O terreno é um "lote" rural longo e estreito. A Casa em Afife, que Nuno Brandão Costa projetou, apropria-se do muro de granito que divide a propriedade, linha preexistente que se transforma no futuro da Casa. Dois volumes, como "cubos" adicionados, coexistem ao longo deste muro. A arquitetura da Casa é também o espaço entre os volumes e as inflexões da linha de pedra.
Apesar das suas características "abstratas", a Casa em Afife é delicada, quase tracejante. A fragmentação, a opacidade "cúbica" e a cércea dominante de um só piso, retiram-lhe qualquer caráter demonstrativo. Não se trata de exibição de modernidade, mas, inversamente, de forjar um "apagamento" através do uso de temas da modernidade. Nesse sentido, o óxido de ferro no reboco dá ao edifício uma qualidade quase telúrica, em contraste expressivo com o reflexo transparente dos planos de vidro.
Encontramos a Casa em Afife percorrendo curvas muradas e espaços recortados por vegetação e construções disseminadas, numa ruralidade com clima estival. Uma paisagem feita de adições parcimoniosas, sem regra aparente.
No projeto da Casa, Nuno Brandão Costa opta por um esquema simples mas capaz de integrar essa suave racionalidade: dois volumes que entre si criam um espaço angular, em contigüidade, imersos no declive do terreno. Apenas o volume que emerge da cobertura anuncia o edifício no horizonte.
Por se concentrar numa relação matricial com o terreno, os pavimentos desempenham na Casa em Afife um papel fundamental. A pedra irregular que entra pelo chão da garagem e a madeira da sala prolongada para o exterior deck, e para a cobertura, são sinais físicos que contrastam com a lógica fria e planar das superfícies horizontais.
A contemporaneidade explícita desta obra está muito neste confronto entre uma materialidade "rugosa" e "texturada", e a sua espacialidade aberta, cúbica e fluída.
O primeiro volume é a garagem, anunciada nas duas enormes portas de correr. A garagem é também um "objeto" que dissimula a presença da Casa, uma espécie de átrio volumétrico exterior.
O segundo volume, alinhado paralelamente ao muro preexistente, é a sala: um open space que se transforma, por introdução de planos de correr, também em quartos, cozinha, e instalações sanitárias. A sala é o vão de 10 metros da Casa, com uma esquina em vidro, e uma relação "espacial" e transparente com a "natureza", evocando o legado da arquitetura moderna. Abrindo as portas dos compartimentos, o espaço da Casa pode ser desenhado integralmente até às árvores e telhados na envolvente.
Esta lógica de transparência e de redução é complexificada pelo volume da cobertura, onde se localiza a "suíte". O acesso a este piso é possibilitado por um corpo de escadas que "toca" na sala como se se tratasse de um aparato mecânico encantatório. A camuflagem da estrutura da escada dá-lhe um caráter quase imaterial, efeito sublinhado pela luz zenital que ocorre de um oportuno laternim. Mas a sua presença oblíqua permite uma marcação subtil, um véu entre a sala aberta e a zona compartimentada.
À imagem desta escada, a Casa em Afife é uma construção perene e sólida que parece mover-se transitoriamente na direção do chão. Ou, no sentido contrário, levitar. A estrutura está dissimulada; não há "padieiras", ou "embasamentos"; os planos de vidro e de madeira, que entre si se deslocam sutilmente, estabelecem uma relação idêntica com o chão e com a cobertura.
Ao parecer tocar na terra mais do que ter fundações, no subtil acerto construtivo entre planos, e na "desmaterialização" da estrutura, a Casa em Afife envia-nos para o imaginário da pré-fabricação. No limite, para uma arquitetura nômade, serial. Paradoxalmente, no entanto, trata-se também de uma Casa que pertence aquele sítio, sem sobranceria. Propondo uma aventura já antiga, ainda moderna: relativizar os aspectos da "firmeza", do abrigo acolhedor e da domesticidade aparatosa. Porque uma casa não é um castelo.
notas
1
Publicação original: FIGUEIRA, Jorge. "Uma arquitectura nómade ". Lisboa, Linha, encarte do Jornal Expresso, 22 maio 2004.
ficha técnica
Obra
Casa no Minho, Afife, Portugal, 2001-2004
Área
240m2
Arquitetura
Nuno Brandão Costa, com André Eduardo Tavares, Pedro Almeida, Marta Reis
Fundações e Estruturas
Ricardo Ferreira da Silva
Instalações e equipamentos hidráulicos
Ricardo Ferreira da Silva
Eletricidade
Raul Serafim Barros Silva (GPIC)
Gás, térmico, aquecimento e ventilação
Raul Bessa (GET)
Fotografia
Fernando Guerra
sobre o autor
Jorge Figueira, arquiteto, professor assistente de História da Arquitetura Contemporânea na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. É coordenador editorial da eIdIarq, serviço de edições do Departamento de Arquitetura da FCTUC. Como arquiteto do ateliê de Paulo Ferreira, atualmente participa do projeto do Novo Campus de Angra do Heroísmo, Açores. Foi co-programador de Coimbra Capital Nacional da Cultura, 2003. Foi co-comissário de "Paisagens Invertidas", filme-instalação (XXI Congresso da UIA em Berlim, 2002; V Bienal da Arquitetura de São Paulo, 2003. É membro do Conselho Editorial do Jornal Arquitetos, da Ordem dos Arquitetos. É autor do livro "A Escola do Porto: um Mapa Crítico" (2002).