A imagem historiográfica da arquitetura moderna brasileira difundida internacionalmente é produto de um processo de acumulação e seleção de textos e imagens que se inicia em plena guerra, com Goodwin (1), segue com Costa (2) e continua com Mindlin (3). É alimentado durante os anos 1940 e 1950 por artigos que aparecem nas revistas especializadas, principalmente nos documentos especiais: The Architectural Review, L’Architecture d’Aujourd'hui, The Architectural Forum e Casabella. Posteriormente, recebe importantes contribuições parciais com Ferraz (4) e Lemos (5), e uma mais sistemática, em forma de compêndio, com Bruand (6). Finalmente, fixar-se-á primeiro nos manuais escritos nos anos cinqüenta e depois naqueles publicados a partir da década dos setenta. São textos distintos, como distintos são seus autores – em formato, objetivos, influência e amplitude – e vão participar desse processo de formação e consolidação de uma versão historiográfica canônica da arquitetura moderna brasileira, que pode ser identificado, a partir de uma visão retrospectiva, percorrendo todas as etapas do modelo de interpretação historiográfica proposto por Scalvini (7).
Os primeiros documentos de difusão, os textos de Goodwin, Costa, Mindlin e os artigos das revistas correspondem à fase de cegueira inicial, quando ainda não haviam sido eleitas as obras paradigmáticas, nem tampouco os protagonistas dessa história, os próprios arquitetos que ainda não tinham consciência de sua expressão como conjunto. Oferecem um material extenso, rico, matizado sem juízos prévios e, em parte, sem compromisso com a história, embora atendendo às expectativas do momento, às preocupações da época e às questões em voga. Registram a existência de uma arquitetura que se destaca no cenário internacional, mas ainda não se arriscam a avaliar sua extensão e permanência.
A inclusão do Brasil nos manuais de Zevi (8), Giedion (9) e Pevsner (10), são as respostas pré-canônicas, visões ainda pouco desenvolvidas que constituem os primeiros ensaios de classificação dessa arquitetura.
Hitchcock (11), Benevolo (12), Pevsner (13) e Giedion (14) representam a emergência de uma versão canônica que é a base da difusão e reconhecimento da participação dessa produção no movimento moderno. Como tais, fixam três ou quatro protagonistas e uma imagem estrita e pontual da produção do país e descartam todos os matizes.
Os anos sessenta – após a construção de Brasília e o golpe militar que será decisivo para os rumos da arquitetura – podem ser caracterizados como o período de silêncio/esquecimento, momento em que os historiadores se desinteressam pela arquitetura moderna brasileira e decretam sua morte.
Posteriormente, surgem novas contribuições que indicam o caminho para as reinterpretações, como as de Ferraz e Lemos. A edição amplamente revisada do manual de Zevi (15), que significaria uma dessas reinterpretações, repete as idéias formuladas nos anos cinqüenta nos artigos para Chronacca d'Architettura, da mesma forma que Tafuri (16) não acrescenta muito a análise de Zevi e, em outra linha, Frampton (17) não apresenta mais novidades que a ênfase no regionalismo crítico e a discussão sobre a relação da arquitetura com o lugar. Bruand tampouco cumpre esse papel; produz um compêndio em que percorre sistematicamente todas as informações disponíveis e possíveis até aquele momento e transforma-as no único documento que trata especificamente da matéria. Argan (18) é o que propõe uma reinterpretação da arquitetura moderna, distanciando-se do modelo narrativo prevalecente e propondo, inclusive, novos métodos de análise. Porém, o historiador que nos anos cinqüenta defendia a existência de um movimento brasileiro vigoroso, e não só exemplos isolados de boa arquitetura moderna, não apresenta nenhuma referência ao tema em seu compêndio L’Arte Moderna, de 1971.
A imagem canônica, fixada pelos manuais, da arquitetura moderna brasileira é amplamente difundida até os anos oitenta, quando, acompanhando um processo de renovação dos métodos de investigação metodológica, começam a aparecer os ensaios que se propõem a reler ou resgatar os documentos anteriores à construção do paradigma, principalmente os textos das revistas e periódicos, cujo frescor provê elementos novos e enfoques particulares sobre a matéria.
Essa tendência se afirma nos anos noventa e vão enriquecer a trama historiográfica prevalecente, preenchendo lacunas, oferecendo novas interpretações, apontando novos caminhos e revelando um universo extenso por investigar. Assim, a última etapa desse processo de interpretação historiográfica proposto por Scalvini está ainda sendo construída e essas releituras e resgates centrados em temas específicos, constituem as bases das reinterpretações.
A releitura desses documentos lança alguma luz na compreensão de pontos cegos dessa construção canônica, contribui para o entendimento de preconceitos que apagaram determinados dados ou impediram outras informações, ajuda a entender os motivos tanto de omissões e esquecimentos, como de presenças e celebrações e apóia a necessária superação de alguns ‘pré-supostos’. Assim, fornece uma pequena contribuição à difícil tarefa de recuperar o fio condutor de uma trama iterativa, única e, por isso mesmo, frágil, assinalando a importância de se desenvolver pequenas tessituras paralelas, que impedirão o colapso se a artéria principal se romper, dando organicidade a uma trama com muitos vazios para preencher.
Neste contexto este estudo específico tratará da leitura das imagens que acompanham os primeiros documentos de difusão da arquitetura moderna brasileira.
As questões reveladas pelas imagens da arquitetura moderna
I – Tradição e modernidade
A questão da tradição e modernidade está presente nas imagens e textos das publicações sobre a arquitetura brasileira entre os anos 1940 e 1955. Mesmo quando são imagens de segunda mão, ou seja, emprestadas de outras publicações, indicam uma escolha que revela uma intenção do articulista e do editor no caso das revistas ou dos autores, no caso dos livros monográficos e dos manuais de arquitetura moderna.
No livro de Goodwin a imagem escolhida para compor a sua capa dura remete ao nacionalismo verde amarelo, enquanto a sua sobrecapa traz uma ‘arquitetura aberta’ com elementos de adaptação ao clima, a Estação de Hidroaviões de Attilio Correia Lima, e a página de rosto é ilustrada por uma obra eminentemente moderna e original, o Cassino da Pampulha. Principalmente essas duas últimas imagens revelam a atração pelo moderno, seja por parte de Goodwin, seja de Kidder-Smith. Ainda que insista sobre o clima como o elemento que confere continuidade a esses dois momentos arquitetônicos, a inclusão dessa origem portuguesa parece ser menos uma convicção particular desse representante do Museu de Arte Moderna de Nova York que uma soma de circunstâncias: o contexto norte-americano que privilegiava uma revisão do passado, o interesse do MoMA em resgatar as manifestações tradicionais das culturas menos conhecidas e sua recepção oficial no Brasil pelo SPHAN, criada significativamente em 1936, mesmo ano do projeto do edifício do Ministério de Educação.
As sobrecapas de Mindlin trazem algumas informações interessantes. Na frontal expõe, ao lado de três estudos do Ministério da Educação, duas fotos iguais em tamanho: uma do pavilhão dos estados no Ibirapuera de Niemeyer e outra do Parque Guinle de Lúcio Costa, ou seja, dois exemplos de uma mesma vertente, que retoma a questão da tradição e do moderno. Na outra sobrecapa dispõe uma série de exemplares onde a importância recai sobre as propostas estruturais, cujo cálculo Mindlin defende como uma das conquistas da moderna escola brasileira. Ao fundo, como marca d’água, destaca-se o edifício CBI do ‘estrangeiro’ Lucjan Korngold. Mas é principalmente na página de rosto que afirma sua convicção sobre um vinculo entre a tradição e a modernidade: a foto do Ministério da Educação secundado pela Igreja de Santa Luzia, exaustivamente repetida nas revistas e livros publicados posteriormente.
O vínculo entre a tradição e modernidade é uma das qualidades da arquitetura brasileira que proporcionará um argumento importante na renovação pretendida pelas revistas de arquitetura de amplitude internacional, comprometidas com a difusão do movimento moderno que após a II Guerra Mundial começa a ser contestado. Está presente em L’Architecture d’Aujourd’hui de 1952, que exalta a vitalidade, coragem e liberdade dessa arquitetura que não renega as tradições, “não corta duramente as amarras, desfaz os nós e se liberta dos laços com habilidade”, qualidades que a revista gostaria de ver na arquitetura francesa. Está também em The Architectural Review, dirigida por Pevsner, que encontra no vínculo com a tradição, enunciado por Costa e reafirmado por Goodwin e Mindlin, uma coincidência com seus discursos sobre a arquitetura popular e histórica inglesa ou onde Sitwell (19) chama a atenção não só para a coexistência pacífica entre o novo e o antigo, mas também para a harmonia com o entorno e a unidade do conjunto, “algo novo e inusitado para a maioria dos ingleses”, harmonia que indica um caminho mais ameno e menos radical, coerente com a revista, de afirmação da arquitetura moderna. E também está em The Architectural Forum com um matiz distinto, onde Woodward-Smith (20) assinala que a arquitetura brasileira é uma obra inteligível porque não “cometeu o equívoco de dar as costas para a arquitetura internacional”, comentário que já havia sido feito por Biden (21) na Review e por Niemeyer (22) em L’Architeture d’Aujourd’hui.
Na Aujourd’hui, o Ministério da Educação está ao lado da Igreja de Santa Luzia e a Associação Brasileira de Imprensa está junto a Biblioteca Nacional enquanto na Review a Caixa D’Água de Olinda está junto a antiga Catedral da Sé. Enquadrar os edifícios modernos junto aos antigos em tomadas fotográficas de efeito era a forma subliminar de reforçar o texto, da mesma forma que mais tarde de maneira explícita Rossi vai fazer com o teatro do Mundo.
II – Os mecanismos de controle climático e as novas soluções plástico-formais
Os mecanismos de controle solar e lumínico amplamente estudados e utilizados na construção dessa arquitetura que muito cedo ganhou características próprias e específicas aparecem enlaçados a outras duas questões: a tradição e o lugar. Esses mecanismos, que se baseiam fundamentalmente nos brise-soleil, nos pilotis e na estrutura independente, vão colaborar na definição de uma arquitetura muito específica, caracterizada como aberta, leve, simples e livre, estreitamente vinculada à integração das artes e ao desenvolvimento das propriedades plásticas do concreto.
Quando Goodwin organiza a exposição sobre arquitetura brasileira no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1943, elege, por um lado, os exemplares mais visíveis e comentados nas revistas especializadas até aquele momento e, por outro, aqueles que lhe interessam particularmente entre os que lhe são acessíveis, por meio de seus contatos, oficiais e vinculados à representação profissional, no país. Assim, a primeira tentativa de definir essa produção surge de uma eleição quase pessoal – que dá ênfase à questão dos mecanismos de controle solar e lumínico–, mediada pela missão oficial que cumpria, e vai marcar de forma indelével a história desse movimento no país.
Esse era sem dúvida o tema que lhe fascinava na arquitetura brasileira, principalmente pela variedade e inventividade desse detalhe técnico que definia a proposta estético-formal do projeto.
Na Review, as opiniões a respeito do tema são mais diversificadas: Kidder-Smith, Gropius, Sitwell e Biden afirmam o avanço brasileiro no uso desses recursos e admiram a forma integrada como os brasileiros utilizam o brise-soleil, gerando soluções arquitetônicas interessantes. Sitwell comenta que o que parecia uma desvantagem – o clima excessivamente ensolarado e iluminado – se transforma, com as soluções arquitetônicas que integram o brise-soleil, em uma característica positiva da arquitetura brasileira. Biden, ainda que comungue a importância desse artefato na produção brasileira, considera tanto o brise-soleil como o azulejo contribuições menores. Para ele, no momento em que a questão da função é entendida de forma restritiva e o funcionalismo muito criticado, além da solução de um problema técnico seguindo uma trilha essencialmente funcionalista, os brasileiros vislumbravam um novo caminho e reinterpretavam esteticamente os pressupostos da arquitetura moderna, dando-lhe uma sobrevida. Biden oferece, como já podia ser vislumbrado na análise de Giedion e de Woodward-Smith, o principal elemento para a compreensão do êxito da arquitetura moderna no panorama internacional e o interesse do CIAM na difusão dessa produção.
L’Aujourd’hui trata do tema como território lecorbusierano, onde se sobressai a invenção brasileira. Calsat, Persitz e o próprio Le Corbusier confirmam edifícios brasileiros como exemplos privilegiados na utilização e apropriação do brise-soleil moderno proposto pelo mestre francês. Persitz (23) inclusive sublinha as soluções técnicas e plásticas, onde esses artefatos estão perfeitamente integrados e, muitas vezes, induzem estas soluções.
Calsat (24) escreve em L’Architecture d’Aujourd’hui um artigo didático em que explica para que serve e quais são os tipos mais comuns de brise-soleil – ninho de abelhas, lâminas horizontais ou verticais e galerias. Apesar de o autor destacar a importância de Le Corbusier na proposta desse artifício, é no exemplo brasileiro que ele vai se deter para detalhar o funcionamento dos brise-soleil, a ABI.
Esse elemento, que será uma constante em toda a arquitetura brasileira a partir desses dois edifícios, será assunto também de um artigo de Le Corbusier (25) para L’Architecture d’Aujourd’hui. Trata-se de um documento sobre a evolução do brise-soleil: dos da Vila Cartago, até os de Marseille, passando por Barcelona, pelos Apartamentos de Aluguel e pela Cidade Comercial em Argel. Ainda que a estas alturas já seja inquestionável a contribuição brasileira no desenvolvimento deste elemento, o único exemplo desta produção só aparece na página seguinte ao artigo e é o Ministério da Educação. No entanto, Le Corbusier não deixa de constatar a existência de um novo tipo de edifício de escritórios criado pelos arquitetos brasileiros, referindo-se obviamente aos edifícios em altura onde os mecanismos de controle solar se convertem em elementos de definição formal, e aponta três exemplos: o edifício da Estação Ferroviária, a Associação Brasileira de Imprensa e o Ministério da Educação.
A Forum, mais pragmática e vinculada a questões produtivas, insiste na questão do desenvolvimento dos mecanismos de controle climático. Desde uma visão tecnológica eminentemente norte-americana, Woodward-Smith confessa certa incapacidade de entender esse país cheio de contradições e se pergunta como pode um lugar subdesenvolvido como o Brasil produzir “uma arquitetura tão vibrante e moderna”. A explicação que encontra se sustenta noutra contradição: uma arquitetura que, de certa forma, nega seu passado colonial e deseja ser moderna, ao mesmo tempo em que a repropõe apoiada “na cultura nativa, no povo, no clima e nas próprias tradições brasileiras”. Esse duplo vínculo com o movimento internacional e o lugar, tão louvado por Woodward-Smith, é em essência o mesmo caminho alternativo sublinhado por Biden na Review.
A capa de L’Architecture d’Aujourd’hui de 1947, o primeiro documento especial sobre o Brasil da revista, tem como marca d’água, os brise-soleil do Ministério da Educação, tema eminente vinculado ao mestre francês e traz o nome do Brasil estampado nas cores francesas. Já capa do segundo documento da mesma revista (1952) mescla a menção ao brise-soleil e a forte insolação à bandeira do Brasil. Se a primeira capa mostrava o Brasil como território lecorbusierano, na segunda o tema é completamente brasileiro. Diferentemente, a capa da Architectural Forum (1947), além de fazer menção ao sol e a chuva, dá ênfase ao detalhe técnico, estampando os diferentes sistemas de proteção da Estação de Ferrocarril de Porto Alegre de Reidy & Moreira, do Hospital para Estrangeiros do Rio de Janeiro de Paulo Antunes Ribeiro e um Edifício de Apartamentos no Rio de Janeiro de Henrique Mindlin.
III – A arquitetura “aberta” ao exterior e a influência norte-americana
Goodwin elege como uma das qualidades mais interessantes das construções brasileiras, o seu caráter aberto para o exterior, sua relação com o espaço externo, com a paisagem, excepcionalmente exuberante em algumas partes do país, que incentiva a estreita relação entre interior e exterior e remete à afirmação de uma vertente americana, lato senso, de uma arquitetura que se aproxima à de Wright e que, como ela, olha ao exterior, manifesta no virtuosismo das implantações, nas desejadas transparências, nos espaços de transição, o que remete novamente a arquitetura moderna americana e as imagens e valores que esta transmitia através das publicações.
Essa é uma das contribuições mais interessantes de Goodwin: oferece, quase sem perceber, o caminho que vincula essas duas arquiteturas americanas. Entretanto esse ponto passará praticamente despercebido nos escritos posteriores sobre o Brasil, que insistirão na ausência de influência norte-americana. A idéia de uma arquitetura aberta, que estabelece vínculos entre a arquitetura brasileira e a norte-americana, anunciada em Brazil Builds, será obscurecida por outra afirmação do próprio autor, que diz que não há influência norte-americana na arquitetura brasileira.
A admiração do arquiteto norte-americano e seu controvertido contato com Costa parecem se confirmar aqui: embora sua memória arquitetônica intuitivamente reconheça uma experiência familiar, Goodwin parece sucumbir aos argumentos lecorbusieranos – seguros e sólidos – do arquiteto brasileiro, perdendo a oportunidade de abrir uma trilha alternativa de reflexão. Não por acaso, as casas de Levi, Bratke, Artigas e similares não estão no foco do olhar estrangeiro nem do brasileiro. Tampouco estão nas reflexões de Costa. Os espaços abertos que fascinavam Goodwin, como atesta a Estação de Hidroaviões na sobrecapa de seu livro, fascinavam também a Hitchcock, interessado em fazer uma ponte com a influência wrightiana. Nesse momento de difusão, em que se multiplicam as formas de expressão, Hitchcock está interessado em pesquisar as manifestações que “deslocam para fora da Europa o centro dos acontecimentos”, ressaltando as habitações individuais que revelam uma arquitetura aberta, eminentemente americana e identificando formas distintas de fazer arquitetura em Reidy, Niemeyer, Moreira e os irmãos Roberto, todas elas comungando o mesmo interesse nessa ‘arquitetura aberta’.
IV – Formalismo ou uma nova proposta plástico-formal?
A questão do ‘formalismo’ aparece praticamente em todas as revistas de arquitetura. Tanto Pevsner (Review), Bloc (L'Aujourd’hui), como De Carlo (Casabella) alertam sobre o perigo da “busca incessante da novidade”. Porém, enquanto De Carlo (26) declara o formalismo sucessor do academicismo – “um inimigo sutil que se abriga dentro da arquitetura” – e Pevsner assinala o possível retorno de um novo academicismo, André Bloc (27), embora não aprovasse “a novidade ou a excentricidade a qualquer preço” e se preocupasse em “disciplinar as audácias”, via com entusiasmo o triunfo de “uma grande preocupação com a estética”.
Os debates mais acalorados sobre o tema envolvem Rogers, Bill e Gropius, na Review, e o mesmo Bill, De Carlo e Giedion, na Casabella. Max Bill, diretor da Escola de Ulm, em uma entrevista concedida à revista brasileira Habitat (1953) e, depois, em um artigo na Review (1954a), defendendo os princípios racionalistas do ideário moderno, acusa a arquitetura brasileira, mais especificamente a de Niemeyer, de abusar da liberdade formal e não ter responsabilidade social, preferindo “ser fotogênica e espetacular que atender as necessidades funcionais” (28).
Menos radical que Bill, Gropius (29), na mesma revista, entende que suas críticas não têm fundamento, porque não consideram as diferenças sociais. Embora critique as ações políticas sobre a cidade, Gropius considera que há um avanço na construção de habitações coletivas e no uso do brise-soleil, que transforma a experiência brasileira em um movimento vigoroso que desenvolveu uma postura própria em relação à arquitetura moderna. Sobre Niemeyer especificamente, embora de forma mordaz lhe chame de paradiesvogel, Gropius considera seus edifícios “interessantes e refrescantes em concepção, mas descuidados na construção”.
Rogers (30), que reside por algum tempo na Argentina e no Brasil, o terceiro personagem do debate da Review, apesar das duras críticas à arquitetura brasileira, assinala o “fracasso da crítica frente à súbita importância de construções e novidades arrogantes na aparência”. Para ele, Giedion viu um novo tipo de liberdade nessa produção, mas fracassou em perceber quando “degenerava em licença e capricho”, enquanto Bill foi incapaz de apreciar uma produção situada perigosamente à margem do racionalismo adotado na Escola de Ulm. Critica, ao mesmo tempo, a visão excessivamente otimista de um e a opinião carregada de preconceitos do outro, defendendo uma crítica que levasse em consideração o contexto, o tempo e o lugar.
Esse debate se repetirá na revista Casabella, onde um artigo de Rogers (31), similar ao publicado pela Review, reafirmando suas posições, é contestado por Max Bill (32), que mantém sua posição e afirma ter sido vítima da má fé de jovens arquitetos que desfiguraram seu pensamento, publicando um texto que provocou a ira de Costa. Paralelamente ataca Giedion, afirmando que “sua tarefa não é adular”.
Aqui fica clara a divergência entre Bill, cujo objetivo é preservar intactos os princípios que orientaram os primeiros modernos, e Giedion, que busca novas formas de expressão fiéis a esses princípios para garantir uma sobrevivência ao movimento, como a questão da “nova monumentalidade”. Rogers, por sua vez, critica a ambos e assume a defesa da arquitetura vinculada ao lugar, que corresponde à preocupação dos italianos e à posição da Casabella nesse momento. Por isso, cita o testemunho elogioso de Aalto sobre a produção brasileira e comenta que apesar dessa admiração Aalto jamais cometeria “a imprudência de transplantar a flor tropical de Niemeyer à Finlândia, nos confins do círculo polar”.
Ainda que seja reconhecida como uma forma distinta de pensar a arquitetura, com certa qualidade e certa dose de invenção formal, há certa desconfiança a respeito do futuro dessa produção que privilegia as qualidades plásticas do projeto, o que para o espírito da época não é admissível, e coloca a arquitetura brasileira sob suspeita: Zevi (33) vincula a questão do formalismo ao caráter oficial dessa arquitetura que se traduz na “busca de monumentalidade”; Pevsner (1957) nas “acrobacias estruturais” e Dorfles (34) no “exagero estilístico”.
É difícil pensar em um julgamento isento da parte de Max Bill, se nos detivermos no projeto do Edifício da Bienal como um todo. Até é possível entender sua ‘irritação’ com as rampas e curvas no interior do prédio, mas é incompreensível que alguém faça um julgamento como o de Max Bill analisando o volume prismático do edifício de Niemeyer.
O formalismo avaliado negativamente anteriormente é recuperado por Benevolo (1960), que o justifica como a necessidade de um país jovem que procura ter a modernidade representada em sua arquitetura. Da mesma forma que, pensando nos mecanismos de controle climático, Hitchcock (1958) diz que os recursos funcionais se convertem em elementos estéticos, onde abundam as ousadias plásticas e se destaca a generosidade do desenho, incensado por Giedion (1954), que vê na diversidade de propostas dessa “arquitetura polifônica” um futuro promissor, em que ressalta três qualidades da arquitetura brasileira: generosidade dos espaços (Estação de Hidroaviões de Correia Lima), movimentação das superfícies (Aeroporto Santos Dumont dos Roberto) e transformação de programas complexos em soluções simples (Hospital Maternidade de Rino Levi).
V – A ausência de planejamento urbano e de experiências habitacionais
A ausência de medidas de planificação urbana é outra questão que vai ocupar grande parte das preocupações das revistas. Causava intranqüilidade o excessivo poder dos proprietários de terras urbanas, cujos interesses inviabilizavam medidas no sentido de disciplinar o rápido crescimento das cidades brasileiras. Principalmente a Review (Kidder-Smith e Marshall) e a Aujourd’hui (Bloc, Persitz e Giedion) tratam esse tema.
À afirmação de Giedion (1963) de que “há algo de irracional no crescimento da arquitetura brasileira”, somam-se outras, como a de Bloc (35), que identifica nessa falta de critérios para ordenar a atividade construtiva, a origem da deterioração urbana e reclama das autoridades, como a de Persitz, que sente a ausência de “tentativas de planning e maturidade arquitetônica”, como a de Marshall (36), que detecta “desesperadas soluções de engenharia de tráfego” e a de Kidder-Smith (37), que pede ações tão firmes como as que possibilitaram a implantação da arquitetura moderna no país.
Marshall, embora demonstre preocupações com o uso da terra e com o desperdício urbano, ao contrário dos outros articulistas, enaltece as “valiosas tentativas de desenvolver a cidade” feitas pelo SPHAN. Mais precisamente, a intervenção no Morro do Castelo – “operação cirúrgica drástica feita em uma escala heróica”. Ele aplaude essa ação drástica que dificilmente seria proposta em seu país, uma ação que terraplenou uma grande área para construir um espaço moderno com edifícios importantes como o Aeroporto Santos Dumont, o Ministério da Educação e a ABI.
É Persitz, porém, o que melhor trata do tema com não mais que duas imagens. Uma exibe a praia de Copacabana onde a sombra dos arranha-céus construídos muito próximos uns dos outros invade a praia e chega até a areia molhada e as ondas do mar, afetando a insolação e a paisagem. Intencionalmente ou não, a foto, mais que qualquer texto, é uma importante advertência sobre a inexistência de normas que disciplinem a construção. A outra revela o contexto em que se inserem edifícios modernos importantes como o Ministério da Educação e a Associação Brasileira de Imprensa: perdem-se entre os velhos edifícios ecléticos, ou seja, o centro do Rio de Janeiro não é tão moderno assim. Essa foto dá a exata noção da amplitude da nova arquitetura no país.
Entretanto o que parece realmente incomodar os articulistas é a suposta escassez de propostas urbanas. A pergunta implícita é: como pode um país subdesenvolvido dessas dimensões com um alto índice de crescimento e com uma produção arquitetônica tão significativa ser tão pobre em experiências desse tipo? Nesse momento não era possível entender o significativo número de propostas de conjuntos habitacionais e similares, inclusive registradas nas revistas da época, como intervenções urbanas. Propostas como as das cidades universitárias, citadas por Hitchcock, ou como as dos conjuntos habitacionais, como Pedregulho e outros, fartamente publicados nas revistas internacionais especializadas, eram consideradas naquele momento obras de arquitetura, apesar do seu caráter urbano, não só pelo tamanho, mas principalmente pela complexidade.
Finalizando
Esta “leitura” de imagens difundidas entre os anos 1940 e 1955 revela os temas que interessavam aos articulistas que escreviam sobre o assunto. Os temas abordados se referiam menos a arquitetura moderna brasileira, que a experiência vivida, naquele momento, por aqueles que escreviam sobre ela. As imagens reforçaram idéias insinuadas no texto e às vezes ajudam a definir informações ambíguas no discurso dos articulistas.
As capas de Goodwin e Mindlin, assim como suas imagens internas, revelam as suas preferências, os seus interesses e seus objetivos. Em Goodwin aparece por um lado, a missão política e oficial, por outro a preferência pelo moderno, o gosto pela “arquitetura aberta” e o entusiasmo pelas múltiplas formas de utilizar o brise-soleil. Em Mindlin, evidencia-se a vontade de mostrar a solidez desse movimento que não se resume a algumas obras ‘fotogênicas’ incensadas pela crítica, revelando uma produção mais extensa que paralelamente a sua originalidade plástico-formal apresenta uma qualidade técnica digna de registro.
Nas páginas das revistas de arquitetura, principalmente a Review e a Aujourd’hui, por sua vez, fica evidente o interesse por uma arquitetura moderna que oferecesse uma proposta de convivência amena com a tradição. Da mesma forma, pode-se concluir que a conjunção dos mecanismos de controle climático com a audácia das propostas plástico-formais era o tema mais recorrente quando se falava de arquitetura brasileira, ainda que por diferentes razões, nas distintas fontes. Já a questão do “formalismo” move principalmente os italianos, atentos à questão do contraponto entre a internacionalidade do moderno e a especificidade do lugar, que era o desafio italiano naquele momento. Porém quem acaba sendo o pivô dessa polêmica é o suíço Max Bill, que na sua defesa ferrenha dos princípios da arquitetura moderna, acaba por perder a lucidez, reduzindo a sua percepção de uma arquitetura a um detalhe e atacando uma das obras menos passíveis de ataque em relação a sua racionalidade.
As imagens às vezes confirmam um discurso, às vezes complementam uma descrição, mas interessante é quando elas se constituem em indícios, que sinalizam informações que não estão no texto ou porque os próprios autores ainda não têm argumentos suficientes ou porque ainda são intuições.
notas
1
GOODWIN, Philip. Brazil Builds. Architecture new and old 1652-1942. New York, MoMA, 1943.
2
COSTA, Lúcio. “Depoimento de um arquiteto carioca”, In: Correio da Manhã, 15/16/1951.
3
MINDLIN, Henrique. Modern Architecture in Brazil. NY, Reinhold, 1956.
4
FERRAZ, Geraldo. Warchavchik e a Introdução da Nova Arquitetura no Brasil: 1925/1940. SP, MASP, 1965.
5
LEMOS, Carlos. Arquitetura Brasileira. SP, Melhoramentos, 1979.
6
Bruand, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. SP, Perspectiva, 1981.
7
SCALVINI, Maria Luiza. L’immagine storiografia dell’architettura contemporanea da Platz a Giedeon. Roma, Officina Edizioni, 1984.
8
ZEVI, Bruno. Storia dell'Architettura Moderna. Torino, Giulio Einaudi, 1950 (1ª edição italiana).
9
GIEDION, Sigfried. Dix Ans d'Architecture Contemporaine. Zurich, Girsberger, 1954.
10
PEVSNER, Nikolaus. An outline of European Architecture. London, John Murray, 1957, 6ª edição.
11
HITCHCOCK, Henry-Russell. Architecture XIXth and XXth Centuries. Londres, Penguin Books, 1958.
12
BENEVOLO, Leonardo. Storia dell'Architettura Moderna. Bari, Laterza, 1960, 1ª edição.
13
PEVSNER, Nikolaus. “Modern architecture and the historian or the return of Historicism”, In: RIBA Journal, vol. 68, abr 1961, pp. 230/240.
14
GIEDION, Sigfried. “La arquitectura en torno a 1960” (Prefacio a 2ª edição italiana), In: Espacio, Tiempo y Arquitectura. Barcelona, Ed. Médico-Científica, 1963.
15
ZEVI, Bruno. Storia dell'Architettura Moderna. Torino, Giulio Einaudi, 1973 (edição de 1950 ampliada).
16
TAFURI, Manfredo y DAL CO, Francesco. Architettura Contemporanea. Venecia, Electa Editrice, 1976.
17
FRAMPTON, Kenneth. Modern Architecture: a critical history. London, Tames & Hudson, 1980.
18
ARGAN, Giulio Carlo. L'Arte Moderna 1770-1970. Firenze, Sansoni, 1971, 1ª edição.
19
SITWELL, Sacheverell. “The brazilian style”, In: Architectural Review, vol 095, nº 567, mar 1944, pp. 65-68.
20
WOODWARD-SMITH. “South America: Study in Contemporary Architecture in Brazil”, In: Architectural Forum, nº 11. nov 1947, pp 65-117.
21
BIDEN, Alf. “Report on Brazil”, In: Architectural Review, nº 646, vol. 108, out 1950, pp. 221/222.
22
NIEMEYER, Oscar. “Ce qui manque a notre architecture”, In: L'Architecture d'Aujourd'hui nº 13/14, set 1947.
23
Persitz, Alexandre. “L'Architecture au Brésil”, In: L'Architecture d'Aujourd'hui, nº 13/14, set 1947.
24
CALSAT, J.H. “Le brise-soleil”, In: L'Architecture d'Aujourd'hui, nº 03, set 1945.
25
LE CORBUSIER. “Breve histoire du brise-soleil”, In: L'Architecture d'Aujourd'hui, nº 13/14, set 1947.
26
DE CARLO, Giancarlo. “Formalismo continuità dell'academismo”, In: Casabella, nº 199, dez 1954, pp. II.
27
BLOC, André. “Ayons Confiance dans l'architecture”, In: L'Architecture d'Aujourd'hui, nº 42/43, ago 1952.
28
Nota do Editor – A revista Manchete também publicou matéria com crítica de Max Bill à arquitetura moderna brasileira. In AQUINO, Flávio de. “Max Bill critica a nossa moderna arquitetura”. Manchete nº 60, Rio de Janeiro, 13 jun. 1953, p. 38-39. Apud CRUZ, José Armênio Brito, "Os concretos e o concreto. A vinda de Max Bill ao Brasil". Coluna Hoje ontem, nº 3 (editoria Documento). São Paulo, Portal Vitruvius, maio 2006 <http://www.vitruvius.com.br/documento/hojeontem/hojeontem_03.asp>.
29
GROPIUS, Walter y otros. “Report on Brazil”, In: Architectural Review, vol 116, out 1954, pp. 234/250.
30
ROGERS, Ernesto. “Report on Brazil”, In: Architectural Review, vol 116, out 1954b.
31
ROGERS, Ernesto. “Pretesti per una critica non formalista”, In: Casabella, nº 200, fev 1954a, pp.1-3.
32
BILL, Max. “Lettere al direttore”, In: Casabella, nº 201, maio 1954b, pp. II.
33
ZEVI, Bruno. “La moda lecorbuseriana in Brasile: Max Bill apostrofa Oscar Niemeyer (02/11/1954)”, In: Cronache di Architettura I (1954/1955) – Da Wright sul Canal Grande alla Capelle de Ronchamp 1/72. Bari, Laterza, 1971 (nº 1 a 72).
34
DORFLES, Gillo. L'Architettura Moderna. Milán, A. Garzanti, 1956.
35
BLOC, André. “Amerique Latine”, In: L'Architecture d'Aujourd'hui, nº 10, mar 1947.
36
MARSHALL, P. J. “South America scrapbook”, In: Architectural Review, vol 107, nº 638, feb 1950, pp. 123-130.
37
KIDDER-SMITH, G. E. “The architects and the modern scene”, In: Architectural Review, vol 095, nº 567, mar 1944, pp. 78-84.
sobre o autor
Nelci Tinem é professora do CAU/UFPB e do PPGAU/UFRN, doutora em “História da Arquitetura, História Urbana” pela ETSAB/UPC e autora de O Alvo do Olhar Estrangeiro (2002) e Fronteiras, Marcos e Sinais (2006).