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architexts ISSN 1809-6298

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A autora fala sobre a indústria do medo que prevalece nas grandes cidades brasileiras, resposta desagregadora ao desastre da fome, da violência urbana, da indigência, da doença, gerando espaços fechados para as elites nacionais


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MOREIRA, Clarissa. A indústria do medo e a vida na cidade. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 035.01, Vitruvius, abr. 2003 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.035/692>.

Existem os fatos: ônibus incendiados, ruas fechadas, balas perdidas, roubos de automóveis, assaltos. No dia-a-dia de uma cidade como o Rio de Janeiro, não se pode dizer que a violência urbana seja uma criação jornalística. A maioria da população se adapta à vida urbana mutilada e vive com medo. Muitos outros continuam sua vida o mais normalmente possível e aprendem a conviver com os problemas. Outros, ainda, se fecham e se armam “até os dentes”.

Somos habitantes de um mundo que produz a cada instante sua própria degeneração, vem sendo assim ao longo do tempo. No entanto, a vida encontra sempre modos de resistir: se adapta, se transveste, se protege. Mas nem sempre adota a melhor estratégia.

Há muito que abandonamos nossas utopias por um mundo pacífico, por um mundo justo, por um mundo onde se pudesse viver melhor. Isto tudo foi deixado para trás e nos tornamos uma sociedade “velha de guerra”, um pouco hipócrita, um pouco niilista, bastante egoísta. Tivemos que negociar nossos sonhos e fazer imensas concessões aos princípios dominantes do lucro máximo, do controle total econômico e financeiro, do poder nas mãos de poucos... O resultado disso é, como sabemos, que as benesses deste mundinho reduzido da fartura capitalista nunca vai dar para todos. Mas ainda assim, persiste a criação de uma massa que deseja desesperadamente consumir, ter acesso às tais benesses capitalistas. E é assim que a guerra começa: em vez da cooperação, a competição, em vez do espírito coletivo, o meramente individual... e curiosamente, vamos perdendo nossa individualidade e virando uma massa insólita de consumidores, de espectadores e de vítimas, sempre esperando que alguém nos salve.

A indústria do medo é feita pelos que se locupletam não do sucesso do sistema, mas de sua falência. Que nem se pode chamar falência, uma vez que mesmo no desastre da fome, da violência urbana, da indigência, da doença, se estabelece uma forma de lucro, de exploração, de vantagem.

Isto no urbanismo tem graves implicações já reconhecidas aqui e ali, mas que precisam vir a tona como centro do debate urbano, a fim de se obter desdobramentos em política e gestão urbana. Muitas vezes por ignorância ou desatenção, ou ainda, pela crença na inevitabilidade dos processos, é que situações se deflagram e se tornam de fato irreversíveis.

Ao redor de diversas cidades brasileiras, como em muitas cidades do mundo, começam a surgir verdadeiras cidades fortificadas, ligadas ao centro urbano por vias expressas. O que de mais próximo temos disso no Rio de Janeiro é ainda a Barra da Tijuca e seus condomínios fechados. Em cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre surgem os Alphavilles e empreendimentos do gênero, com muros ao redor e sistemas de segurança. Em Buenos Aires diversos bairros fechados começam a ser feitos na periferia. Na França, a Eurodisney acaba de criar um bairro onde as pessoas passam por uma seleção para poderem adquirir ali um imóvel.

Nos estados Unidos basta lembrar que o bairro onde foi filmado o Show de Truman, filme americano exibido no Brasil há poucos anos, não é apenas cenográfico. Ele existe e não é o único.

Como se trata de um processo recém-iniciado, é preciso ser observado de perto e analisado face às tendências verificáveis em relação aos possíveis efeitos deste processo na vida urbana. Por analogia, basta lembrar que os centros das cidades brasileiras, que já foram habitados, foram sendo paulatinamente abandonados. Hoje, sua densidade é baixíssima e dela derivam graves problemas de desequilíbrio sócio-econômico urbano. Já vivemos processos de dispersão da malha e apenas em termos de deslocamentos intraurbanos, já se sabe o drama diário de milhares de pessoas. Sabemos ainda os riscos da formação de guetos e também os riscos da segregação social: aumento da tensão urbana, da desigualdade e, portanto, da violência.

O movimento de deslocamento das classes altas e médias altas para fora dos centros urbanos pode implicar num novo abandono dos centros urbanos, o que implicará o estabelecimento de fronteiras intransponíveis entre classes sociais... O que só pode gerar mais desigualdade, mais injustiça, mais desequilíbrios e portanto, mais violência. Em breve, voltaremos às cidades fortificadas, ao muro medieval, ao fosso de jacarés.

A resistência a esses processos não pode ser frágil, considerar-se limitada, fazer aquilo que for possível. Ela precisa estruturar-se, ganhar corpo, fazer-se introduzir nos meios decisórios da influência sobre o espaço urbano: pois alguém autoriza este processo, alguém o influencia, alguém o financia, alguém constrói infra-estrutura, alguém estimula a existência de uma demanda de amedrontados impotentes, alguém se exime de seu papel na inclusão social, na redução da criminalidade e na construção de alternativas, e alguém reduz sua responsabilidade em meio ao processo.

E nesta hipótese, urbanistas e todos os que influem na produção do espaço urbano são co-responsáveis pelo futuro da vida urbana, enquanto formadores de opinião, propositores de espaços urbanos e de possibilidades de vida conjunta. Portanto, a ordem do dia do debate urbano deveria ser em termos de formas de resistência da vida coletiva: formas de não-expansão da cidade e de não-segregação, seja pela legislação urbana (que estimula o contrário), seja pela priorização de programas urbanos de melhor uso da estrutura urbana existente, enfim, pelas infinitas alternativas que estão ao alcance das mãos.

sobre o autor

Clarissa Moreira é arquiteta e urbanista

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