Vila Canoa (2) é uma pequena ocupação de origem irregular que compõe o território da cidade do Rio de Janeiro. Denominada “comunidade”, integra a estatística dos quase 20% da população em áreas informais e está localizada, como grande número delas, às margens da área urbanizada e legal – neste caso, o bairro de São Conrado, zona sul da cidade. A pequena faixa de terra no fundo de um vale – 2,2 ha e diferença de cota de até 15 metros – é delimitada por três ruas e o rio Canoas. No mesmo bairro de São Conrado, na encosta do maciço da Tijuca, está localizada a maior das favelas cariocas, a Rocinha, com mais de 56.000 habitantes ocupando uma área de 144 hectares (3).
O aglomerado formou-se ao longo dos últimos 65 anos a partir de pequenas casas para empregados do Gávea Golf Club, que constituíram a comunidade de Pedra Bonita: uma ocupação rarefeita, junto à encosta, limitada pelo rio. Para estes moradores (e seus descendentes), o vínculo com o emprego no clube era a garantia da casa. A perda deste vínculo gerou o que se conhece hoje como Vila Canoa – ocupando a outra margem do rio. Protegida na época por densa floresta, Vila Canoa foi atraindo imigrantes de outros estados. Havia, apesar das dificuldades de prover a própria casa e da ausência dos serviços necessários, a certeza de trabalho na construção civil na crescente evolução da ocupação dos bairros de São Conrado e Barra da Tijuca.
Na década de 1970, realizou-se a primeira tentativa de regularização através do programa do governo do estado “Cada Família, Um Lote”. Na ocasião foram contemplados 93 domicílios, identificados dentro do traçado original de quadras e lotes. Um sistema de abastecimento de água – construído pelos próprios moradores – e uma rede precária de esgoto foram, aos poucos, complementados pelo serviço de uma rede elétrica; pela implantação de vias de acesso aos loteamentos do bairro formal e pela construção de uma creche privada, uma escola e um posto de saúde públicos.
O saber adquirido no trabalho da construção civil e a falta de alternativas de acesso à compra da moradia impôs a estes moradores, a condição de autopromotores: da estrutura das edificações, às instalações elétricas e hidráulicas ao estabelecimento de regras comunitárias.
O programa Favela-Bairro
As políticas habitacionais e demais iniciativas governamentais de provisão de casas e de infraestrutura urbana nunca foram suficientes para atender à demanda. Um número cada vez crescente de ocupações aonde a legislação não permitia “cidade”, determinou a constituição, em 1993, do grupo Especial de Assentamentos Populares – GEAP – cujo trabalho resultou no programa “Favela-Bairro”. Construir “cidade” onde havia “casa” foi uma das premissas desta iniciativa do governo municipal que, ao longo dos últimos dez anos transformou cerca de 100 favelas em bairros, atendendo a uma população de 120 mil habitantes.
Obras de implantação de uma rede viária que permitisse o acesso aos serviços públicos de água, esgoto, drenagem, iluminação pública, coleta de lixo domiciliar, complementaram-se com a construção de equipamentos comunitários – creche, posto de saúde, quadras esportivas, oficinas de geração de renda, entre outros. Vários escritórios multidisciplinares, escolhidos por concurso público de metodologia e coordenados pela Secretaria Municipal de Habitação, elaboraram planos de intervenção, iniciativa até então inédita na cultura urbanística brasileira. Considerando-se a dificuldade de elaboração de bases cartográficas, de consolidação de uma metodologia e de definição de soluções possíveis, o programa representou o trabalho simultâneo em várias áreas na cidade. Aos recursos próprios do Município, destinados para as 15 primeiras favelas, somaram-se os provenientes de convênios com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), União Européia e Banco Mundial (BIRD).
Do ponto de vista da inclusão social – e não só urbanística – foram criados programas ligados, por exemplo, à geração de renda, ao esporte e lazer, gari comunitário e reflorestamento de encostas. Foi criada também, uma linha de micro-crédito destinada à reforma e construção de casas e a iniciativas de trabalho.
O grande desafio se tornou, na realidade, o acompanhamento e controle da expansão das áreas beneficiadas pelo programa. Denominados Pousos, o Postos de Orientação Urbanística e Social, hoje subordinados à Secretaria Municipal de Urbanismo, têm como atribuição final a regularização urbanística através da concessão – por domicílio – de um documento denominado “habite-se”. A regularização fundiária é feita posteriormente e na esfera do direito privado.
Habite-se, deriva de habitar, ter condições de moradia salubre, saudável, suficientemente iluminada e arejada. Aquilo que resulta, nos procedimentos da cidade formal, da aprovação de um projeto, após o trâmite através de vários órgãos – corpo de bombeiros ou proteção de bens culturais, por exemplo – e do atendimento a um grande número de legislações específicas é, para estas áreas declaradas “Áreas de Especial Interesse Social”, um procedimento à posteriori. A nova legislação resulta da elaboração de um mapa cadastral contendo a definição de espaço público, o uso e ocupação do solo, os limites para a expansão vertical e horizontal e a identificação das áreas de risco geológico. Cabe aos Pousos a elaboração e fiscalização destes parâmetros, a articulação com os vários órgãos responsáveis pela manutenção física e a promoção social. O veto das construções irregulares não tem sido complementado, infelizmente, e em algumas situações, com ações de demolição.
O Plano de Intervenções de Vila Canoa
As áreas de Vila Canoa e Pedra Bonita, apesar da conflitante situação fundiária de cada uma: a primeira, em parte já titularizada pelo programa “cada família, um lote” e a segunda, na ocasião sob responsabilidade de um único proprietário privado (Gávea Golf Club), foram agrupadas e objeto de um sub-programa do Favela-Bairro denominado “Bairrinho”. O financiamento das obras resultou de um convênio com a União Européia através da ONG Come Noi. Em 1997, data dos primeiros diagnósticos, foram contabilizados 356 domicílios. Hoje, segundo os dados do Posto de Saúde de Vila Canoas, são 588 famílias. Foram construídos: uma creche; um Centro Municipal de Atendimento Social – CEMASI, com programas assistenciais para todas as faixas etárias –, o Posto de Saúde da Família e o Pouso. Do ponto de vista da estrutura urbana, a implantação o projeto de melhoria da acessibilidade irá se complementar, no futuro, com a construção de uma via-canal junto ao rio e de outras pequenas praças. Esta etapa da obra depende ainda de decisões que se referem à remoção e relocação de cerca de 140 famílias que estão em área de risco, sobre o rio Canoas. O terreno é todo permeado por um sistema de pequenas vielas que finalizam junto ao muro que separa o rio. Há um comércio bastante ativo de pequenos restaurantes e bares localizados nos limites com a cidade formal. A população encontra-se numa faixa de renda entre 3 e 5 salários mínimos (4). Há porém, enorme discrepância entre o padrão das casas: as que estão próximas ao rio ou no pavimento térreo são as de pior condição de higiene – falta de ventilação e iluminação natural.
Um dos desdobramentos positivos da implantação do programa Bairrinho em Vila Canoa foi o projeto “Bela Favela” realizado, em 2001, pela mesma equipe responsável pelo plano de intervenção, a ArquiTraço. Em parceria entre a ONG Come Noi e a Associação de Moradores de Vila Canoa, este projeto-piloto visou à recuperação de fachadas das edificações com aplicação de revestimento artístico pelos próprios moradores, associando criatividade à promoção de saúde. Nota-se que, dentro do enorme esforço de auto-promoção da moradia, o revestimento externo é muitas vezes dispensado.
Vila Canoas continua atraindo novos moradores (e turistas). É crescente o número de subdivisões para aluguel de unidades residenciais. O principal trabalho a ser feito é o de conscientização sobre o morar saudável. Vila Canoas será, para seus habitantes, finalmente uma estrutura urbana perene, com a sua graça peculiar.
notas
1
Artigo publicado originalmente no número especial, dedicada ao Brasil, da revista suíça Tracés. SALOMON, Maria Helena Röhe. “ Programme Favela-Bairro, le cas de Vila Canoa“. Lausanne, Tracés, n° 15/16, ano 131, 17 agosto 2005, p. 30-32. As partes deste número são os seguintes:
SALOMON, Maria Helena Röhe. "Programa Favela-Bairro: construir cidade onde havia casa. O caso de Vila Canoa". Arquitextos, Texto Especial nº 331. São Paulo, Portal Vitruvius, set. 2005
2
Denomina a área formada pelas comunidades de Vila Canoa e Pedra Bonita.
3
Fonte: IBGE. Censo, 2000.
4
O salário mínimo no estado do Rio é de R$ 326,00.
sobre o autor
Maria Helena Röhe Salomon é arquiteta e urbanista. Estudou planejamento urbano e regional para países em desenvolvimento em Veneza, Itália. É arquiteta da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro