Se a forma foi definida pelo arquiteto como a simples expressão de um pensar e de um viver e a passagem pela academia apenas como a formalização de um conhecimento vivido, perguntamos a Paulo Mendes da Rocha sobre suas raízes, sobre espaços e poéticas pessoais, sobre a formação do olhar como instrumento de leitura e de transformação da realidade.
Paulo Mendes da Rocha nasceu na cidade de Vitória, Espírito Santo, em 1928. A família materna de origem italiana, avô romano, morava no centro de Vitória, a duas quadras do importante porto exportador de minérios e cacau. Do terraço da casa dos avós, de olho nas pontas dos guindastes do Porto e ouvidos atentos aos apitos dos navios, o menino brincava de navegar e descobrir o mundo. O porto intrigava pela sua implantação com seu cais efervescente, grandes armazéns e depósitos, pelo movimento de poderosos guindastes e gruas, pela constante mudança e modernização, pelo movimento de navios e pessoas. Era como estar sempre a espreitar por uma porta aberta para o mundo, “o próprio porto educando com a força da convicção no poder de transformação do homem, feito de técnica, engenharia e imaginação”. Os avós paternos, família baiana, moravam no Rio de Janeiro, então a bela capital de um país promissor, primeira referência de cidade que, apesar de grande, permitia-se abrigar o contraponto bucólico da ilha de Paquetá onde vivia o avô Francisco, diretor da Biblioteca Nacional.
Desde cedo descobriu a realidade do sertão capixaba, a miséria sofrida do sertanejo tão bem retratada por Coelho Neto, que Paulo Mendes da Rocha cita, narrando histórias tão bonitas quanto tristes. Das estadias em uma fazenda no interior do Estado a lembrança nítida das roças de cacau, uma cultura que deve ser feita no sombreado das grandes árvores, poupadas ao se eliminar a sub-mata para o plantio: “as plantações lembram o espaço e a estrutura de catedrais góticas, com grandes árvores fechando copas no alto, e o chão coberto de folhas, tudo muito limpo e silencioso, um silêncio incrível. Os homens só chegam na época da colheita com as mulas, jacás, ferramentas, povoando este vazio silencioso com o ruído do trabalho”. O ciclo de uma cultura rememorado: a quebra do coco, a fermentação das sementes, a secagem nas barcaças de madeira cobertas por grandes telhados que deslizam sobre trilhos para proteger as sementes das chuvas constantes, outro engenho que impressionou a memória infantil.
A sede da fazenda era um casarão de muitos cômodos do século XVIII, construído em pau-a- pique, suspenso do chão e rodeado por bancos. Ali se sentavam os meninos que conduziam as tropas de burro carregadas de carvão, outra fonte de economia ( e devastação) da região, esperando pelo café com angu servido à vontade, sustento para a jornada. Também era no lombo de mula que o menino saía do município de Castelo, assim chamado por conta dos afloramentos de rochas que se impunham à paisagem como construções fantásticas, em longas excursões acompanhando o farmacêutico italiano amigo da família que levava remédios e conforto para a população sertaneja. Sucessão de casebres de taipa de mão, cobertos de palha. Pobreza e abandono mas com algum “luxo”, como água encanada: o taquaruçu cortado ao meio, emendava-se para trazer a água corrente da nascente ate a janela da cozinha. Vida pobre, mínima nas suas necessidades, mas engenhosa nas soluções para pequenos confortos.
Por volta de 1937 muda-se para São Paulo. O pai, engenheiro de portos e canais, o qual acompanha mais tarde em visitas técnicas de fiscalização à grandes obras de engenharia, vem fazer parte do corpo docente da Escola Politécnica. A família instala-se como pensionista em uma casa na Avenida Paulista, próxima à Rua Brigadeiro Luís Antônio. Diretamente “das veredas da roça para a avenida”, o menino caminha todos os dias até o Colégio Paes Leme, na esquina da Rua Augusta, palmilhando a elegante avenida Paulista ainda povoada dos casarões dos barões do café e dos emigrantes enriquecidos no comércio e na indústria. Mais tarde a família muda-se para uma casa com jardim e quintal com bananeiras à Rua José Maria Lisboa.
Nos primeiros dez anos de vida, Paulo Mendes da Rocha vive o contraponto do porto ao sertão, de Paquetá à Paulicéia. Como ele mesmo diz, são os contrastes definitivos para imprimir uma consciência dos processos de transformação do território, para forjar um olhar sobre a natureza e a sua apropriação. Na sua história, assim como no seu trabalho e no seu discurso, a engenharia significa a construção de uma paisagem afetiva e o recurso efetivo de transformação dos lugares do ponto de vista geomorfológico: “ver a arquitetura pela mão da engenharia, antes como uma atividade de transformação do que um conjunto de teorias, protótipos, estilos. Ver a arquitetura como o engenho que resolve problemas”. Não seria à toa que na terminologia dos engenheiros uma caixa d’água é chamada de “castelo d’água” e as pontes e viadutos de “obras de arte”. Quanto às casas, aos elementos de que é composta uma cidade, elas deveriam ser tratadas não como objetos isolados, alvos de substituições pontuais segundo interesses difusos, mas como a continuação da paisagem geográfica, seus elementos constitutivos. A cidade não é a somatória de individualidades, um simples aglomerado.
Nas freqüentes viagens no trem noturno à cidade do Rio de Janeiro, onde chega a morar no bairro da Tijuca por dois anos em meados da década de 40, quando freqüenta a Escola Naval, Paulo Mendes da Rocha vive intensamente a cidade nos arredores do Largo da Carioca, no bairro de Copacabana, nas então praias distantes de Ipanema. Aprecia as obras de engenharia de Saturnino de Brito e acompanha as diversas operações de “construção da geografia urbana da cidade, que vai se acomodando à esplêndida paisagem natural”. Descreve com detalhes a operação das dragas aterrando Copacabana “urrando enquanto se livravam de uma emulsão de areia e água” para conquistar uma faixa de 200 metros de terreno ao mar; a implantação do aterro do Flamengo, projeto de Burle Marx, “maravilha de domesticação da paisagem natural” e a construção da sede do Museu de Arte Moderna de autoria de Affonso Reidy. Mas não deixa de acompanhar também a construção da nova capital - “influência maior para minha geração” - enfrentando viagens de DC3 à Brasília para conferir de perto “os grandes feitos dos engenheiros, a transformação do território em escala nunca vista”.
Na Faculdade de Arquitetura Mackenzie, onde ingressa no final da década de 40 graduando-se em 1954, discute as formas de ocupação do território em todas as suas dimensões, inclusive a política. Começa a definir os princípios de trabalho, a aprofundar conceitos, a sistematizar e organizar um repertório de experiências vividas, afirmando a necessária associação entre homem e natureza, entre o sujeito ativo que constrói as cidades e a história, e o seu ambiente. Relata, talvez com uma ponta de nostalgia, que a grande ambição dos jovens na época, depois do diploma, era ter um ponto de trabalho no centro, era poder viver esta cidade-lugar da civilização, do convívio, da troca.
Que grande aventura da civilização representava a travessia do Viaduto do Chá em São Paulo, ou o caminhar pelo Largo de São Francisco, pelas ruas Quintino Bocaiúva, Direita, Florêncio de Abreu com suas fantásticas lojas de ferramentas, ou ir de bonde até os pontos finais das linhas como os Altos de Santana, ou freqüentar os bares como o extinto Harmonia do lado do extinto Mappin Store, os dancings, os bilhares, os cafés onde os estudantes das diferentes faculdades encontravam-se em ambientes plurais e cosmopolitas, discutindo os problemas do homem cidadão que interessavam tanto aos poetas como aos médicos, tanto aos engenheiros como aos trabalhadores do comercio. Que grande desgosto observar esta São Paulo enfartada, com suas vias de acesso obstruídas resultado do privilégio concedido ao automóvel em detrimento do transporte público, onde a natureza passou a ser interpretada como parcelas cercadas individuais de verde, onde prevalecem “idéias da arquitetura que se degeneram dentro do próprio artefato”, voltando esta arquitetura contra a cidade da civilização, transformado-a em um instrumento de exclusão. Resistem alguns edifícios como o Conjunto Nacional (arquiteto David Libeskind, 1955), na Avenida Paulista, hoje quase “um escárnio” para com a maior parte das construções autistas que o rodeiam ao propiciar a integração do edifício com a rua e com a cidade, a circulação de pessoas, ao se apresentar como um espaço democrático de convivência.
Portanto, para Paulo Mendes da Rocha o arquiteto é alguém que examina problemas novos que são sempre o mesmo velho problema: o conhecimento da cidade. Ele desenvolve um trabalho que procura ser um contraponto crítico à realidade e ao mesmo tempo um esforço para contemplar as necessidades colocadas pela imprevisibilidade da vida humana que povoa seus espaços. Lições de vida, mais do que lições de escola, e lições daquela que foi sua “segunda escola”: a experiência como professor assistente de Vilanova Artigas na FAU-USP a partir de 1961. Mais do que com a obra de Artigas, aprendeu com o homem, e com o seu processo de trabalho. Não fala dos edifícios mas da personalidade do arquiteto que forjou uma das correntes mais importantes da arquitetura moderna brasileira.
A arquitetura, como parte da cidade, é definida como “aquilo que se pode contemplar com espanto e com emoção”. O arquiteto demora-se em apreciar as torres para as instalações esportivas do SESC Fábrica Pompéia (1977) projetadas por Lina Bo Bardi - uma arquitetura verdadeira, expressão de sua função -, e faz questão de sublinhar que a beleza do edifício Copan (1951), projetado por Oscar Niemeyer, é devida à inteligência do ato de encurvar uma lâmina para que ela possa resistir ao principal esforço que solicita sua estrutura, o esforço do vento.
E porque “nem sempre a arquitetura é vista como gostaria de ser vista” lembra que no seu projeto para o Museu da Escultura optou por ocupar o terreno todo, como se o edifício fosse sua própria pedra fundamental, por se recusar a trabalhar com espaços de sobra, já estigmatizados, nas divisas do terreno. As áreas expositivas foram conquistadas ao sub-solo literalmente “cavando a pedra”, ao mesmo tempo que o museu abre-se em praça para a cidade. A estrutura essencial que define o edifico, mínimo nos seus componentes, qualifica o sítio e marca o território com uma escultura à escala do homem porque o arquiteto acredita que a história de um povo é lida nos vestígios das formas que resistem aos séculos. Como as pirâmides egípcias, engenhos admirados por serem “as máquinas de sua própria fabricação”, construídas para serem vistas no deserto, mas apropriadas como símbolos de um império, como capítulos da história.
Mesmo depois de vir morar em São Paulo, o menino Paulo Mendes da Rocha voltava para o Espírito Santo com a mãe para as férias de verão. Longas viagens de trem, com baldeação no Rio de Janeiro, e as temporadas na Praia do Conde, no bangalô do tio. Segredos de moleques nas pedreiras, aventuras proibidas, e os inesquecíveis domingos no Cinema Glória. Os meninos, nos seus melhores trajes, devoravam em seqüência uma dúzia de filmes até que o leiteiro, generoso incentivador cultural na sua folga semanal, viesse buscá-los de volta no caminhão improvisado para a entrega da semana. O trem, as rochas do Espírito Santo, a magia do cinema no centro da cidade portuária: não poderiam ser outros os lugares ou as páginas finais desta breve dissertação de uma existência.
nota
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Com o título "Os lugares como páginas da dissertação de uma existência", o presente artigo foi publicado originalmente na revista Casa Vogue, edição 188 / março 2001, p. 98-101. Agradecemos às editoras Ana Montenegro e Clarissa Schneider, e ao fotógrafo Marcelo Grilo por autorizarem a reprodução de texto e fotos em Arquitextos.
sobre o autor
Cecília Rodrigues dos Santos é arquiteta, doutoranda, professora da Faculdade de Arquitetura na Universidade Presbiteriana Mackenzie e consultora para a área de patrimônio cultural, crítica de arquitetura e co-autora de "Le Corbusier e o Brasil"