Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts


how to quote

CELSO VARGAS, Júlio. Densidade, paisagem urbana e vida da cidade: jogando um pouco de luz sobre o debate porto-alegrense. Arquitextos, São Paulo, ano 04, n. 039.07, Vitruvius, ago. 2003 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.039/663>.

Fundamentos

O atual Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre (1° PDDUA, lei 434/99) está fundamentalmente baseado na questão da densidade. Esta medida originária da geografia e que mensura a relação entre quantidade de pessoas e quantidade de espaço foi a variável-chave utilizada para determinar os regimes urbanísticos e orientar o desenvolvimento urbano de nossa cidade, conforme expresso nos textos e capítulos que conformam o arcabouço conceitual do Plano.

Isso indica um viés eminentemente técnico, para não dizer tecnicista, onde modela-se uma cidade pensando apenas na quantidade de gente (e, conseqüentemente, de construções) "suportável" pelas regiões ou setores da cidade, deixando em segundo plano as questões de paisagem, qualidade ambiental, patrimônio coletivo e dinâmica social urbana. É uma opção pragmática, atrelada às lógicas da burocracia administrativa e voltada ao atendimento dos condicionantes financeiros, a qual busca prioritariamente equilibrar o orçamento através da minimização dos gastos e da maximização das receitas, visando o atendimento da infinidade de demandas hoje colocadas sob a responsabilidade da municipalidade. Com isso, abre-se mão de anseios mais elevados para o futuro da cidade e da coragem de subverter restrições administrativas em prol de uma real qualificação do ambiente urbano. Essa tendência por si só já constitui um desalento para todos os que conhecem um pouco da tradição do urbanismo porto-alegrense, a qual nos conta uma história de quase cem anos de humanismo e sofisticação de pensamento, de ousadia e utopias, para muito além do hermetismo técnico e do pragmatismo econômico que se verifica nos dias de hoje. Quem não conhece esta história também tem motivos para lamentar, pois constatará que a "capital da qualidade de vida", a cidade da participação popular, o foco das atenções planetárias por sua cultura, suas conquistas e mobilizações sociais, trabalha com uma matriz de planejamento urbano limitada e um tanto míope como a do planejamento por densidades.

Pois bem, esqueçamos por um momento nossas aspirações e aceitemos o planejamento por densidades, o qual nos propõe um modelo de cidade baseado em distribuição de populações em função da "otimização" da infra-estrutura. O estado-da-arte de tal escola de planejamento indica a necessidade de trabalhar com valores de densidade que incluam não apenas os moradores, mas também os trabalhadores e usuários permanentes das áreas, pois todos "consomem" igualmente a infra-estrutura. Assim, ao invés de falarmos em "habitantes por hectare" (hab/ha) o mais preciso é utilizar valores de "economias por hectare" (eco/ha) para medir densidade urbana, pressupondo que a cada economia corresponde um determinado número de pessoas. A partir dessas premissas, foram definidos padrões de densidade para as diversas regiões da cidade, determinando o quanto essas regiões poderiam ou deveriam "encher-se", sob o argumento da necessidade inapelável de adensamento. Tal argumento baseia-se na tese, a primeira vista bastante convincente, de que Porto Alegre é atualmente uma cidade "deseconômica", possuindo muitas áreas com baixas densidades que possuem boa acessibilidade e são dotadas de infra-estrutura urbana. Infra-estrutura, numa acepção moderna, indica, além da pavimentação e das redes de água, esgoto e energia, também as áreas verdes, os equipamentos públicos, os serviços urbanos (transporte, limpeza pública), as instalações comerciais, de lazer e cultura e todos os demais recursos coletivos necessários para a vida na cidade. Assim, segundo a filosofia do Plano, todos estaríamos pagando (através dos impostos) para prover recursos urbanos a alguns poucos ocupantes dessas áreas "privilegiadas" e forçando a expansão do assentamento para cada vez mais longe, acarretando também custos elevados de urbanização e funcionamento da cidade.

O modelo adotado propôs então níveis variados de densidade para as macrozonase UEUs (Unidades de Estruturação Urbana), baseado em padrões ótimos de custo de instalação e manutenção da infra-estrutura. Diga-se a bem da verdade que o modelo foi cientificamente construído, subsidiado por renomados consultores e especialistas, os quais elaboraram seus estudos de acordo com critérios e metodologias consagradas mundialmente. O grande problema é que o resultado desses estudos são parâmetros abstratos, valores ideais de quantidade de economias por hectare aplicáveis a zonas residenciais unifamiliares, zonas residenciais ultifamiliares mais ou menos concentradas e zonas mistas, determinando o quanto cada uma delas comportaria – numa situação hipotética – com custos aceitáveis de urbanização. O que já existia, a cidade que já ali se encontrava há mais de dois séculos, foi relegado a um segundo plano. A densidade real, o estado real da infra-estrutura, a real oferta de equipamentos, a real saturação do sistema viário, as reais condições de vida e de qualidade ambiental, a própria topografia da cidade, tudo isso, se foi considerado, o foi de modo superficial.

Esses padrões de densidade ideais deram origem aos índices de aproveitamento do PDDUA, mecanismo essencial do controle urbanístico e que indica a quantidade de construção possível em cada terreno privado em função de sua área (o "potencial construtivo"). Com base em tamanhos consagrados de apartamentos, conjuntos ou salas (as chamadas economias), essa quantidade de construção possível gerada pela multiplicação da área do terreno pelo seu índice de aproveitamento possibilita a inferência de quantas economias resultarão de cada obra e, conseqüentemente, qual será a densidade resultante na zona ou no quarteirão. Acrescente-se aí o chamado solo criado e os demais mecanismos de transferência ou comercialização de potencial construtivo, para os quais foi previsto um "plus" na densidade, sempre, segundo o modelo, compatível com a capacidade da zona (na realidade, compatível com a capacidade ideal de uma zona com aquelas características). Perfeito: estava dado o modelo, estavam definidos os regimes, estava montado o sistema de monitoramento da densificação. E o PDDUA foi às ruas.

O resultado espacial

Se pensarmos que um quarteirão tradicional, com área de 10.000 m2 (um hectare líquido) pode ser parcelado em 32 lotes com pouco mais de 300 m2 (o lote "clássico") e ocupado com uma economia por lote, temos uma densidade líquida resultante de 32 economias por hectare. Cabe aqui abrir um parêntese e explicar a diferença entre densidade líquida e bruta. A primeira refere-se ao número de economias dividido exclusivamente pela área privada dos quarteirões (do alinhamento para dentro), enquanto a segunda divide a quantidade de economias existente em uma determinada região por sua área total em hectares. É um cálculo "a varrer", independentemente da existência de ruas, praças, equipamentos ou demais áreas públicas no interior da zona medida. A densidade bruta é, portanto, menor e, em geral ela corresponde a um valor entre 50 e 65% da líquida. De volta ao exemplo, podemos considerar então que 32 eco/ha líquido é um valor de densidade "baixa", característica de zonas exclusivamente unifamiliares – um lote, uma casa (figura 1). O PDDUA fala em densidades líquidas da ordem de 170 a um máximo de 260 eco/ha líquidos por quarteirão, em zonas com índices de aproveitamento altos e com incidência de solo criado. Esse valor máximo corresponde a cerca de 7,8 vezes a densidade-padrão unifamiliar, deixando claro qual é o "tamanho" do adensamento proposto para algumas regiões de Porto Alegre.

Admitindo o dado do IBGE que estipula uma média de 3,5 ocupantes por economia, a proposta do PDDUA resulta em torno de 900 pessoas instaladas em nosso quarteirão de 1 hectare. Por baixo, podemos estipular um automóvel a cada três pessoas, o que acrescenta mais 300 "moradores" de cerca de uma tonelada de metal cada.

Obviamente podemos concordar com a idéia de que zonas exclusivamente de casas não podem predominar nas áreas centrais de uma cidade como Porto Alegre, seria ingenuidade negar que um padrão mais denso é perfeitamente aceitável para a maioria da chamada "Cidade Radiocêntrica", compreendida dentro do polígono da 3ª Perimetral. Mas, quanto mais denso? Oito vezes? Será que temos a real necessidade de multiplicar várias vezes as densidades já existentes na área intensiva? Será que ainda acreditamos nas previsões apocalípticas dos anos 60 que previam uma população de vários milhões de habitantes para Porto Alegre no ano 2000? Será que o crescimento populacional de cerca de 1% ao ano justifica uma densificação desta ordem?

E, do ponto de vista espacial? Quais as conseqüências de tal modelo? Como fica o ambiente urbano com esses níveis de adensamento? Tomando novamente o exemplo anterior, imaginemos como podem ser distribuídas este máximo hipotético de 260 economias em nosso quarteirão de um hectare: 16 edifícios de 4 pavimentos com quatro economias por pavimento (figura 2). Ou 8 edifícios de 8 pavimentos com quatro economias por pavimento (figura 3). Ou ainda, 4 edifícios de 16 pavimentos com quatro economias por pavimento (figura 4). Qualquer um, é uma simples questão de gosto, dirão alguns (e boa arquitetura, diria eu), imaginando que estamos a tratar de um quarteirão vazio em uma cidade abstrata, sem nenhuma ocupação adjacente ou contexto pré-existente. Realmente, nessas condições é possível aceitar quatro torres de 16 pavimentos harmoniosamente dispostas em uma quadra, com grandes afastamentos e baixa ocupação do solo. Também é uma imagem agradável um conjunto de 8 prédios distribuídos na quadra, com formas elegantes conformando um arranjo de viés modernista. Ou, como na primeira hipótese, um padrão europeu, com edifícios relativamente baixos colados uns aos outros, formando um quarteirão compacto, homogêneo e com seu miolo totalmente livre, bem iluminado e ventilado.

Não esqueçamos, porém, que estamos falando de uma cidade real, viva e presente, com estrutura já consolidada e paisagens consagradas. A verdadeira conseqüência desse tipo de adensamento aplicado grosseiramente sobre a cidade pré-existente são quarteirões caóticos espalhados indiscriminadamente por todo o território da cidade, com uma ou duas torres inseridas em meio a alguns prédios pequenos de diversos tipos e poucas casas remanescentes (figura 5). Uma verdadeira salada espacial, com diversos padrões de ocupação do solo, afastamentos, alturas e interfaces com a rua. Os reflexos negativos na qualidade ambiental são inquestionáveis, tanto do ponto de vista da salubridade do interior e da periferia da quadra quanto da vitalidade e dinâmica social das ruas. Sombreamento do espaço público e privado, poluição sonora, diminuição da arborização, aumento do tráfego veicular, impermeabilização do solo, total ocupação das ruas por automóveis estacionados e demais sub-produtos da alta densidade (coisas singelas como "flanelinhas", carga e descarga, tele-entregas, etc.) são apenas a face visível do processo de adensamento indiscriminado. Poderíamos falar ainda no próprio conceito de "vizinhança", ou comunidade local, totalmente desvirtuado quando da substituição de pequenas edificações por construções de grande porte, gradeadas, muradas e estanques do ponto de vista do contato positivo entre o interior e o exterior. Grandes edifícios autocontidos, voltados para dentro, geram uma espécie de vácuo em seu entorno imediato, um verdadeiro "não-lugar" urbano. A legibilidade da cidade, as referências visuais e o equilíbrio entre tecido recorrente e excepcionalidades morfológicas também são prejudicadas, mesmo que essas questões não sejam conscientemente apreendidas pelo cidadão comum.

Aliado ao modelo de densificação do PDDUA há o fenômeno contemporâneo da aceleração da industrialização da construção civil – o que é salutar e desejável do ponto de vista da evolução dos sistemas produtivos e do desenvolvimento econômico – mas que leva à um desequilíbrio do delicado jogo de forças entre interesses coletivos e interesses privados. É um processo conjuntural altamente concentrador, limitando a poucas corporações o poder de investimento e, conseqüentemente, de controle do mercado, inclusive com a exclusão das pequenas e médias empresas (e toda a rede de profissionais envolvidos na cadeia produtiva) do mercado das áreas "nobres" (as mais centrais e, geralmente, com maiores índices construtivos). Os chamados "espigões" nada mais são do que edifícios padronizados – geralmente com 13 a 18 pavimentos e aspecto repetitivo, assemelhando-se exageradamente uns aos outros – "pré-fabricados" no seio da grande indústria e que se multiplicam indistintamente pela cidade radiocêntrica. São produtos, na verdadeira acepção do termo, e que, uma vez otimizados em seu processo de concepção e construção – processo este acessível apenas a poucos empreendedores e grupos de investimento – e ajustados em suas planilhas de custos, consolidam-se definitivamente como parâmetro produtivo ótimo, a ser adotado, multiplicado e seguido pela concorrência.

É a lógica mercadológica, irrefutável do ponto de vista da dinâmica capitalista. Muito bem. Entretanto, a cidade não pode ser simplesmente transformada em linha de montagem nem submetida exclusivamente aos interesses da indústria (aliados ao interesse do poder público em arrecadar recursos com a venda do solo criado), especialmente quando a "matéria-prima" para a fabricação destes produtos é a terra. A enorme demanda por terrenos leva a um processo até então raro de remembramento de três, quatro ou quantos lotes forem necessários para a viabilização do produto. Antes, tinha-se o espaço de um lote e buscava-se a melhor solução tipológica para ocupá-lo; hoje, têm-se um produto pré-configurado e busca-se o espaço necessário para implantá-lo, às custas da desestruturação fundiária e da conseqüente degradação espacial.

Conclusão

Nossos bairros têm características singulares, aspectos físicos, funcionais e simbólicos próprios, paisagens e morfologias peculiares, guardando a história da cidade em si e construindo ao longo dos tempos um imaginário coletivo e uma real condição de uso e fruição da cidade que a distingue de todas as outras. Isso é inegável e é justamente o que faz de Porto Alegre uma cidade "especial". Aqui adentramos a questão subjetiva, mas essencial, da ambiência urbana e seus reflexos sobre o cotidiano dos habitantes da cidade; a questão da "qualidade de vida", expressão um tanto surrada, mas inteligível por todos, especialmente quando ela começa a degradar-se. Pois é justamente ao tratarmos desse assunto, que, se se admite o debate sobre a tipologia mais adequada para as inúmeras áreas e ambiências que compõem nossa urbe, se permite-se a discussão entre verticalização ou horizontalização da cidade, exige-se que essa discussão seja feita em bases mais complexas e articuladas, com real participação de todos os envolvidos e um equilíbrio inteligente entre a abordagem técnica, o interesse econômico e as demandas coletivas. A visão imediatista e pragmática que tem predominado nas discussões sobre o Plano Diretor não faz jus à capacidade do porto-alegrense e, em pleno século XXI, subestima nossa tradição cultural e intelectual. Propor e tomar partido de padrões de densidade que se refletem em padrões espaciais e ambientais pasteurizados e simplistas (para não dizer simplórios), homogeneizando a paisagem na direção de um cenário pobre e ordinário, é desmerecer a cidade de Porto Alegre e comprometer definitivamente a qualidade do legado que deixaremos às gerações futuras.

sobre o autor

Júlio Celso Vargas é arquiteto, mestrando no PROPUR-UFRGS e professor do Centro Universitário Ritter dos Reis em Porto Alegre.

comments

039.07
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

039

039.00

Roberto José Goulart Tibau, 1924–2003

Gilberto Belleza

039.01

O fim de uma profissão

Benjamin Barney Caldas

039.02

Novas fronteiras e novos pactos para o patrimônio cultural

Cecília Rodrigues dos Santos

039.03

Concursos de arquitetura: exploração ou oportunidade de crescimento?

Edson Mahfuz

039.04

Arquitetura urbana em Blumenau

Vilmar Vidor

039.05

Novas Igrejas Protestantes: um programa arquitetônico?

Maurício Felzemburgh, George Gomes and Elisa Fialho

039.06

Novas tecnologias versus desenvolvimento urbano

Roberta Nascimento Saint Clair dos Santos

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided