Os arquitetos que estão hoje na faixa de 40 e poucos anos de idade se formaram em um período muito específico de nossa vida cultural e política. A formação universitária dessa gente se deu no final da década de 70 e primeira metade dos anos 80, período que coincide com ao menos dois fatos essenciais: o início de uma revisão historiográfica, onde novas balizas conceituais e novas metodologias permitiram que uma história menos comprometida ideologicamente com a auto-imagem do nosso movimento moderno fosse aos poucos se constituindo; e a introdução, com pelo menos duas décadas de atraso, da crítica pós-moderna no meio acadêmico e profissional.
Há muito não se discutia arquitetura no Brasil. O longo e escuro período da ditadura militar havia empurrado goela abaixo dos protagonistas nova pauta de preocupações emergenciais e os valores e procedimentos da época áurea de nossa arquitetura se arraigaram no inconsciente coletivo, tornando-se verdadeiros axiomas intocáveis. Não é de se estranhar, portanto, que os arquitetos atuantes no período e que se julgavam os portadores da tradição tenham ignorado olimpicamente a revisão e se embatido tão raivosamente contra as formas inusitadas, que consideravam não só despropositadas, mas também degeneradas.
Nesse clima hostil e de não-debate, o pós-moderno foi ganhando adeptos entre diversos arquitetos, muitas vezes eles próprios responsáveis pela “conceituação” que julgavam obrigatória. No entanto, os novos compromissos assumidos não partiam de uma crítica sincera e coerente do momento antecedente, portanto era incapaz de fazer juízos de valor sobre o legado moderno e ver com clareza suas qualidades e insuficiências. Repetia-se assim, mais uma vez, a triste sina da intelligentzia brasileira de fazer do passado uma tábula rasa, negando em bloco toda a discussão e realizações anteriores. Esse era o quadro entre os “já formados”.
A impossibilidade da tradição desgastada e do novo superficial determinarem caminhos férteis talvez tenha sido um motivo determinante para que dezenas de jovens recém-formados fossem tentar a sorte em outros países. Certamente as dificuldades de inserção profissional e a crise econômica que se estendia desde a crise do petróleo davam ao quadro geral uma gravidade extrema, mas é certo que os temperamentos mais especulativos e vibrantes enxergaram no exterior, principalmente na Europa, uma lufada estimulante de novas idéias e novas possibilidades. A facilidade que a redemocratização propiciava para viagens e permanências prolongadas fora do país foi a gota d’água para a revoada de um contingente expressivo de jovens arquitetos.
Uma geração migrante se constituiu no vácuo de idéias e propostas do Brasil pós-redemocratização, vácuo tão atroz que acabou alavancando um arrivista engomado para o cargo representativo máximo da nação e permitindo a adoção do neoliberalismo mais desastroso como solução única para o desenvolvimento do país. Dos jovens arquitetos que partiram, a maior parte acabou retornando após alguns anos, com uma interessante experiência de vida, tanto no aspecto profissional como existencial. Alguns outros por lá ficaram, prorrogando a experiência do exílio voluntário até os dias de hoje. Estes arquitetos migrantes têm nome. A partir de agora, a palavra está com eles.
notas
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A idéia da série de depoimentos da Geração Migrante, que começamos a publicar neste número de Arquitextos, teve como mola propulsora uma mensagem enviada pelo leitor Eduardo Oliveira, no dia 16 de agosto de 2002. O texto – que comentava o artigo de Assunta Viola, Atravessando as fronteiras. Minha experiência na Casa do Brasil em Paris. Minha Cidade nº 052, julho 2002 <www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc052/mc052.asp> – é o seguinte:
Oi Assunta. Achei muito interessante o artigo e considero o ponto de vista despretencioso e subjetivo de um morador a melhor maneira de avaliar um projeto de habitação. Até hoje, quando leio o último capítulo do livro da Vila Serra do Navio do Oswaldo Bratke, e vejo os comentários dos moradores, penso que foi por isso que decidi ser arquiteto. Apesar disso o que mais me interessou em seu texto foi a experiência de uma arquiteta brasileira na Europa. Gostaria de sugerir aos editores que te convidassem a escrever algo desse tipo. Em meio à crise brasileira, tenho visto muitos arquitetos recém-formados partirem pra outros países em busca de maiores oportunidades profissionais e acadêmicas. Acho que seria interessante um texto que tratasse de experiências particulares suas e de outras coisas mais práticas como registro profissional no exterior, mercado, organização e rotina dos escritórois, etc. Parabéns pelo artigo e pela experiência na Casa do Brasil. Eduardo Oliveira
A mensagem de Eduardo de Oliveira veio de encontro a antiga vontade de registrar a experiência dos arquitetos brasileiros no exterior, tema debatido ao longo dos anos por mim e pelo amigo Pedro Moreira, arquiteto radicado em Berlim e que também estará dando aqui seu depoimento em breve. Pedro chegou a conceber uma mostra sobre o trabalho dos "imigrantes" na Galeria de Arquitetura em Berlim, não realizada até o momento. Cabe a ele, sem dúvida, o impulso original da série de depoimentos que agora se inicia.
2
Lord Foster e a equipe do projeto do Great Court no British Museum, Londres, Inglaterra. Inauguração do Great Court, dezembro de 2000. Ao lado do arquiteto inglês, Filomena Russo, arquiteta diplomada pela FAU-USP em 1986, atualmente associada do escritório Foster and Partners, trabalhando neste escritório desde o verão de 1995.
série completa dos "Depoimentos da Geração Migrante"
GUERRA, Abilio. "Depoimentos de uma geração migrante", Arquitextos 030.00, São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_00.asp>.
SPADONI, Francisco. "Geração Migrante – Depoimento 1. Kenzo Tange e uma peniche no rio Sena". Arquitextos 030.01. São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_01.asp>.
LEONIDIO, Otavio. "Geração Migrante – Depoimento 2. Em Paris, chez Christian de Portzamparc". Arquitextos 030.02. São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_02.asp>.
VIOLA, Assunta. "Geração Migrante – Depoimento 3. Arquitetura e criatividade: uma experiência com Massimiliano Fuksas". Arquitextos 030.03. São Paulo, Portal Viutrivus, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_03.asp>.
ORCIUOLI, Affonso. "Geração Migrante – Depoimento 4. De São Paulo a Barcelona". Arquitextos, Texto Especial 161. São Paulo, Portal Vitruvius, dez 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp161.asp>.
OIWA, Oscar Satio. "Geração Migrante – Depoimento 5. Arte sem fronteira". Arquitextos, Texto Especial 162. São Paulo, Portal Vitruvius, dez 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp162.asp>.
MOREIRA, Pedro. "Geração Migrante – Depoimento 6. Brasil, Inglaterra, Alemanha – 15 anos", Arquitextos, Texto Especial 163. São Paulo, Portal Vitruvius, jan 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp163.asp>.
LIMA, Zeuler R. M. de A. "Geração Migrante – Depoimento 7. Migrar, verbo transitivo e intransitivo. Uma experiência nos Estados Unidos", Arquitextos, Texto Especial 164. São Paulo, Portal Vitruvius, jan 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp164.asp>.
DIETZSCH, Anna Julia. "Geração Migrante – Depoimento 8. Uma dupla experiência nos Estados Unidos", Arquitextos, Texto Especial 172. São Paulo, Portal Vitruvius, mar 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp172.asp>.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor da FAU PUC-Campinas, ex-editor da Óculum, atual editor de www.vitruvius.com.br e co-autor de Rino Levi – arquitetura e cidade (Romano Guerra).