivelmente, tentar demonstrar associações entre arquitetura e felicidade não é uma tarefa fácil. Trata-se quase que de um ato de coragem, pois contextos e circunstâncias distintas implicam em percepções ambientais distintas, a depender do olhar de quem observa, percepções estas mutáveis no decorrer do tempo.
Mas, para a nossa felicidade, Botton nos brinda com esta ideia, ainda a ser muito explorada e conferida, inclusive no meio acadêmico.
notas
1
MICHAELIS. Dicionário brasileiro da língua portuguesa. São Paulo, Melhoramentos, 2022. <https://michaelis.uol.com.br>.
2
ORNSTEIN, Sheila Walbe. Towards a Pro-user Architecture and Urban Planning: Potential Chronologies. Academia Letters, Article 4539 <https://doi.org/10.20935/AL4539>.
3
Para entender Brasília, sua complexidade edificada e a trajetória profissional de Oscar Niemeyer, recomenda-se a leitura do livro organizado por Leonardo Barci Castriota, Arquitetura da modernidade (BH, Editora UFMG, 2017, 2ª edição). O plano para BH e sobretudo as edificações concebidas por Niemeyer para o entorno da lagoa da Pampulha, incluindo a casa de Juscelino Kubitschek, são leituras da arquitetura moderna essenciais para se analisar de forma mais assertiva, o que viria em seguida: o plano piloto e seus edifícios na capital federal.
sobre a autora
Sheila Walbe Ornstein é arquiteta e urbanista, professora titular na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e bolsista produtividade do CNPq (processo número 304131/2020-2). Tem interesse nos campos da Avaliação Pós-Ocupação, gestão no processo de projeto, tecnologia da construção e nas relações entre ambiente construído e comportamento humano. Mais recentemente tem realizado pesquisas sobre espaços museológicos e na área da saúde.