Pensar a escala urbana sobre tudo na escala desta metrópole de São Paulo era, tanto para Hector quanto para mim, o desafio mais complexo ao qual não só não podíamos nos furtar, como tínhamos uma vontade imensa de enfrentar; e participar das operações urbanas era esta possibilidade.
No caso da operação urbana Vila Maria – Campo de Marte, que denominávamos simplesmente de Carandiru (2), eram 200 milhões de metros quadrados para o qual teríamos que estar munidos de um fôlego que dava medo. A área era maior do que uma Manhattan.
Fizemos o trabalho com tempo exíguo para a abrangência e dificuldade da área e acho que indicamos algumas direções que ainda preliminares poderiam ser aprofundadas. O processo propositivo foi mais instigante do que os produtos finais que sofreram muitas alterações.
Ao impacto da diversidade e enormidade da área, o agravante era que, não bastasse a escala, era uma parte lateral da cidade. A pergunta correlata imediata é se nesta escala se perpetua a idéia de centro. E, então, como fazer, como se locomover por distancias tão enormes. Por que do outro lado de São Paulo estavam mais 200 milhões de metros quadrados além do centro e irradiações. Por absurdo, temos em São Paulo 1.500 km²; contra 105 de Paris e 127 de Manhattan. Enfim, sendo parte e não centro de uma cidade, colocavam-se algumas questões; a mais evidente, como pensar a parte sem pensar o todo? Conversa que retomei com Marco Tabet (3) onde nos dávamos conta da dificuldade de pensarmos esta escala até pela sua absoluta juventude: o que significa uma cidade-município com 10 milhões de habitantes e 1.500km²? Freqüentemente achava que estamos mais próximos da Cidade do México e Shanghai, mas hoje tendo a achar que somos como as wastelands, grandes passagens-paragens contínuas. De qualquer modo, a apreensão seguinte, e disso nos convencemos, seria como pensá-la a partir da sua geografia, e esta foi a tônica do processo.
Do ponto de vista da cidade como um todo, a recorrência da defasagem infra-estrutural dava, como continua dando, a medida da exigüidade do nosso contrato social. Aliás, quanto menor a infra-estrutura em relação à mancha urbana de uma cidade, maior a sua insuficiência como sociedade civil. É o caso das cidades brasileiras em geral.
Nessa tônica, a infra-estrutura constituía um substrato espacial, ético e intelectual, e o território era nosso horizonte (4). Isto posto, colocava-se a questão de como desenhar esta cidade, como marcá-la, como indicá-la, como apresentá-la, como apreendê-la, como vê-la.
Se a geografia se configura como vetor nas grandes escalas, no caso da área em questão parecia invisível. A idéia, portanto era torná-la visível. Acho sempre que o melhor exercício da cidadania se dá – do ponto de vista da arquitetura – quando associamos infra estrutura e geografia; isto é, a apreensão visível da cidade.
Vendo o limite da várzea do Tietê no pé do morro ascendente da Cantareira com os 4 córregos que deságuam no Tietê, ficou evidente que melhor seria termos 1 leitura geográfica da cidade como 1 todo. Porque a geografia continua com suas variações hídricas e topográficas, enquanto que os limites das operações urbanas são basicamente administrativos.
De qualquer modo, com esta apreensão do pé do morro e dos 4 rios, o quadro se esboçava (ver fig. 1). Os rios deveriam ser destampados e a várzea reposta através da proposição dos já clássicos parques lineares lindeiros a rios e córregos.
Do ponto de vista dos usos, como tratava-se de região de caráter metropolitano (5) era preciso dotar esta área de infra estrutura de transportes, tanto metrô como ônibus e automóvel. Para o metrô, havia já a hipótese de uma linha paralela à Marginal à meio caminho entre o pé do morro e o Rio Tietê. Naturalmente que ao longo deste subterrâneo aproveitamos a obra para criar, lindeira, estacionamentos lineares dos 2 lados para automóveis.
Ao longo do Tietê, a pergunta era como abordar a aridez rasa desta várzea, resultante não da condição de planície intrínseca às nossas várzeas, mas do caráter inóspito e claustrofóbico das vias marginais coladas ao leito retificado? Propunha os “morrotes” de estacionamentos; ocos de 2 ou 3 pavimentos para cima devido ao lençol freático raso (ver fig. 2). Criavam-se ondulações de paisagem naquela aridez rasa, devolviam um pouco da permeabilidade do solo com sua capa vegetal e atendiam à demanda por estacionamentos intrínsecos aos usos da região. Para as áreas adjacentes, dado que a várzea se estende até praticamente o pé do morro, uma das idéias era pontuar esta região de baixíssima densidade, além de esgarçada, com edifícios de grande verticalidade e mínima projeção no solo. Ou seja, altos coeficientes de aproveitamento e baixíssimas taxas de ocupação. O lote naturalmente, para este partido, teria que ser re-equacionado, a estrutura fundiária teria que ser revista; a isso Hector sempre dizia: “Anne quer a terra arrasada!” Talvez. Mas, terra arrasada ou não, estas ações abordavam aquele território técnica e esteticamente. Equacionava-se os fluxos articulados à técnica e à paisagem (6).
Do outro lado, na foz do Tamanduateí (7), tínhamos uma área potencialmente de excelência por ser tão próximo ao centro e pela situação de junção dos rios.
Por uma divisão de trabalho, acabei me concentrando mais nesta área e acho que a 1ª hipótese era a mais potente e por isso a re-enuncio (ver figuras 3 e 4).
Acentuamos a conexão dos rios, inundamos a várzea numa espécie de pequena Veneza e abrimos um enorme canal, larguíssimo paralelo à Av. Prestes Maia. Havia lá um novo percurso para as antigas e populares regatas.
Nesta hipótese, as 5 torres de 40 pavimentos de escritórios e habitação, o centro de espetáculos e o colégio de grande porte, localizavam-se para lá da Av. Prestes Maia, adjacente à Estação Armênia. Era a grande raia com largura de 50m, paralela à Prestes Maia que separava as torres da Escola e Centro de Espetáculos, ambos com acesso fácil pelo metrô. Naturalmente haveriam conexões entre as torres e estas através de leves e rasas passagens em nível entre uma área e outra. Afinal, a existência dos lotes públicos em oposição às desapropriações exigidas com esta proposta acabaram transladando os projetos para a área diretamente vizinha à Favela do Gato e em detrimento dos canais. Ficou na imaginação a volta das regatas num percurso entre o Tietê, a grande raia e a pequena Veneza.
De modo geral, a reflexão que ao menos se colocou valeu como estopim, imagino, mesmo que ainda restritas às nossas consciências e traços para outro entendimento da cidade. São projetos de grande envergadura e que naturalmente devem ser desenvolvidos com a máxima calma. Para as operações urbanas em curso, inclusive esta, alia jacta est.
notas
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1
Este texto foi escrito para o livro de Hector Vigliecca, em processo de publicação, a propósito da nossa participação junto com o CNEC na Operação Urbana Vila Maria-Campo de Marte contratada pela SEMPLA em 2004. A equipe de arquitetura foi composta por Hector Vigliecca, Ruben Otero, Luciene Quel e por mim. A inserção digital foi feita por André Villas Boas.
2
A área começava na Vila Maria, percorria a Vila Guilherme, o Carandiru e entorno, a área do Anhembi, Santana, chegava ao Campo de Marte e atravessava o Rio Tietê englobando a foz do Tamanduateí até as adjacências da Ponte da Bandeira e Estação Armênia.
3
Há 25 anos quando ainda estávamos na Escola, São Paulo tinha ainda uma escala consideravelmente palatável. O seu crescimento aceleradíssimo deslocou qualquer prognóstico, donde a dificuldade de mapeá-la. Meio americana e meio francesa, ficamos numa encruzilhada entre o boulevard e Los Angeles.
4
Parafraseando Milton Santos, “o nosso quadro de vida”. SANTOS, Milton. O retorno ao território.In SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia A. de; SILVEIRA, Maria Laura. Território: globalização e fragmentação. São Paulo, Hucitec/ANPUR, 4ª ed., 1998, p. 15.
5
Dada a presença dos grandes centros de exposições nacionais e internacionais, Campo de Marte, Terminal Rodoviário Tietê e de áreas esgarçadas com uso pouco definido como a Vila Guilherme justaposta ao bairro singelo da Vila Maria – embora com o maior índice de homicídios da região.
6
As ações, ao longo do metrô aproveitavam 1 circunstância técnica de obra; nos morrotes, atendia-se à necessária demanda de autos resolvendo esteticamente uma questão técnica e de paisagem; os edifícios em grande altura junto com a capa vegetal dos morrotes devolviam em parte a permeabilidade do solo.
7
Envolvendo parte do entorno da Favela do Gato, o Clube de Regatas Tietê, Ponte da Bandeira e Estação Armênia.
sobre o autor
Anne Marie Sumner é arquiteta e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.