É bem provável que toda uma geração de arquitetos brasileiros hoje com mais de quarenta anos tenha entrado em contato nos primórdios da sua formação com práticas didáticas que, direta ou indiretamente, procuravam aguçar a sensibilidade da sua percepção para as qualidades imanentes das configurações formais abstratas e da matéria que as constituía. Tais práticas, nitidamente vinculadas às vertentes formalistas das artes visuais, remetem a uma tradição de ensino que se difundiu a partir da Bauhaus (1) e que marcou forte presença nos ciclos fundamentais dos cursos de arquitetura no Brasil a partir de meados do século vinte (2).
Apesar da extenuação da força quase hegemônica tradição Bauhausiana no ensino de arquitetura, o desenvolvimento da sensibilidade perceptiva ainda hoje tem o seu espaço no ensino de nível fundamental entre as escolas brasileiras, porém, já não necessariamente atreladas às práticas de vinculação moderna (3). Atualmente as preocupações com a aprendizagem da percepção aparecem também sob outro registro: o da experiência corporal com o ambiente construído. Aqui a percepção já não se limita mais a uma prática visual que se desenvolve no contato com a forma abstrata, em circunstância pré-arquitetônica, mas surge aliada à idéia de uma complexa corporeidade, pensada sempre a partir da experiência atual com o espaço. Este atraente desvio acolhe certas noções de espaço e corporeidade que afetaram o pensamento arquitetônico a partir da segunda metade do século vinte e que segue interessando à prática do ensino de arquitetura.
Pretendendo-se ciente destas tradições e sensível à importância de se manter o ensino de arquitetura próximo dos processos de produção relacionados ao espaço construído – seja o da produção de subjetividade na relação espaço-corpo, seja o da produção do próprio espaço arquitetônico através da concepção do projeto – este texto propõe discutir algumas noções que parecem poder contribuir para uma reflexão acerca da aprendizagem da percepção na sua tangência com o campo específico da arquitetura e seu ensino.
Corporeidade e espaço vivido
É sabido que os esforços da filosofia de cunho fenomenológico ou existencialista contribuíram decisivamente para estruturar toda uma teoria da experiência arquitetônica e amparar a defesa das noções de ambiente e lugar fortalecidas na revisão do movimento moderno após o final da segunda guerra. (4) Contrapondo-se ao modelo do espaço cartesiano – matemático, transparente à razão – emergia a noção de um espaço da experiência, existencial. Arquitetura e cidade passavam a ser pensadas em continuidade à nossa corporeidade, ligadas à experiência atual, embora não desvinculadas do nosso horizonte histórico e cultural. Na esfera específica da percepção, mais próxima do corpo, uma contribuição significativa veio com a aproximação da fenomenologia de Merleau-Ponty, que ajudou a sustentar discursos favoráveis a uma arquitetura mais sensualista, onde a corporeidade aparece explorada nas suas múltiplas camadas sensíveis e é vista protagonizando falas em defesa de experiências não ordinárias com o ambiente construído. (5)
Levando adiante as noções de espaço e corporeidade defendidas pela fenomenologia da percepção, algumas perspectivas filosóficas mais recentes utilizam uma imagem de complexa simultaneidade para falar da nossa existência espacial. (6) Aqui as apreensões fenomênicas não se separam das demais dimensões que atuam nos processos de subjetivação, mesclando-se a planos cognitivos e afetivos, possibilitando composições ao mesmo tempo abertas e imprevisíveis. Os espaços – no plural – se desdobram para além da percepção direta que, de saída, não é um canal isento na relação do corpo com o seu meio, mas faz parte de uma espécie de sistema mediador que promove aproximações criadoras da realidade percebida. É neste sentido, por exemplo, que Félix Guatarri (7) propõe pensar um “folheado” sincrônico de espaços heterogêneos, cogitando a existência de múltiplos espaços de virtualidade – portanto potenciais – que emergem na nossa relação corporal com o ambiente. Estes espaços musicais, afetivos, memoriais, etc., se comporiam entre si podendo alavancar sutis universos de sensações e de sentidos dos quais a percepção é um componente ativo, mas não exclusivo.
Este modo de se abordar a corporeidade – uma noção que acolhe a percepção, mas que se estende para além dela – tem uma ligação fundamental com a idéia de produção de subjetividade presente na obra de Deleuze e Guattari. (8) A subjetividade contrapõem-se a idéia de um sujeito pré-existente e é inseparável da noção de produção. Suas formas, sempre provisórias, em devir, são resultantes do jogo de forças e agenciamentos que é imanente à nossa presença corpórea e afetiva no mundo. O indivíduo está em permanente processo de subjetivação, do qual o seu corpo é ao mesmo tempo um agente produtor e um produto. A percepção, então, não é invariante, determinada exclusiva e completamente por sua organização fisiológica, mas faz parte, ela também, deste jogo dinâmico de produção.
A cognição inventiva e a produção de um corpo sensível
Partindo de tais noções pretende-se sustentar que a aprendizagem da percepção pode ser entendida como a produção de um corpo sensível e não como um ganho linear na direção de perceber a realidade de modo mais correto ou verdadeiro. Para abordar este tema com maior precisão serão aproximadas algumas noções obtidas na vertente fenomenológica das ciências cognitivas contemporâneas, cujo entendimento da percepção e da cognição encontra ressonâncias no conceito de produção de subjetividade acima descrito (9).
Pode-se tomar como referência o trabalho dos biólogos Francisco Varela e Humberto Maturana (10), que fazem uma crítica direta ao pressuposto filosófico de que conhecer é o mesmo que representar (11). Sob tal ponto de vista, a cognição corresponderia à captação de informações presentes do mundo externo e à construção, por parte do indivíduo, de representações internas a ele correspondentes. Neste mecanismo a percepção operaria a transmissão dos dados, transportando-os da realidade exterior para o interior do sujeito cognoscente. O organismo (sujeito) e a realidade (objeto) seriam vistos como entes distintos e pré-existentes, cuja relação dependeria do funcionamento invariante da cognição.
Varela e Maturana propõem uma outra via para o entendimento deste processo, sugerindo que meio e organismo não pré-existem à relação. Eles propõem pensar os organismos como seres que estão em constante processo de produção de si no embate com o meio, num incessante engendramento de suas próprias estruturas. O meio não é como um espaço ou continente onde o organismo vai situar sua existência, mas é constituído pelo organismo como seu ambiente de vida. A estrutura do organismo, por sua vez, resulta da história de seus acoplamentos com meios específicos, ou seja, da interação com as irregularidades do mundo material. A cognição seria, dentro desta perspectiva construtivista, o processo de produção mútua do meio pelo organismo e vice-versa. A percepção, como parte deste jogo, estaria também ela em produção incessante, não sendo um simples canal cujo funcionamento é pré-definido.
É partindo destas noções que a psicóloga Virgínia Kastrup propõe a idéia de uma cognição inventiva (12), afastando-se de uma tradição teórica cuja busca consiste justamente em determinar as marcas invariantes da cognição. Entendida como algo que não está fora do tempo, a cognição como invenção se caracteriza pela a possibilidade de ver-se diferir de si própria, de diferenciar-se na duração. Abre-se, então, espaço para cogitar a possibilidade de uma invenção da cognição, que por sua vez poderia estar atrelada a uma produção de diferenças na percepção, ou, se quiser, a uma invenção de posturas perceptivas.
Assim, perderia sentido a idéia de que o desenvolvimento da percepção significaria apreender o espaço de modo mais fiel à sua “verdadeira” realidade, já que a própria percepção atua na construção desta realidade e não a toma como algo dado, passível de uma apreensão objetiva. Por esta razão o mundo percebido será dito “emergir”, ou “fundar-se”, no contato sensível que travamos com ele. Ele será de fato produzido nesta relação, onde a percepção é também ela própria produzida. Além disso, a noção de uma percepção que pode diferir de si mesma permite que o aprendizado da sensibilidade perceptiva possa ser entendido como o aprendizado de um engajamento sensível, da invenção de postura que podem ser diferentes a cada caso. Este ponto de vista termina por desautorizar eventuais pretensões no sentido de que o aprendizado da percepção poderia ocorrer exclusivamente através da assimilação de teorias acerca do funcionamento dos sistemas perceptivos ou pela eventual comprovação empírica (em circunstâncias controladas) de alguns dos seus princípios invariantes. Ele é, ao contrário, um conhecimento que se exerce, que é igual a um fazer (13). Deste modo, ao invés de uma aprendizagem sobre a sensibilidade ou sobre a matéria sensível, aqui se estará sempre falando de uma aprendizagem da sensibilidade em contato com a matéria sensível, uma aprendizagem do corpo com o espaço. Em última instância, se tratará sempre do aprendizado da produção de corpos sensíveis.
Pistas para pensar a aprendizagem da percepção na formação do arquiteto
Tendo as noções apresentadas acima, como referência para se pensar a aprendizagem da produção de corpos sensíveis, serão apresentadas a seguir algumas pistas que podem contribuir para reflexões acerca de práticas didáticas relacionadas à aprendizagem da percepção considerando nossa complexa relação corporal com o espaço. Haverá quatro pontos de apoio – as noções de diferenciação, postura atencional, matéria sensível e articulação – que aparecerão acompanhados da descrição de exercícios didáticos visando fornecer um solo concreto à discussão e permitir uma aproximação pertinente com o campo problemático da arquitetura.
Diferenciação
Talvez a via mais recorrente para se abordar a aprendizagem da percepção seja através do conceito de diferenciação (14). Proposto por Eleanor Gibson (15) na década de 1950, a diferenciação refere-se à capacidade de se perceber sutis diferenças nos fenômenos. Seu aprendizado na apreensão de traços que antes passavam despercebidos ou surgiam embaralhados no campo perceptivo. Trata-se exatamente da reconhecida habilidade dos enólogos em distinguir entre os vinhos certas características que não são sequer notadas por alguém sem o mesmo preparo. A diferenciação torna possível decompor uma certa dimensão perceptiva (16) em múltiplas dimensões, mais numerosas e mais sutis, incrementando a gama de atributos discerníveis em um mesmo percepto. É como poder distinguir, nas cores, diferentes valores de matiz, tons e saturação, ou, no paladar, traços específicos relativos à acidez, à doçura e ao amargor. O sentido do aprendizado é, portanto, o do aumento de camadas designáveis do sensível, resultando em uma espécie de ganho de espessura por parte do mundo percebido.
Normalmente a descrição da aprendizagem da diferenciação aparece circunscrita por uma dimensão específica, estando freqüentemente relacionada à realização de tarefas determinadas, ou como uma habilidade instrumental que pode ser desenvolvida com treinamento intenso. Um claro exemplo é a preparação dos profissionais que atuam na indústria de perfumes. Bruno Latour, (17) se refere a este processo como uma “produção de narizes”, sugerindo que os aprendizes passam a possuir um órgão capaz de diferenciar odores antes imperceptíveis. O aprendizado envolve o uso de um kit que contém essências arranjadas de um modo específico, fazendo com que se perceba, nos primeiros estágios, apenas odores fortemente contrastantes. Ao longo do processo, porém, passa-se a poder distinguir entre amostras com contrastes cada vez mais tênues.
Dentro do campo de interesse da arquitetura, pode-se mencionar os exercícios propostos no Vorkurs da Bauhaus, como os realizados no atelier da forma de Moholy-Nagy, onde o desenvolvimento da sensibilidade tátil por parte dos estudantes se dava através de procedimentos bastante sistemáticos (18). Iniciava-se com a construção de tábuas, rodas ou faixas contendo diferentes matérias formando seqüências gradativas que iam, por exemplo, do áspero ao suave ou do pontiagudo ao rombudo. Percebendo as sutis diferenças entre as amostras, os estudantes deveriam produzir “diagramas táteis”, gráficos onde os perceptos poderiam ser graduados em escalas correspondendo a cada uma das dimensões estabelecidas, como, por exemplo, aspereza, temperatura ou tenacidade.
Como foi sugerido, estas práticas vinculadas a uma dimensão específica da percepção permitem alcançar uma espécie de competência perceptiva, um certo conhecimento em profundidade de determinada esfera do mundo sensível. Não por acaso, os exercícios da Bauhaus se concentravam em dimensões que seriam de grande valor para o trabalho nas oficinas da escola, como o tato, as cores, as texturas e as configurações formais. De fato a possibilidade de uma distinção aguda de certos atributos da matéria certamente interessa ao arquiteto em circunstâncias específicas, como na escolha de cores, na avaliação do equilíbrio visual de certa composição formal ou na opção por um determinado tipo de material com base nas suas características fenomênicas. No entanto, é também possível pensar a diferenciação em contextos menos controlados, como na complexa relação corporal que temos com o espaço.
Neste caso, restringir a sua aprendizagem a uma dimensão apenas ou concentrá-la em dimensões específicas sem explorar o cruzamento entre elas significa manter-se afastado da multiplicidade sensorial que caracteriza a experiência atual com a arquitetura. Por esta razão, talvez a operação de diferenciação na percepção mereça ser pensada alternativamente, sob uma ótica menos estrita, onde ela apareceria como a capacidade de distinguir entre os múltiplos perceptos e de designar esferas sensíveis mais sutis sem restringir-se a uma única dimensão, ou seja, sem o compromisso com uma hierarquia pré-definida entre os sentidos.
Um exemplo de prática didática que aponta nesta direção é realizado no Estúdio Dois, disciplina do segundo semestre do curso de arquitetura e urbanismo da UnilesteMG. (19) O primeiro exercício do semestre, denominado “Interpretando o Espaço: PROSPECÇÕES”, propõe que os estudantes vivam um acontecimento concebido por eles próprios, normalmente descrito pela combinação de um verbo intransitivo e um advérbio de lugar: “escovar os dentes pela casa”, “cortar cebola na cozinha”, “tomar café na beira da estrada”. Durante o acontecimento, os alunos devem direcionar sua atenção para o contato com o mundo percebido, mantendo-se abertos para explorar as inúmeras dimensões sensíveis que poderão afetar sua relação com o ambiente. Um aporte teórico auxilia na compreensão do funcionamento dos sistemas perceptivos e suas interações, fornecendo aos estudantes um vocabulário que lhes será útil ao descreverem a experiência em detalhes. Com isso, os perceptos ganham traços de singularidade e a participação de cada dimensão do sensível pode ser mencionada especificamente. Ao fim os alunos produzem um documento que narra a experiência trazendo narrações descritivas, diagramas, registros simbólicos e relatos afetivos acerca do acontecimento.
A exploração da diferenciação exercitada neste contexto não se dá exatamente pelo ganho de espessura de uma determinada dimensão perceptiva, mas se estabelece na “decupagem” dos complexos arranjos sensoriais experimentados pelo estudante. Percorrendo as múltiplas camadas do horizonte percebido, explorando e desdobrando os inúmeros perceptos que lhe aparecem, ele se vê capaz de designar que porções do mundo sensível estão atuando, e de que modo, na emergência das sensações. É assim, que perturbações triviais como o barulho impertinente dos carros trocando de marcha ao abrir o sinal, ou o clarão quase ofuscante do chão de cimento, ou ainda a brisa que anula o calor do sol cada vez que acha passagem entre as casas passam a fazer parte da experiência de um novo modo, agora dotadas de traços de distinção e singularizadas no emaranhado do mundo percebido.
Postura atencional
A produção de um corpo sensível encontra um forte aliado no manejo da postura atencional por parte daquele que percebe. A atenção, que pode ser entendida também a partir do conceito de intencionalidade presente nos primeiros estudos da fenomenologia, (20) opera transversalmente em relação à percepção. Com caráter fluido e seletivo ela é uma espécie de modulador da consciência, ou seja, é o que torna a percepção capaz de concentrar-se em determinados aspectos do mundo percebido enquanto coloca outros entre parêntesis. Sem uma aprendizagem da atitude atencional a percepção não consegue ser operada intencionalmente. É importante mencionar que há diferentes modos de funcionamento da atenção, podendo estar ligados a distintos modos de produção do corpo. Por exemplo, na diferenciação, especialmente quando restrita a uma dimensão específica do sensível, é de suma importância conseguir estabelecer um foco atencional que possibilite suspender temporariamente a sua tendência oscilante e manter “afastados” os perceptos que não interessam à ocasião.
Pode-se também cogitar posturas distintas, como aquela em que a atenção é relativamente aberta e não se detém em uma dimensão específica, embora permaneça concentrada na esfera do sensível. No exercício da UnilesteMG mencionado acima é possível supor, a partir das ações descritas, que a postura atencional dos estudantes opera justamente nesta chave. Sem estar restrita a uma porção específica do mundo sensível, ela parece poder deslizar entre diferentes esferas do mundo percebido, se permitindo até mesmo desviar dos perceptos e visitar outras camadas por eles afetadas pela experiência. São, por exemplo, atravessamentos de lembranças, afetos que emergem inesperadamente na experiência, ou sensações simplesmente inomináveis. Trata-se de uma postura onde a atenção oscila, mas não perde de vista as sensações e sua relação com a percepção. Ela é ao mesmo tempo concentrada e aberta, permanece à espreita, garimpando no universo sensível sem se deter em um foco exclusivo. Não por acaso o exercício propõe empreender “prospecções espaciais” no ambiente urbano ou arquitetônico, que se caracterizam por uma complexa simultaneidade de estímulos.
Este tipo de postura atencional encontra ressonâncias, por exemplo, nos esforços de autores como Paola Jaques, (21) que defende um contato mais franco dos arquitetos e urbanistas com a cidade. Vendo nas errâncias urbanas uma veia potente para estabelecer este tipo de relação sensível, a autora destaca a corporeidade como um canal afetivo privilegiado e que deverá fazer-se aberto, ainda que à espreita, no embate com o ambiente. Ainda assim, parece fazer questão de não prescrever nenhuma espécie de hierarquia que estabeleça privilégios a uma ou outra esfera do universo sensível. Parece haver uma compatibilidade entre esta estratégia, que é ao mesmo tempo ativa e passiva, vagante e interessada, e um certo funcionamento “errante” da atenção, um modo por sua vez aberto e concentrado, deslizante e ainda assim fortemente conectado com o universo que atravessa.
Matéria Sensível
Mas se a postura atencional e a capacidade da diferenciação correspondem a atitudes exercidas por aquele que percebe sobre o próprio corpo, é preciso também destacar a participação fundamental da matéria sensível na aprendizagem da produção de um corpo sensível. Mais do que simplesmente fornecer os estímulos para o aprendiz testar a sua sensibilidade, o ambiente e os objetos presentes no processo podem ser pensados como verdadeiros instrumentos didáticos. Retomando as idéias de Varela e Maturana, cabe lembrar que a percepção, como uma componente da cognição, pode se diferenciar de si mesma no contato com o mundo, ou seja, ela se produz distintamente sensível conforme os acoplamentos que o organismo estabelece com o seu meio. Em todos os exemplos apresentados até aqui, o material trazido pelos proponentes das práticas didáticas funciona como uma espécie de dispositivo com o qual o estudante se agenciará produzindo diferenças no modo de perceber.
Propõe-se então falar em pelo menos três tipos de situações – sem a pretensão de esgotar o assunto – onde a relação direta com a matéria surge em uma posição chave nos processos de aprendizagem da percepção. A primeira delas diz respeito à seleção de materiais com o propósito de destacar suas qualidades sensíveis. Um exemplo são os exercícios de contrastes propostos por Johannes Itten também no Vorkurs da Bauhaus, onde o desenvolvimento da sensibilidade perceptiva era perseguido através da cuidadosa produção e seleção, por parte dos próprios estudantes, de arranjos materiais que deveriam ser agrupados em pares ou graduados em escalas que teriam como referência dois extremos fortemente contrastantes. (22) Utilizando sempre esta mesma premissa para organizar a matéria, produzia-se conjuntos de diferentes tipos de texturas, escalas com valores de cinza, arranjos de cores, transparências, etc. Tais organizações têm algumas semelhanças com o kit de odores descrito por Latour ou com as rodas e tábuas produzidas pelos alunos de Moholy-Nagy. Em todos os casos, não seria qualquer material que produziria o mesmo tipo de resultado, mas havia sempre uma seleção criteriosa baseada nas suas propriedades sensíveis. Era a diferença entre as amostras e as suas gradações que dava ao estudante a chance de perceber as sutis variações em determinada dimensão sensível.
Cedendo à tentação de transportar esta mesma lógica para situações de maior complexidade sensorial no contato direto com a arquitetura ou com a cidade, se poderia cogitar, hipoteticamente, uma prática didática que envolvesse a seleção de exemplares cujas configurações materiais, por seus contrastes e paralelismos, terminariam por facilitar a designação de determinados atributos sensíveis do espaço arquitetônico. Assumindo um propósito operativo visando à concepção do projeto, uma prática como esta permite destacar determinadas porções do universo perceptivo em função de intenções específicas. Por exemplo, o barulho da feira poderia tornar mais silenciosos os ecos da catedral; o vazio de um pátio doméstico poderia trazer em si um pouco da serenidade de um claustro silenciosamente iluminado; a diferença entre os pés-direitos de dois espaços distintos em um mesmo edifício poderia dizer algo sobre os seus propósitos funcionais ou expressivos dentro daquela arquitetura. Com isso, se configura o que parece ser uma válida ferramenta na criação, por parte do estudante, de um estofo de experiências corporais “interessadas” do ponto de vista da concepção arquitetônica, fortes aliadas da formação de repertório e da reflexão sobre as possibilidades da arquitetura.
Outra prática em que a matéria sensível assume o papel de agenciadora na aprendizagem da percepção é através do seu manuseio direto em situações de fabricação ou de criação expressiva. O que se quer destacar aqui é o jogo de experimentação que se estabelece, em que o estudante atua sobre a matéria sensível afetando-a, manipulando-a, mas também se vê afetado pelas conseqüências das suas ações. Os intervalos deste percurso pendular oferecem espaço para o emprego de um olhar avaliativo por parte do estudante e do professor, permitindo que sejam provocados desvios no andamento do processo. Dependendo dos critérios propostos pelo exercício ou da finalidade do objeto criado, o estudante deverá dispor de uma atitude perceptiva atenta às qualidades sensíveis do artefato que produz. São bastante freqüentes nos períodos iniciais dos cursos de arquitetura práticas de fabricação de modelos ou de experimentação com a matéria. A atenção para a qualidade dos acabamentos, a avaliação do resultado de certas configurações formais, a seleção dos materiais, a observação dos efeitos de uma ação transformadora sobre a matéria, por exemplo, constituem momentos de uma prática expressiva em que se pode de exercer de modo avaliativo a apreensão sensível da matéria. A aprendizagem deste olhar, desta postura atenta aos fenômenos, já ocorre dentro da ação, na prática imanente de um saber-fazer.
Por fim pode-se mencionar uma terceira situação onde a matéria possibilita agenciamentos potentes na direção da invenção de um corpo sensível. Trata-se da utilização de dispositivos materiais como meio de produzir diferenças na percepção, verdadeiros acoplamentos que têm por efeito criar mutações no modo como se apreende o mundo. Para ilustrar este tipo de prática pode-se descrever o segundo exercício realizado no Estúdio Dois da UnilesteMG, denominado “Materializando a Ação: BIOMECANISMOS”, onde os estudantes constroem aparelhos que serão acoplados ao próprio corpo como próteses perceptivas. Os “biomecanismos” são compostos por diversos dispositivos corporais como tapa-olhos, estruturas limitadoras do movimento, roupas que comprimem a pele, aparelhos de ouvido, câmaras de eco, calçados perturbadores do equilíbrio, etc. (23) Durante o processo de concepção destas próteses os estudantes perseguem de modo consciente a produção de transformações temporárias na percepção, freqüentemente discutindo o funcionamento dos sistemas sensoriais e experimentando no próprio corpo as possibilidades de mutação.
Sob certo ponto de vista esta prática didática provoca uma curiosa inversão no jogo de experimentação com a matéria. O objeto do exercício não é exatamente o artefato construído, o “biomecanismo” em si, mas a própria percepção. É ela que se vê transformada, manipulada, recomposta pelas diversas ações da matéria sobre o corpo. A experimentação torna possível conhecer a corporeidade a partir das suas próprias perturbações e deformações, dando a ver processos que antes sequer eram notados. As constantes conversas sobre as diversas maneiras de provocar diferenças na percepção terminam por criar um campo de discussão e reflexão sobre a experiência atual com o espaço, constituindo momentos de postura crítica em que é possível lançar olhares inteligentes não apenas sobre o corpo e a possibilidade de produzi-lo, mas também sobre os meios materiais para fazê-lo. Ao perceber os efeitos deste tipo de relação entre corpo e matéria, o estudante é exposto a um certo modo de se pensar o papel do ambiente construído na produção da nossa corporeidade, entendendo a arquitetura como um agente capaz de produzir as diferenças no nosso corpo.
Esta via é explorada no terceiro exercício realizado no Estúdio Dois da UnilesteMG, “Tangenciando o Espaço Projetado”, que propõe ao estudante conceber um ambiente arquitetônico. O pressuposto inicial é provocar efeitos sensoriais compatíveis com uma atividade determinada, normalmente proposta pelo próprio estudante. Trabalhando com modelos em escala 1:20, ele é lançado na busca por recursos arquitetônicos, arranjos formais e materiais, que atendam a tais objetivos, num processo semelhante àquele percorrido no exercício anterior. Declaradamente, a arquitetura é tida como análoga aos “biomecanismos”, ou seja, uma estrutura capaz de produzir diferenças no corpo do usuário. Por esta via é dado ao estudante ver que uma determinada situação arquitetônica pode nos levar, por exemplo, a dormir tranqüilos isolando acusticamente o ambiente em que repousamos, ou causar um feliz desvio no nosso cotidiano por meio de um inesperado e sutil jogo de luz, ou ainda provocar situações de instigante desorientação e surpresa ao romper as continuidades visuais do espaço.
Articulações
Finalmente, a última pista proposta para pensar a aprendizagem da produção de um corpo sensível diz respeito ao papel das articulações. Articular, neste caso, significa estabelecer alianças, ligar diferentes perceptos entre si ou conectá-los a elementos que pertencem a universos distintos. Trata-se de encontrar pontos de contato reveladores, aproximações que façam emergir traços marcantes do ambiente ou do objeto percebido.
Ao descrever o treinamento com o kit de odores, Bruno Latour menciona que o aprendiz torna-se capaz de falar sobre os cheiros que aprende a distinguir. Esta operação de designação parece repousar sobre ligações pertinentes entre a experiência atual e sensações já conhecidas, tornando possível o estabelecimento de paralelos ou a construção de categorias provisórias. Na superfície, a contribuição deste processo para a aprendizagem da percepção se dá com a formação de esquemas na memória relacionados às dimensões recém reveladas do mundo percebido, abrindo caminho para a futura assimilação de atributos relativos àquela dimensão específica. Porém, as palavras podem mais do que simplesmente aplicar rótulos ou facilitar reconhecimento de estímulos sensíveis. Com o seu poder de aproximar universos heterogêneos através de metáforas e analogias elas permitem ao estudante operar doações de sentido e com isso revelar traços essenciais, embora antes inomináveis, do mundo percebido.
Mas um percepto não se articula com uma palavra qualquer. Este jogo, embora promovido por associações ambíguas e provisórias, demanda um certo esforço por parte do estudante para que ele proponha qual designação melhor cabe a cada porção do mundo percebido. A busca por uma metáfora convincente não depende exclusivamente de um vocabulário rico. Ela também demanda um escrutínio criterioso do percepto, uma sensibilidade investigativa capaz de encontrar os sentidos que lhe são próprios, que sempre estiveram ali, mas que não haviam até então sido pronunciados. Seja através de leituras poéticas do espaço ou de descrições narrativas das experiências sensíveis – como ocorre nos exercícios da UnilesteMG – a busca pela palavra adequada, que exprima de modo convincente o sentido do fenômeno, estará atrelada a um adensamento na espessura do mundo apreendido, a uma aproximação criativa do real que será mais rica e interessada.
Um exercício didático proposto no segundo semestre da FAU-Ufrj, na disciplina de Concepção da Forma Arquitetônica 2, trabalha sobre semelhantes pressupostos, embora percorra um caminho inverso ao descrito acima. A etapa inicial do exercício de projeto consiste na elaboração de um modelo conceitual em compromisso com uma palavra selecionada pelos próprios estudantes a partir da leitura de um texto. Num processo que dura cerca de três semanas, são propostas articulações diversas em torno da palavra, e não apenas pela via verbal, mas também percorrendo universos de imagens, formas e materiais que possam contribuir para agregar espessura ao seu sentido. A construção de articulações materiais está relacionada a uma busca criteriosa por vinculações criadoras que conectem de modo coerente as realidades fenomênicas da verbalização e da configuração física. O compromisso inicial com a palavra estabelece uma direção para o processo de articulação, mas ambas as partes – palavra e matéria – estão sujeitas a transformações durante o processo. A busca por modos de dizer o percebido, de pronunciar o ainda não dito leva o estudante a situar o mundo percebido ante um horizonte mais amplo de significados, exigindo dele um engajamento sensível que não se esgota na percepção, mas que se funde com uma prática verdadeiramente criadora de doação de sentidos.
Se as articulações operadas pela verbalização contam com a potência exploratória das palavras, é possível atribuir uma força igualmente inventiva ao desenho, especialmente ao desenho de observação.
Uma força articulatória igualmente potente pode ser atribuída ao desenho, especialmente ao desenho de observação. Há nele um compromisso de semelhança estabelecido entre os dois universos visíveis implicados: o mundo que se apreende com a visão e o seu correlato sobre o papel. É a semelhança que orienta, por exemplo, a procura pelos traços adequados na folha para garantir a rugosidade de um terreno pedregoso ou para sustentar a profundidade atmosférica de uma paisagem distante. É um tipo de articulação que implica em uma espécie de captura das marcas que configuram a visualidade das coisas. Este jogo, que não se faz sem um engajamento sensível, é descrito por Merleau-Ponty como um diálogo, onde o observador interroga a paisagem em busca daquilo que a faz visível. (24) O acolhimento do mundo por meio da visão, no entanto, é ao mesmo tempo abertura às coisas segundo aparecem aos olhos e criação promovida pelo olhar. Todo olhar, todo desenho – e, portanto, toda articulação – é também construção. Se as articulações por meio do desenho podem contribuir para a produção de corpos sensíveis, cabe lembrar, com Solá-Morales (25), que não há experiência estética sem mediação, sem a criação de ficções. Não há, portanto, apreensão sensível que atinja as coisas diretamente, ou se quiser, verdadeiramente, mas apenas posturas que podem ser mais ou menos abertas ao mundo percebido. (26)
A prática do desenho de observação como recurso didático está ainda hoje presente nos períodos introdutórios nas escolas de arquitetura e tem entre seus múltiplos propósitos o desenvolvimento da apreensão visual do mundo por parte dos estudantes. Na Disciplina de Fundamentos de Projeto da FAU-USP, por exemplo, o desenho é o conteúdo privilegiado pelos primeiros exercícios do semestre. Utilizando recursos bastante tradicionais, como o desenho do corpo humano, os professores inserem o estudante no seio deste jogo de semelhanças que demanda o lançamento de um olhar atento ao mundo visível e que exercita a construção de articulações visualmente coerentes sobre a folha de papel. Na etapa subseqüente, o desenho de observação é empregado de modo intenso durante as incursões urbanas pela cidade de São Paulo. Os croquis à mão livre se mostram, então, valiosos instrumentos de aproximação do mundo percebido, verdadeiras ferramenta de mediação que levarão o estudante a apreender olhares que serão de fato construtores da paisagem urbana.
Cabe observar, no entanto, que assim como há diferentes modos de se estabelecer relações sensíveis com o mundo, há inúmeras maneiras de articulá-lo, o que permite cogitar a existências de distintas vias para se construir leituras do real. Se em um extremo colocássemos os engajamentos corporais enormemente sensíveis aos fenômenos, no outro se poderia falar em aproximações mais analíticas, que se dirigem à construção de construções abstratas, distantes da experiência atual com o mundo. É possível observar esta amplitude de abordagens tanto no exercício dos percursos urbanos da USP quanto nas prospecções espaciais da UnilesteMG. Ambas as práticas compreendem a produção de registros bastante diversos do espaço urbano, onde as aproximações sensíveis – quer articuladas por descrições narrativas, quer pelo desenho de semelhança – convivem com olhares mais abstratos que têm por efeito criar versões parciais e esquemáticas do real: são diagramas, códigos, gráficos, índices, sínteses, planos. A vantagem da produção destes esquemas de equivalência – que poderiam incluir toda sorte de desenhos técnicos familiares ao arquiteto – é permitir cogitar (em sentido genuinamente cartesiano) as condições materiais de existência do ambiente construído, ou seja, é dar a ver sua realidade física, geométrica, técnica, distributiva, etc. De validade inestimável para a prática da concepção arquitetônica, este tipo de apreensão talvez estabeleça um dos limites da contribuição das articulações para o aprendizado da sensibilidade perceptiva. Justamente no limiar onde as semelhanças dão lugar às representações. O emprego desta postura aponta para uma direção que pode afastar os estudantes de uma ligação estreita com os fenômenos, aproximando-os de uma objetividade abstrata, esquemática. O olhar que demandam já não se detém na visualidade das coisas, já não se preocupa com o modo como emergem na relação com o corpo, nem se interessa pelos afetos que venham a deflagrar ou pelos sentidos que podem expressar e acolher. Trata-se de um olhar inteligível, construtivo, analítico, preocupado em produzir, ainda que provisoriamente, índices de equivalência.
Estes dois modos de apreender o mundo percebido, apresentados aqui com feições quase caricaturais, encontram no trabalho do arquiteto um terreno de coexistência que talvez aponte para um dos grandes desafios relacionados à aprendizagem da percepção no horizonte problemático da arquitetura. Trata-se do problema de acomodar numa mesma prática duas potências que operam em freqüências distintas e que por vezes são mutuamente excludentes. É razoável afirmar que o arquiteto, cujo trabalho implica em transformar o mundo sensível através da concepção do projeto, não deve se esquecer por completo da empiria ao operar com as representações abstratas que lhe são tão familiares. Tampouco parece sensato que ele deva abrir mão deste olhar transparente, construtivo, que traz em si toda uma potência criadora beneficiária do seu devir cartesiano. Neste sentido, propõe-se que o desafio talvez seja tratar estes dois modos de se apreender o mundo não como avessos ou alternativos, mas como duas potências que podem se compor e se correlacionar doando-se mutuamente uma à outra. O corpo sensível que o arquiteto aprende a produzir, então, deve ter algo de liso, ser suficientemente aberto e maleável de modo a permitir que estas duas posturas frente ao real coexistam em diferença, em posição de provocar desvios criadores ao se cruzarem e ao entrar em composição, permitindo que a fabulação de atmosferas espaciais (sensuais, poéticas, afetivas) ocorra sem que se deixe de investigar as condições materiais (geométricas, técnicas, construtivas) de sua existência e produção.
Considerações finais
A aprendizagem da sensibilidade perceptiva, entendida como a capacidade de produzir um corpo sensível, aparece no ensino como um recurso relevante para o arquiteto, seja por auxiliar na compreensão dos movimentos da produção de subjetividade (em que está implicada a relação espaço-corpo), por permitir a produção de um estofo de experiências significativas com a arquitetura (interessadas do ponto de vista da concepção do projeto), por habilitar o emprego de olhares avaliativos relacionados à apreensão fenomênica daquilo que constrói, ou ainda por promover ganhos na espessura sensível e doações de sentido ao mundo. Trata-se, de qualquer modo, de aprender a exercer certos tipos de posturas. É uma prática que se desenvolve na própria prática e, portanto, está além do alcance do professor simplesmente prescrevê-la ou ordená-la. A ele talvez caiba apenas criar condições para que o aprendizado ocorra, ou seja, instalar os estudantes em situações que lhes permitam produzir e cultivar produção de corpos sensíveis exercitando as diferentes posturas atencionais, os diversos olhares investigativos, as apreensões avaliativas da matéria, as prospecções do ambiente construído, as leituras poéticas do espaço e as experimentações com o próprio corpo. Finalmente, talvez caiba ao professor também propor reflexões sobre os caminhos percorridos durante os processos de invenção do corpo sensível para que possam permanecer ao alcance dos estudantes como verdadeiras práticas de si.
notas1
O célebre curso preliminar da Bauhaus, o “Vorkurs” – por onde passavam obrigatoriamente todos estudantes que ingressavam na escola – tinha seus principais conteúdos ligados às “bases fundamentais da criação plástica” e à aprendizagem das técnicas de fabricação em oficinas. As primeiras práticas didáticas realizadas no “atelier da forma” eram exercícios de sensibilização tátil e visual adaptados do ensino das artes para o novo contexto de uma escola superior de artes aplicadas. Além do propósito específico do desenvolvimento da sensibilidade perceptiva, tais práticas permitiram aos estudantes explorar e conhecer as condições materiais e sensoriais que atuavam nesta aproximação sensível com os objetos do mundo ao seu redor. A suposta universalidade da percepção, ligada à natureza biológica dos órgãos sensíveis, constituía um importante argumento do projeto moderno para as artes aplicadas, do qual a Bauhaus foi uma das células germinais. Ver. WICK, Reiner. (1982). Pedagogia da Bauhaus. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
2
Nas escolas de arquiteturas brasileiras a incorporação de práticas didáticas que remetiam à tradição Bauhausiana, embora transformadas pela história e afetadas pelas diferenças nas circunstâncias institucionais, acompanhou a gradual assimilação do movimento moderno pelo ambiente acadêmico. O Currículo Mínimo de 1969, por exemplo, definia que no ciclo básico de todos os cursos do país a matéria de Plástica deveria incluir, ao lado do ensino das “possibilidades da criação” da forma, também o estudo “da psicologia das suas soluções”. Trata-se de uma referência às teorias da percepção visual e às suas regras invariantes veiculadas pelo Gestaltismo. Os princípios da percepção, cujas definições haviam sido formuladas nas primeiras décadas do século a partir de experimentos empíricos no campo da psicologia, davam sustento “científico” a atributos já tradicionais das configurações plásticas – em concordância com a perspectiva formalista nas artes visuais – como equilíbrio, contraste, harmonia, ritmo ou tensão, reforçando com argumentos supostamente supra-culturais a base de critérios utilizada na prática da manipulação da forma. O ensino da percepção pela via dos argumentos Gestaltistas – embora relativizado e sem a mesma força hegemônica – ainda é freqüente em disciplinas onde a agenda pedagógica se mostra preocupada com a construção da forma e com a esfera da visualidade na arquitetura.
3
Estas informações provêm da pesquisa de campo realizada em nível preliminar para o desenvolvimento da dissertação de mestrado do autor, provisoriamente intitulada “Territórios no Ensino de Introdução à Concepção Arquitetônica”, elaborada no PROARQ – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ.
4
Incluem-se aí autores como Joseph Rykwert, Ernesto N. Rodgers, Kenneth Frampton, e Christian Norbeg-Schulz, cujas obras apresentam traços do pensamento de Martin Heidegger. Ver: SOLÀ-MORALES, Ignasi. (2001). Mediaciones en la Arquitectura y en el Paisaje Urbano. In: Territorios. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.
5
Referências explícitas à fenomenologia de Merleau-Ponty aparecem em textos de arquitetos como Steven Holl, Juhani Pallasma e Alberto Pérez-Gómez. A defesa de poéticas mais sensualistas na arquitetura surge sob o signo da resistência em relação a um suposto enfraquecimento na experiência atual com o espaço, um fenômeno da contemporaneidade que estaria ligado, por exemplo, à aceleração do tempo cotidiano, ao desenvolvimento dos meios de comunicação e à “padronização” homogeneizante na produção do ambiente construído. Ver. PALLASMA, Juhani. (1994). “An Architecture of the Seven Senses”. In: Questions of Perception: Phenomenology of Architecture. Tokyo: a+u Publishing Co., Ltd., p.27-38,1994; _____. (2005). Eyes of the Skin. Architecture and the Senses. West Sussex: John Wiley & Sons Ltd, 2005; _____. (1986). A Geometria do Sentimento. Um olhar Sobre a Fenomenologia da Arquitetura. In: NESBITT, Kate. (org.) Uma nova agenda para a arquitetura: Antologia Teórica (1965-1995). São Paulo. Cosac Naify, 2006; PÉREZ-GÓMEZ. Alberto; PALLASMA, Juhani; HOLL, Steven. (1994) Questions of perception: phenomenology of architecture. Tokyo: a+u Publishing Co., Ltd., p.8-25,1994.
6
GUATTARI, Félix. (1992). Caosmose. Um novo paradigma estético. São Paulo, Editora 34, 1992.
7
ibid.
8
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. (1980). Mil platôs, capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. Rio de Janeiro, Editora 34, 1995.
9
KASTRUP, Virgínia. A Invenção de si e do mundo. Campinas, Papirus, 1999.
10
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco (1984). A árvore do conhecimento. São Paulo: Ed. Palas Athena, 2005; VARELA, Francisco (1988). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Lisboa, Instituto Piaget, 1998.
11
Varela propõe uma distinção entre dois tipos de representação e dirige sua crítica a apenas um deles. O sentido forte estabelece que o conhecimento enquanto representação está calcado em uma relação de correspondência com um mundo prévio que lhe serve de fundamento, ou seja, é objetivo. O sentido fraco ou pragmático da representação, por sua vez, está ligado à noção de interpretação, a um modo particular de se conhecer. Aqui ela é resultante da experiência e a questão não é de correspondência, mas de coerência. Representar neste sentido seria operar segundo regularidades, implicaria em estabilizações, sempre temporárias, de condutas ou soluções cognitivas que permaneceriam abertas a problematizações posteriores. É ao primeiro tipo que dirige sua crítica e não ao segundo. VARELA, Francisco. (1988). Op Cit.; KASTRUP, Virgínia. op. cit.
12
A invenção não é tratada aqui como invenção ex-nihilo, onde se cria o novo a partir do nada. Ao contrário, utiliza-se o termo invenção recorrendo a sua etimologia latina – invenire – que significa compor com restos arqueológicos. Inventar seria então buscar o que restava escondido, oculto, mas que, ao serem removidas as camadas históricas que o encobriam, revela-se como já estando lá. Ver. KASTRUP, Virgínia. op. cit.
13
Varela usará o conceito de “enação” para falar de uma corporificação do conhecimento, dando à cognição traços de uma ação prática, ou seja, tratando-a como algo que pertence ao domínio da experiência e não das representações. Esta noção de conhecimento poder interessar às reflexões sobre o ensino de arquitetura, posto que o conhecimento na concepção arquitetônica é apenas em parte um saber declarável, sendo exercido na maior parte do tempo como uma ação, um saber-fazer. Ver. VARELA, Francisco. (1988). op. cit. Para referências sobre o conhecimento na prática da concepção arquitetônica ver LAWSON, Bryan. What designers know. Oxford: Elsevier / Architectural Press, 2004; SCHÖN, D. A. The reflective practitioner. Washington. Basic Books, 1983.
14
GOLDSTONE, Robert. “Perceptual Learning”. In Annual Review Psychology. Annual Reviews Inc. 1998.
15
GIBSON, E.; GIBSON, J.J. (1955). Perceptual Learning: Differentiation or Enrichment? In: GIBSON, E. (org.) Odyssey in Learning and Perception. Cambridge: The MIT Press, 1991.
16
Os atributos traços específicos de um determinado percepto, enquanto as dimensões perceptivas são planos que contém os atributos de uma mesma ordem. “Vermelho” ou “doce” são atributos, enquanto “cor” e “sabor” são dimensões. Cf. GOLDSTONE, Robert (1998). op. cit.
17
LATOUR, Bruno. (2004). “How to talk about the body? The normative dimensions of science studies”. In: Body and Society. v. 10. n. 2/3, 2004. P. 205-229 Disponível em: <www.ensmp.fr/~latour> Acessado em: 24 set, 2006.
18
MOHOLY-NAGY, László (1929). Do material à arquitetura. Barcelona, Gustavo Gili, 2005; WICK, Reiner (1982). Pedagogia da Bauhaus. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
19
Conforme programa da Disciplina. Ver também: MASSARA, Bruno. (2004). Próteses Perceptivas. In: AR – Revista de Arquitetura, Ensino e Cultura. n. 1. Coronel Fabriciano: Curso de Arquitetura e Urbanismo, Centro Universitário do Leste de Minas Gerais, 2004; TANURE, Jorge. (2004). O Corpo Violado. In: AR – Revista de Arquitetura, Ensino e Cultura. Coronel Fabriciano: Curso de Arquitetura e Urbanismo, Centro Universitário do Leste de Minas Gerais, 2004.
20
Aqui a atenção vem está ligada à noção de intencionalidade, que responde pelo funcionamento da consciência (entendida como consciência de algo). A atenção não tem um correlato como a memória tem a lembrança ou a percepção tem o percepto. KASTRUP, Virgínia. (2004). A Aprendizagem da Atenção na Cognição Inventiva. In: Psicologia Social. v.16, n. 3 Porto Alegre, 2004. Disponível em: <www.scielo.br> Acessado em 22 Set. 2006.
21
JAQUES, Paola Berenstein. Errâncias urbanas: a arte de andar pela cidade. In: Arqtexto. Universidade federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. v.7. Porto Alegre, Departamento de Arquitetura, Propar, 2005.
22
WICK, Reiner. (1982). op. cit.
23
Como referência, são apresentados aos alunos diversos dos célebres “objetos relacionais” criados pela artista Lygia Clark, cujo propósito é justamente interferir na relação sensorial que se costuma estabelecer entre organismo e mundo.
24
“O pintor [...] tem que admitir que as coisas entrem nele [...] que a mesma coisa está lá no coração do mundo e cá no coração da visão, a mesma ou, se fizer questão, uma coisa semelhante, [...] metamorfose do ser em sua visão. É a própria montanha que, lá de longe, se mostra ao pintor, é a ela que ele interroga com o olhar”. MERLEAU-PONTY. Maurice. (1960). O Olho e o Espírito In: O Olho e o Espírito. Seguido de A Linguagem indireta e as Vozes do Silencia e A Dúvida de Cézanne. São Paulo, Cosac & Naiffy, 2003. P. 19.
25
SOLÀ-MORALES, Ignasi. (2001). op. cit.
26
A grandes rasgos, pode-se dizer que a adoção deste tipo de postura – que implica em um certo modo que um indivíduo pode se colocar no mundo – é o sentido da fenomenologia e da sua máxima de retorno às coisas mesmas. Merleau-Ponty, comentando o legado de Husserl – e propondo pensar um não-dito – afirma que o grande ensinamento da redução fenomenológica foi justamente a sua impossibilidade. Ver. MERLEAU-PONTY, Maurice. (1960) O filósofo e sua Sombra In: Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1989; LYOTARD, Jean-François. (1954). A fenomenologia (A. Rodrigues, Trad.). Lisboa: Edições 70, 1986.
bibliografia complementar
KASTRUP, Virgínia. (2007). O Funcionamento da Atenção no Trabalho do Cartógrafo. In: Psicologia Social. v.19, n. 1 Porto Alegre, 2007. Disponível em: <http://www6.ufrgs.br/seerpsicsoc> Acessado em 20 Nov. 2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. (1945). Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PASSARO, Andrés. (2003) Representação, determinismo sensorial e determinismo conceitual no constructo do processo projetual. In: Projetar 2003: I Seminário sobre Ensino e Pesquisa em Projeto de Arquitetura. Rio de Janeiro: PPGAU-UFRN, 2003. CD-rom.
STARKEY, Bradley. (2005). Architectural Models: material, Intellectual, Spiritual. In: arq: Architectural Research Quarterly. Cambridge: Cambridge University Press, v. 9, n. 3-4, 2005. Disponível em: <http://journals.cambridge.org/action/displayIssue?jid=ARQ&volumeId=9&issueId=3-4>. Acessado em: 13 Nov. 2006.
RIDGWAY, Sam. (2005). The Imagination of Construction. In: arq: Architectural Research Quarterly. Cambridge: Cambridge University Press, v. 9, n. 3-4, set. 2005. Disponível em: <http://journals.cambridge.org/action/displayIssue?jid=ARQ&volumeId=9&issueId=3-4>. Acessado em: 13 nov. 2006.
sobre o autor
Pedro Engel, arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura (PROARQ) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde desenvolve dissertação sobre o tema do ensino de introdução à concepção arquitetônica nas escolas brasileiras