“Doutor em nada” (2), avesso às instituições, sem ser simplesmente um artista, um intelectual ou um ativista político, Guy-Ernest Debord (1931-1994), o fundador da Internacional Situacionista – IS, é quase inclassificável. Muito influenciado pelo movimento Dadá e também pelo Surrealismo (que depois será um dos maiores alvos de suas críticas), o jovem Debord encontrou em 1951, no festival de cinema de Cannes, um grupo com influências e interesses parecidos, os Letristas de Isidore Isou (3). Já em seu primeiro filme em 1952, Hurlements en faveur de Sade, Debord entrou em conflito com Isou (4) e deixou os “velhos letristas” para fundar nesse mesmo ano, com alguns amigos, a Internacional Letrista – IL. De 1952 a 1954 o novo grupo letrista publicou o periódico Internationale Lettriste, e de 1954 a 1957, 29 números de Potlatch (5).
As questões tratadas em Potlatch, inicialmente mais ligadas à arte, à superação do Surrealismo, e principalmente às idéias de ir além da arte, passaram a tratar da vida cotidiana em geral, da relação entre arte e vida, e, em particular, da arquitetura e do urbanismo, sobretudo da crítica ao funcionalismo moderno. Dos textos mais radicais publicados em Potlatch contra a arquitetura e o urbanismo funcionalistas modernos podem ser citados: Construction de Taudis (6), Le gratte-ciel par la racine (7), Une architecture de la vie (8), L’architecture et le jeu (9) e Projet d’embellissements rationnels de la ville de Paris (10).
Os letristas, reunidos em torno de Debord – entre os mais influentes membros, editores de Potlatch, estavam Michèle Bernstein, Franck Conord, Mohamed Dahou, Gil Wolman e Jacques Fillon –, já anunciavam algumas idéias, práticas e procedimentos que depois formaram a base de todo o pensamento urbano situacionista: a psicogeografia, a deriva e, principalmente, a idéia-chave, inspiradora do próprio nome do futuro grupo, a “construção de situações”. Já no primeiro número de Potlatch (junho de 1954) há uma proposta de psicogeografia, Le jeu psychogéographique de la semaine:
“Em função do que você procura, escolha uma região, uma cidade de razoável densidade demográfica, uma rua com certa animação. Construa uma casa. Arrume a mobília. Capriche na decoração e em tudo que a completa. Escolha a estação e a hora. Reúna as pessoas mais aptas, os discos e a bebida convenientes. A iluminação e a conversa devem ser apropriadas, assim como o o que está em torno ou suas recordações. Se não houver falhas no que você preparou, o resultado será satisfatório”.
Vários textos letristas sobre a psicogeografia também foram publicados na revista belga Les lèvres nues (11) entre 1955 e 1956; a experiência psicogeográfica estava diretamente ligada à prática da deriva, vários textos letristas comentavam e propunham diferentes derivas, entre eles o Résumé 1954, assinado por Debord e Fillon (Potlatch, n. 14, novembro 1954):
“As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reinvidicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos”.
A idéia de “construção de situações” também surge inicialmente em Potlatch, como no texto coletivo, onde eles citam Charles Fourier (12), Une idée neuve en Europe (n. 7, agosto de 1954):
“A construção de situações será a realização contínua de um grande jogo deliberadamente escolhido; a passagem de um ao outro desses cenários e desses conflitos em que os personagens de uma tragédia morreriam em vinte e quatro horas. Mas o tempo de viver não faltará mais. Uma crítica do comportamento, um urbanismo influenciável, uma técnica de ambiências devem se unir a essa síntese, nós conhecemos os seus primeiros principios. É preciso reinventar em permanência a atração soberana que Charles Fourier chamava de livre jogo das paixões”.
Os letristas, ainda sediados em Paris, passaram a colaborar com alguns grupos de artistas europeus de tendências semelhantes, como o London Psychogeographical Association – LPA, dirigido por Ralph Rumney, e principalmente o grupo Cobra (Copenhaguem, Bruxelas, Amsterdã – 1948-1951, revista homônima), animado, entre outros, pelo dinamarquês Asger Jorn (Arger Jorgensen), pelo belga Christian Dotremont e pelo holandês Constant (Constant Nieuwenhuys). Constant e Jorn foram os responsáveis, com Debord e Raoul Vaneigem, pela elaboração do pensamento urbano situacionista. Jorn fundou, após a dissolução do Cobra, o MIBI (Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista – 1954-1957, revista Eristica): uma crítica à abertura da nova Bauhaus em Ulm – Hochschule fur Gestaltung – por Max Bill em 1955 (13).
O MIBI organizou em Alba, Itália, em setembro de 1956, uma reunião desses principais grupos europeus que vinham trabalhando sobre os mesmos temas de forma independente, com a participação de membros de oito países. No ano seguinte em Cosio d’Arrosca (14), Debord fundou, com os integrantes dos outros grupos também presentes em Alba, a Internacional Situacionista – IS. A IS passou rapidamente a ter adeptos em vários países, entre eles: Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca e Argélia. Entre 1958 e 1969, 12 números da revista IS foram publicados e, se nos primeiros seis números (até 1961) as questões tratavam basicamente da arte passando para uma preocupação mais centrada no urbanismo, estas se deslocaram “naturalmente” em seguida para as esferas propriamente políticas, e sobretudo revolucionárias, culminando na determinante e ativa participação situacionista nos eventos de Maio de 1968 em Paris.
Além dos números da IS, dos inúmeros panfletos e das ações públicas realizadas pelos situacionistas, três publicações de seus membros foram determinantes na formação do espírito revolucionário pré-68: a brochura coletiva publicada em 1966 De la misère en milieu étudiant, considérée sous ses aspects économique, politique, psychologique, sexuel et notamment intellectuel, et quelques moyens pour y remédier; o livro do situacionista Raoul Vaneigem, publicado em 1967, Traité de savoir-vivre à l’usage des jeunes générations; e o hoje clássico de Guy Debord, também publicado em 1967, La société du spectacle (15). Apesar da visibilidade conquistada nas diversas ações situacionistas que marcaram os acontecimentos de Maio de 68, a IS, depois de um fortalecimento fulgaz, entrou em crise. O seu súbito reconhecimento atraiu muitos novos membros de vários países, tornando a organização cada vez mais complexa e praticamente incontrolável. Assim, a IS se dissolveu em 1972, um fim que para o seu fundador, Debord, seria o verdadeiro começo:
“O movimento das ocupações [Maio de 1968] foi o início da revolução situacionista, mas foi só o começo, como prática da revolução e como consciência situacionista da história. É só agora que toda uma geração, internacionalmente, começou a ser situacionista” (16).
Os situacionistas e a cidade
“Sabe-se que no princípio os situacionistas pretendiam, no mínimo, construir cidades, o ambiente apropriado para o despertar ilimitado de novas paixões. Porém, como isso evidentemente não era tão fácil, nos vimos forçados a fazer muito mais” (17).
Pode-se notar uma seqüência clara de mudança de escala de preocupação e área de atuação do pensamento situacionista. Se inicialmente eles estavam interessados em ir além dos padrões vigentes da arte moderna – passando a propor uma arte diretamente ligada à vida, uma arte integral – logo em seguida eles perceberam que esta arte total seria basicamente urbana e estaria em relação direta com a cidade e com a vida urbana em geral. “A arte integral, de que tanto se falou, só se poderá realizar no âmbito do urbanismo” (18). Em um primeiro momento, essas investigações propriamente urbanas se referiam à experiência da cidade existente – através de novos procedimentos e práticas: psicogeografia e derivas – mas também à utilização dessas experiências como base para uma proposta de cidade situacionista.
“A pesquisa psicogeográfica […] assume assim seu duplo sentido de observação ativa das aglomerações urbanas de hoje, e de formulação de hipóteses sobre a estrutura de uma cidade situacionista” (19).
À medida que os situacionistas afinavam as suas experiências urbanas, eles abandonaram a idéia de propor cidades reais e passaram à crítica feroz contra o urbanismo e o planejamento em geral. Se eles se posicionavam cada vez mais contra o urbanismo, ficaram sempre a favor das cidades, ou seja, eram contra o monopólio urbano dos urbanistas e planejadores em geral, e a favor de uma construção realmente coletiva das cidades.
“Se o planejador não pode conhecer as motivações comportamentais daqueles a quem ele vai proporcionar moradia nas melhores condições de equilíbrio nervoso, mais vale integrar desde já o urbanismo no centro de pesquisas criminológicas” (20).
Os situacionistas perceberam então que não seria possível propor uma forma de cidade pré-definida (21) pois, segundo suas próprias idéias, esta forma dependia da vontade de cada um e de todos, e esta não poderia ser ditada por um planejador. Qualquer construção dependeria da participação ativa dos cidadãos, o que só seria possível por meio de uma verdadeira revolução da vida cotidiana.
Inventamos a arquitetura e o urbanismo que são irrealizáveis sem a revolução da vida cotidiana; isto é, sem a apropriação do condicionamento por todos os homens, para que melhorem indefinidamente e se realizem (22).
Os situacionistas chegaram a uma convicção exatamente contrária daquela dos arquitetos modernos. Enquanto os modernos acreditaram, em um primeiro momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo. Enquanto os modernos chegaram a achar, como Le Corbusier, que a arquitetura poderia evitar a revolução – “Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução” (23) –, os situacionistas, ao contrário, queriam provocar a revolução, e pretendiam usar a arquitetura e o ambiente urbano em geral para induzir à participação, para contribuir nessa revolução da vida cotidiana contra a alienação e a passividade da sociedade. Eles passaram diretamente da idéia da revolução da vida cotidiana para a questão da revolução política propriamente dita, e a partir desse momento – 1961, após a publicação da IS n. 6 – os textos situacionistas abandonaram as idéias sobre a cidade em particular, para se dedicar a questões exclusivamente políticas: ideológicas, revolucionárias, anti-capitalistas, antialienantes e antiespetaculares (o que não deixou de estar relacionado à questão urbana).
“O urbanismo não existe: não passa de uma “ideologia”, no sentido de Marx. A arquitetura existe realmente tanto quanto a Coca-Cola: é uma produção envolta em ideologia, mas real, satisfazendo falsamente uma necessidade forjada; ao passo que o urbanismo é comparável ao alarido publicitário em torno da Coca-Cola, pura ideologia espetacular. O capitalismo moderno, organizado de modo a reduzir toda a vida social a espetáculo, é incapaz de oferecer um espetáculo que não seja o de nossa própria alienação. Seu sonho de urbanismo é sua obra-prima” (24).
Pensamento urbano situacionista
Talvez seja exagerado falar em uma verdadeira teoria urbana situacionista, a não ser que seja considerada a etimologia grega do termo theôrien: observar. Mas a crítica urbana situacionista teve efetivamente uma base teórica, sobretudo de observação e experiência da cidade existente. Pode-se considerar a reunião das idéias, procedimentos e práticas urbanas situacionistas como um pensamento singular e inovador, que poderia ainda hoje inspirar novas experiências, interessantes e originais, de apreensão do espaço urbano. Mas é importante repetir: não existiu de fato um modelo de espaço urbano situacionista, apesar da tentativa renegada de Constant com a Nova Babilônia; o que existiu, foi um uso, ou apropriação, situacionista do espaço urbano. Assim como não existiu uma forma situacionista material de cidade mas sim uma forma situacionista de viver, ou experimentar, a cidade. Quando os habitantes passassem de simples espectadores a construtores, transformadores e “vivenciadores” de seus próprios espaços, isso sim impediria qualquer tipo de espetacularização urbana.
“A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o princípio característico do espetáculo: a não-participação. Ao contrário, percebe-se como as melhores pesquisas revolucionárias na cultura tentaram romper a identificação psicológica do espectador com o herói, a fim de estimular esse espectador a agir, instigando suas capacidades para mudar a própria vida. A situação é feita de modo a ser vivida por seus construtores. O papel do “público”, se não passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto aumenta o número dos que já não serão chamados atores mas, num sentido novo do termo, vivenciadores” (25).
O pensamento urbano situacionista seria então baseado na idéia de construção de situações. Era situacionista “que se refere à teoria ou à atividade prática de uma construção de situações. Indivíduo que se dedica a construir situações” (26). Uma situação construída seria então um “momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos”.
“Nossa idéia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram” (27).
A tese central situacionista era a de que, por meio da construção de situações se chegaria à transformação revolucionária da vida cotidiana, o que se assemelhava muito à tese defendida por Henri Lefebvre – não por acaso muito próximo dos situacionistas no início do movimento (28) – de uma construção de momentos, em sua trilogia La critique de la vie quotidienne (29). A situação construída se assemelha à idéia de momento, e poderia ser efetivamente vista como um desenvolvimento do pensamento lefebvriano: “O que você chama momentos, nós chamamos situações, mas estamos levando isso mais longe que você. Você aceita como momento tudo que ocorreu na história: amor, poesia, pensamento. Nós queremos criar momentos novos” (30).
As duas idéias também tinham ligação direta com a questão do cotidiano. Este seria a fronteira onde nasceria a alienação mas onde também poderia crescer a participação; assim como o lazer seria o tempo livre para o prazer e não para a alienação, o lazer poderia passar a ser ativo e criativo através da participação popular. O objetivo final de ambos – apesar dos situacionistas terem acusado Lefebvre de fazer uma “ficção científica da revolução” (31) – seria uma revolução cultural que se daria pela idéia de criação global da existência contra a banalidade do cotidiano. Essa teoria crítica que fundamentaria a idéia central de construção de situações seria o próprio Urbanismo Unitário (UU) – que, como já vimos, não era uma doutrina ou uma proposta de urbanismo mas sim uma crítica ao urbanismo, não era um tipo de urbanismo mas sim uma teoria urbana crítica –, foi definido como: “teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento”.
Para tentar chegar a essa construção total de um ambiente, os situacionistas criaram um procedimento ou método, a psicogeografia, e uma prática ou técnica, a deriva, que estavam diretamente relacionados. A psicogeografia foi definida como um “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”. E a deriva era vista como um “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar a duração de um exercício contínuo dessa experiência”. Ficava claro que a deriva era o exercício prático da psicogeografia e, além de ser também uma nova forma de apreensão do espaço urbano, ela seguia uma tradição artística desse tipo de experiência (32). A deriva situacionista não pretendia ser vista como uma atividade propriamente artística (33), mas sim como uma técnica urbana situacionista para tentar desenvolver na prática a idéia de construção de situações através da psicogeografia. A deriva seria uma apropriação do espaço urbano pelo pedestre através da ação do andar sem rumo. A psicogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos, através das derivas, e tentava mapear os diversos comportamentos afetivos diante dessa ação, basicamente do caminhar na cidade. Aquele “que pesquisa e transmite as realidades psicogeográficas” era considerado um psicogeógrafo. E psicogeográfico seria “o que manifesta a ação direta do meio geográfico sobre a afetividade”.
“A brusca mudança de ambiência numa rua, numa distância de poucos metros; a divisão patente de uma cidade em zonas de climas psíquicos definidos; a linha de maior declive – sem relação com o desnível – que devem seguir os passeios a esmo; o aspecto atraente ou repulsivo de certos lugares; tudo isso parece deixado de lado. Pelo menos, nunca é percebido como dependente de causas que podem ser esclarecidas por uma análise mais profunda, e das quais se pode tirar partido. As pessoas sabem que existem bairros tristes e bairros agradáveis. Mas estão em geral convencidos de que as ruas elegantes dão um sentimento de satisfação e que as ruas pobres são deprimentes, sem levar em conta nenhum outro fator” (34)
A psicogeografia seria então uma geografia afetiva, subjetiva, que buscava cartografar as diferentes ambiências psíquicas provocadas basicamente pelas deambulações urbanas que eram as derivas situacionistas. Algumas dessas derivas foram fotografadas – algumas fotocolagens destas eram vistas como mapas, como o Map of Venise de Ralph Rumney sobre suas derivas em Veneza – ou filmadas, chegando a aparecer em alguns filmes de Debord, sobretudo no seu segundo filme, de 1959: Sur le passage de quelques personnes à travers une assez courte unité de temps. Cartografias subjetivas, ou mapas afetivos, chegaram a ser efetivamente realizados, e um deles ficou quase como um símbolo situacionista The Naked City, illustration de l’hypothèse des plaques tournantes, assinado por Debord em 1957 (35).
The Naked City talvez seja a melhor ilustração do pensamento urbano situacionista, a melhor representação gráfica da psicogeografia e da deriva, e também um ícone da própria idéia de Urbanismo Unitário. Ele é composto por vários recortes do mapa de Paris em preto e branco, que são as unidades de ambiência, e setas vermelhas que indicam as ligações possíveis entre essas diferentes unidades. As unidades estão colocadas no mapa de forma aparentemente aleatória, pois não correspondem à sua localização no mapa da cidade real, mas demonstram uma organização afetiva desses espaços ditada pela experiência da deriva. As setas representam essas possibilidades de deriva e como estava indicado no verso do mapa: “the spontaneous turns of direction taken by a subject moving through these surroudings in disregard of the useful connections that ordinary govern his conduct”. O título do mapa, The Naked City, também escrito em letras vermelhas, foi tirado de um film noir americano homônimo (36). O seu subtítulo, illustration de l’hypothèse des plaques tournantes, fazia alusão às placas giratórias (plaques tournantes) e manivelas ferroviárias responsáveis pela mudança de direção dos trens, que sem dúvida representavam as diferentes opções de caminhos a serem tomados nas derivas.
The Naked City tem nítida influência de alguns mapas do livro do sociólogo urbano Paul-Henry Chombart de Lauwe Paris et l’agglomération parisienne, de 1952, que também foi citado nas páginas da IS, principalmente na Théorie de la dérive. Um diagrama desse livro de Lauwe também figura na IS, ilustrando o comentário sobre a deriva de Rumney em Veneza: um interessante mapa de Paris com o traçado de todos os trajetos realizados em um ano por uma estudante, que se concentram no bairro em que ela morava, nos percursos básicos entre a sua casa, a universidade e o local de suas aulas de piano. Chombart de Lauwe, muito influenciado pela Escola de Chicago e principalmente por Ernest Burgess, foi claramente uma influência forte, como Lefebvre, no pensamento urbano situacionista. Talvez, ao contrário de Lefebvre, a influência de Chombart de Lauwe não tenha sido propriamente teórica, mas sim mais ligada às questões de método – que são completamente desviados, detournés, pelos situacionistas – e sobretudo a uma fascinação comum, mesmo que com usos totalmente distintos, por mapas e fotografias urbanas aéreas (37).
Numa das páginas da IS, ilustrando o texto L’urbanisme unitaire à la fin des années 50, estão colocados, lado a lado, uma foto aérea de Amsterdã, com o título Une zone expérimentale pour la dérive. Le centre d’Amsterdam, qui sera systématiquement exploré par les équipes situationnistes en Avril-Mai 1960 e uma Carte du pays de Tendre de 1656. Esse mapa de Madeleine Scudéry é uma metáfora de uma viagem no espaço geográfico imaginário que traçaria diversas possibilidades de histórias de amor e romances variados. Os nomes dos lugares estavam relacionados a diferentes sentimentos e marcavam momentos significativos e emocionantes. Este foi o mapa inspirador do Le guide psychogéographique de Paris, discours sur les passions de l’amour. Os mapas situacionistas, psicogeográficos, realizados em função de derivas reais, eram tão imaginários e subjetivos quanto a Carte du pays de Tendre; eles simplesmente ilustravam uma nova maneira de apreender o espaço urbano através da experiência afetiva desses espaços. Esses mapas, experimentais e rudimentares, desprezavam os parâmetros técnicos habituais pois estes não levam em consideração aspectos sentimentais, psicológicos ou intuitivos, e que muitas vezes caracterizam muito mais um determinado espaço do que os simples aspectos meramente físicos, formais, topográficos ou geográficos.
“A confecção de mapas psicogeográficos e até simulações, como a equação – mal fundada ou completamente arbitrária – estabelecida entre duas representações topográficas, podem ajudar a esclarecer certos deslocamentos de aspecto não gratuito mas totalmente insubmisso às solicitações habituais. As solicitações dessa série costumam ser catalogadas sob o termo de turismo, droga popular tão repugnante quanto o esporte ou as vendas a crédito. Há pouco tempo, um amigo meu percorreu a região de Hartz, na Alemanha, usando um mapa da cidade de Londres e seguindo-lhe cegamente todas as indicações. Essa espécie de jogo é um mero começo diante do que será a construção integral da arquitetura e do urbanismo, construção cujo poder será um dia conferido a todos” (38).
O pensamento urbano situacionista, e principalmente sua crítica ao urbanismo enquanto disciplina, poderia ser visto hoje, pelo próprio “campo” do urbanismo, como um convite à reflexão, à auto-crítica e ao debate. Um apelo contra a espetacularização das cidades e um manifesto pela participação efetiva – não somente para parecer “politicamente correto” como vem ocorrendo – por uma participação real da população nas decisões urbanas. Os textos situacionistas sobre a cidade (cf. Apologia da Deriva) ainda podem ser vistos, dentro da inércia teórico-especulativa atual, como uma proposta para se pensar agora, em conjunto com todos os atores sociais urbanos contemporâneos, sobre o futuro das cidades existentes e a construção das novas cidades do futuro.
notas
1
Esse texto é uma parte da apresentação do livro Apologia da deriva, escritos situacionistas sobre a cidade, uma antologia ilustrada de textos da Internacional Situacionista, com prefácio de Carlos Roberto Monteiro de Andrade, que será lançado pela editora Casa da Palavra no XVII Congresso Brasileiro de Arquitetos no Rio de Janeiro em abril 2003. A primeira seleção e tradução de textos situacionistas no Brasil foi realizada por Carlos Roberto Monteiro de Andrade para o nº 4 da revista Oculum (PUC-Campinas, editada por Abilio Guerra) em 1993. Hoje já podemos contar com alguns livros traduzidos: Guy Debord, A sociedade do espetáculo, Contraponto, Rio de Janeiro, 1997; I.S., Situacionista, teoria e prática da revolução, Conrad, São Paulo, 2002; Guy Debord, Panegírico, Conrad, São Paulo, 2002; Raoul Vaneigem, A arte de viver para as novas gerações, Conrad, São Paulo, 2002.
2
DEBORD, Guy. Panégyrique. éditions Gérard Lebovici, Paris, 1989 (autobiografia). Para um histórico mais completo da IS ver: MARTOS. J-F. Histoire de l’ Internationale Situationniste, Paris, Gérard Lebovici, 1989.
3
Isou costumava dizer que da mesma forma que Baudelaire desfez a poesia, Verlaine o poema, Rimbaud o verso, Isou reduziu tudo a letras, e daí a origem dos letristas.
4
O filme de Debord – a base da disputa entre velhos e novos letristas – era basicamente formado por seqüências de telas brancas e negras, e assim ele pretendia declarar a morte do cinema e propor ir além do princípio de passividade do espectador (o que ele consegue pois após vinte minutos de projeção o público indignado deixa a sala).
5
Um último número de Potlatch, o n. 30, já foi publicado depois do fim da IL e do início da IS.
6
Potlatch, n. 3. Crítica à Ville Radieuse de Le Corbusier.
7
Potlatch, n. 5. Crítica ao urbanismo moderno em geral e a Le Corbusier em particular.
8
Potlatch, n. 15. Crítica aos funcionalistas e racionalistas em geral.
9
Potlatch, n. 20. Apologia da cidade como terreno para o jogo, a teoria de Huizinga e mais uma vez, Le Corbusier, são citados.
10
Potlatch, n. 23. Idéias e propostas irônicas dos letristas para transformar Paris em um terreno de jogo, ou como eles diziam, oferecer soluções para diversos problemas de urbanismo desta cidade.
11
Esta revista considerada “surrealista” era editada por M. Marien e um texto de Debord importante para a compreensão do pensamento urbano situacionista foi aí publicado em 1955: “Introduction à une critique de la géographie urbaine”.
12
Charles Fourier (1772-1837), filósofo e economista francês, fundou a revista Le Phalanstère: crítica feroz à sociedade industrial burguesa e proposta de uma nova sociedade e de uma nova cidade-edifício (Phalange ou Phalanstère) utópica, socialista e hedonista. O prazer libidinoso, as orgias e os costumes libertinos estariam na base dessa nova comunidade. Fourier descreve com precisão o novo edifício, um enorme complexo arquitetônico. O fourierismo influenciou muito os surrealistas, principalmente André Breton, mas também Marx e Engels.
13
O debate entre Jorn e Bill será desenvolvido em seguida. É importante ressaltar que o escultor e arquiteto suíço Max Bill foi a grande vedete da Primeira Bienal de São Paulo em 1951 e influenciou toda uma geração de artistas brasileiros de tendência concretista, principalmente o grupo paulista.
14
Ver o texto pronunciado nesta ocasião: “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional”.
15
A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997. Este livro é um claro desvio (détournemment) de vários textos, principalmente de Marx e Hegel, e de alguns manifestos, como o comunista. A crítica ao espetáculo, que já estava presente nos números da IS, passa a ser um dos temas principais de Debord; esta crítica era na verdade uma renovada crítica à alienação da sociedade gerada pelo fetichismo da mercadoria.
16
DEBORD, Guy. “Thèses sur l’Internationale Situationniste et son temps”. In La véritable scission dans l’ Internationale Situationniste, com Gianfranco Sanguinetti, Paris, Champ Libre, 1972.
17
DEBORD, Guy. De l’architecture sauvage. In JORN A. Le jardin d’Albisola (1974), republicado em On the passage of a few people through a rather brief moment in time: the Situationist International, Cambridge Mass., MIT, 1989.
18
DEBORD, Guy. “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional”.
19
Idem.
20
VANEIGEM, R. Comentários contra o urbanismo, IS, n. 6.
21
Exceto Constant, que insistiu na proposta de uma cidade utópica, Nova Babilônia, produzindo inúmeros mapas e maquetes, formalizando um verdadeiro projeto, o que provocou um desentendimento com Debord e seu desligamento da IS em 1960. “Constant s’était trouvé en opposition avec l’IS parce qu’il était préoccupé en priorité, et presque en exclusivité, des questions de structures de certains ensembles d’urbanisme unitaire, alors que d’autres situationnistes rappelaient qu’au stade présent d’un tel projet il était nécessaire de mettre l’accent sur le contenu (de jeu, de création libre de la vie quotidienne). Les thèses de Constant valorisaient dons les techniciens des formes architecturales para rapport à toute recherche d’une culture globale” (IS nº5). Assim Constant abandonou a IS, foi substituído por Attila Kotanyi, mas continuou desenvolvendo o projeto de Nova Babilônia por uma década. Ver LAMBERT J-C. New Babylon – Constant. Art et utopie, Cercle d`Art, Paris, 1997.
22
VANEIGEM, R.; KOTANYI, A. “Programa elementar do bureau de urbanismo unitário”, IS, n. 6.
23
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 1989 (original: Vers une arhitecture, 1923).
24
VANEIGEM, R.; KOTANYI, A. “Programa elementar do bureau de urbanismo unitário.” IS, n. 6.
25
DEBORD, Guy. “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional”.
26
Todas as definições situacionistas foram publicadas na IS, n. 1.
27
DEBORD, Guy. “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional”.
28
O contato entre os situacionistas e o sociólogo e filósofo Henri Lefebvre (1901/1991) foi em um primeiro momento extremamente cordial mas depois trouxe vários desentendimentos, principalmente com Debord, que não aceitava as implicações institucionais de Lefebvre (tanto com o partido comunista quanto com a universidade), e a dissociação entre sua vida e seu pensamento teórico. Lefebvre, importante e conceituado pensador marxista, publicou inúmeros livros sobre a questão urbana, e talvez o mais importante deles, no auge de Maio de 68, Le droit à la ville.
29
O primeiro livro, Introduction à la critique de la vie quotienne, é publicado em 1946; o segundo, Critique de la vie quotidienne, em 1963, e o último e mais conhecido em 1968: La vie quotidienne dans le monde moderne.
30
“Lefebvre on the Situationnists: an interview”, October, n. 79, MIT Press, Winter 1997.
31
IS, n. 3.
32
Outros tipos semelhantes de experiências ou simples reflexões sobre o espaço urbano provocavam ou consideravam a própria experiência estética ou a apreensão afetiva desses espaços. Podemos tentar traçar uma linha de artistas e teóricos que viria desde Baudelaire, da idéia de flâneur (em 1863, no texto Le peintre de la vie moderne), passando pelos dadaístas com as excursões urbanas por lugares banais, as deambulações aleatórias organizadas por Aragon, Breton, Picabia e Tzara entre outros, que continuaram com os surrealistas liderados por Breton, pela experiência física da errância no espaço real urbano que foi a base dos manifestos surrealistas (e dos livros Le paysan de Paris de 1926 de Aragon e Nadja de 1928 e L’amour fou, de 1937, ambos de Breton), que desenvolvem a idéia de hasard objectif, e depois disso, Walter Benjamin que retomou o conceito de flâneur de Baudelaire e Aragon, e começou a trabalhar com a idéia de flânerie, ou seja, de flanâncias urbanas, a investigação do espaço urbano pelo flâneur (principalmente de Paris e de suas passagens cobertas no Le livre des passages). Apesar de o flâneur ser para os situacionistas o protótipo de um burguês entediado e sem propostas, e da tentativa destes de se distanciar das promenades imbeciles surrealistas, os situacionistas contribuíram para desenvolver essa mesma idéia ao propor a noção de deriva urbana, da errância voluntária pelas ruas. Sem dúvida houve uma grande influência dadaísta, por exemplo da famosa excursão dadaísta – sempre propostas em lugares escolhidos precisamente por sua banalidade e falta de interesse – à igreja Saint-Julien-le-Pauvre em Paris, que ficou conhecida como 1ère Visite e ocorreu na quinta-feira 14 de abril de 1921 às 15 horas, quando Breton leu um manifesto para épater le bourgeois.
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Essas idéias se desenvolveram também no meio artístico após os situacionistas. Logo em seguida o grupo neo-dadaísta Fluxus (Maciunas, Patterson, Filliou, Ono etc) também propôs experiências semelhantes; foi a época dos happenings no espaço público. No Brasil os tropicalistas também tiveram algumas idéias semelhantes, principalmente o Delírio Ambulatorium de Hélio Oiticica (outros artistas brasileiros já tinham proposto experiências no espaço urbano bem antes, como por exemplo, Flávio de Carvalho). Dentro do contexto da arte contemporânea, vários artistas trabalharam no espaço público de uma forma crítica ou com um questionamento teórico, e, entre vários outros, podemos citar: Krzysztof Wodiczko, Daniel Buren, Gordon Matta-Clark, Dan Grahan, Barbara Kruger, Jenny Holzer ou Rachel Whiteread. O denominador comum entre esses artistas e suas ações urbanas seria o fato de que eles viam a cidade como campo de investigações artísticas e novas possibilidades sensitivas, e estes acabavam assim mostrando outras maneiras de se analisar e estudar o espaço urbano através de suas obras/experiências.
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DEBORD, Guy. Introdução a uma crítica da geografia urbana.
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Debord e Jorn realizaram juntos dois livros ilustrados, feitos basicamente de colagens e que também continham outros “mapas”: Fin de Copenhague, MIBI, Copenhague, 1957, e Mémoires, IS, Copenhague, 1959, além do mapa Le guide psychogéographique de Paris, discours sur les passions de l’amour (1956).
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The Naked City, de 1948, de Albert Maltz e Malvin Wadd, é uma história de detetives que investigam casos em Nova York. O filme se passa em Manhattan, nas ruas e nos espaços públicos dessa parte da cidade. O título do filme, por sua vez, foi retirado de um livro de fotos de crimes publicado em 1945.
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Chombart de Lauwe escreveu, antes do seu clássico sobre Paris, dois livros sobre fotografias aéreas: La découverte aérienne du monde, de 1948 e Photographies aériennes. L’étude de l’homme sur terre, de 1949.
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DEBORD, Guy. Introdução a uma crítica da geografia urbana.
sobre o autor
Arquiteta e Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora CNPq. Autora de Les favelas de Rio (Paris, l'Harmattan, 2001); Estética da Ginga (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001); Esthetique des favelas (Paris, l'Harmattan, 2003); co-autora de Maré, vida na favela (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002) e organizadora de Apologia da Deriva (Rio de Janeiro, Casa da Palavra)