Existe uma distinção acentuada entre a “construção”, que abarca os aspectos instrumentais inerentes à sua prática, e a “arquitetura”, que busca representar simbolicamente a cultura e seus mitos (2). Para explorar o significado simbólico da arquitetura recorreu-se a Vittorio Gregotti, quando constata a impossibilidade de conceber arquitetura simplesmente como um serviço no âmbito da construção pela própria natureza do signo arquitetônico em relação a outros sistemas de signos. Este arquiteto enfatiza a existência de “arquiteturas utilizáveis sem ser significantes”, como também admite a possibilidade de que um determinado monumento mantenha sua própria capacidade de ser significativo, ainda que não tenha mais uma utilização prática, mas “que continue a emitir mensagens acerca da própria estrutura”. (3) É também fato, que a arquitetura implica a escolha dos elementos que a integram, dos materiais, e dos símbolos que emite,e, em especial, “da maleabilidade material que se converte em significado visual”. (4)
O processo que dá origem ao objeto arquitetônico, seja ele novo ou pré-existente, passa obrigatoriamente pela idealização do projeto, com vistas à arte, à técnica e aos anseios sociais de seus destinatários. Contudo, pode também restringir-se aos desenhos técnicos desprovidos de criatividade, visando somente à construção e ao lucro imobiliário. Com referência à primeira hipótese, este projeto pode ser imbuído de ícones e sinais que revelem significados múltiplos. De maneira geral, o processo intelectual da concepção de um projeto pode concentrar-se principalmente no impacto das idéias, procedimento que permite estabelecer os preceitos fundamentais definidores da proposta ainda na etapa conceitual, portanto, na etapa da elaboração dos croquis. Dos croquis aos estudos preliminares, o processo evolui, possibilitando que as principais idéias da concepção sejam ajustadas e permitam chegar ao projeto definitivo. Vale lembrar que, em artigo de 1968, Sérgio Ferro alega que o projeto, em arquitetura, envolve vários níveis: “é particular, enquanto solução para um determinado problema imediato, e é também, parte e reflexo de uma atitude global do seu autor e através dele, do tempo em que vive”. Porém, ao se observar a obra acabada, pode ser verificada a “adequação ou incompatibilidade das partes e níveis que a compõem, e é possível apontar as intenções e atitudes mais profundas que guiaram a sua elaboração”. (5) É bem verdade que quase sempre ocorrem modificações durante a realização da obra, por parte do empreiteiro, dos operários e do próprio arquiteto. (6) Entretanto, seria desejável que as alterações surgidas ao longo da obra mantivessem a conexão entre a idéia e a matéria.
A própria Lina, a partir de certo momento, evitou detalhar o projeto em escritório e passou a resolver os detalhes no canteiro, portanto, embora mantida a coerência, as modificações eram sempre possíveis, talvez pelo fato de que a arquiteta estivesse bastante empenhada em diluir a autoria do projeto entre as pessoas envolvidas na construção e os próprios usuários dos espaços projetados. Talvez, Lina compartilhasse algumas idéias de Ferro, o qual aponta em seu livro O canteiro e o desenho para outra compreensão entre idealização e construção aplicando à arquitetura conceitos marxistas. (7)
Há que se admitir que conferir significados ao objeto arquitetural não depende exclusivamente do arquiteto, pois outros profissionais estão envolvidos na execução da obra. O significado pode variar para diferentes atores sociais, mas o arquiteto, em geral, é aquele que tem maior desejo de conferir significados à edificação. Ainda que o significado possa variar para cada fruidor da arquitetura, Lina se preocupava muito com o usuário final, e de que modo o projeto estaria adequado ao público e ao contexto urbano. Em suas próprias palavras, “o arquiteto planificador tem que basear o seu projeto sobre o desenvolvimento natural das formas arquitetônicas, urbanísticas criadas pela necessidade da vida cotidiana” (8). Esta abordagem - vinda de uma profissional que teve intenso contato com o racionalismo milanês (9) - parece ter sido inspirada no intenso período de investigações antropológicas e estéticas empreendidas durante sua estada em Salvador e no Recôncavo baiano. Naquela ocasião a artista integrou um grupo de intelectuais preocupados com a cultura, com a política, e, principalmente, com o fortalecimento da Universidade da Bahia (1958-1964).
O recorte empreendido neste estudo parte de uma pesquisa iconográfica (10) com base em algumas aquarelas, plantas e croquis elaborados por Lina para definir espaços teatrais, seja em modificações de uso de edificações pré-existentes, seja para propostas de novas estruturas. Entendemos que, investigar a concepção inicial dos projetos permite já perceber a integração entre idéia e matéria e entre a inserção do programa e as soluções sociais do ambiente urbano.
Para investigar as relações entre a arquitetura teatral de Lina Bo Bardi e o contexto urbano, foi aplicada a noção de genius loci, que é um conceito romano. Na Roma antiga, acreditava-se que todo ser independente possuía um genius, um espírito guardião. (...) Principalmente na Antiguidade clássica os indivíduos reconheciam a importância de estar em harmonia com o genius da localidade onde viviam. (11) Lina compreendia perfeitamente como contextualizar um uso funcional, tornando-o simbólico a partir do conceito de “espírito do lugar”. (12) Utilizou-se também a fenomenologia do espaço, entendida por Christian Norberg-Schulz como um método que exige o retorno às coisas, em oposição às abstrações e construções mentais (13). Outros autores, como Gregotti, também aludem à necessidade de que o local da edificação intensifique, e indique com exatidão, a estrutura da natureza e como o homem a percebe, antes de intervir (14).
Além do foco no sítio, a fenomenologia abrange a tectônica (15), porque no dizer de Norberg-Schulz , “o detalhe explica o ambiente e manifesta sua qualidade peculiar”. (16) Também desperta intenso interesse pelas qualidades sensoriais dos materiais, da luz, da cor, bem como da importância simbólica e tátil dos detalhes. É, portanto, uma ciência adequada para investigar os projetos gráficos da arquiteta, que segundo Olívia Oliveira trabalhou com sutis substâncias da arquitetura, quais sejam a luz, a água, a obra de arte (17).
Outro documento utilizado foi a fotografia que, apesar de muito subjetiva como afirma Roland Barthes (18), cumpre a missão de reproduzir as edificações, ou seja, aquilo que existe de bidimensional e tridimensional na arquitetura, resolvendo em grande parte os problemas da representação a três dimensões, a partir de um determinado ângulo de visão. Ainda assim, vale ressaltar que o fotógrafo realiza uma leitura autoral, escolhendo o recorte e o ponto de vista. Isto significa que, dependendo dos múltiplos ângulos de visão e do número de fotografias poder-se-ia analisar o edifício completo, porém seria impossível compreender a sua essência espacial (19), que é um dado fundamental da arquitetura.
Muito recorrentes no campo artístico antes do advento da fotografia, as gravuras, bem como os documentos fotográficos, são indispensáveis quando se analisa uma edificação já demolida, como utilizei no processo de redescobrir formas de teatros e cinemas muitas vezes desaparecidos (20). Porém, mais do que as gravuras ou fotografias de edificações, muitas das quais já descaracterizadas ou mal conservadas ao longo do tempo, interessam-me os desenhos eloqüentes que denotam a idéia inicial de criar espaços contextualizados de acordo com o genius loci, ou seja - o “espírito do lugar”, que permeou a arquitetura teatral de Lina.
Vale lembrar que com referência à arquitetura, Umberto Eco ressalta,
“é mister distinguirmos os códigos de leitura e de construção do objeto, dos códigos de leitura e elaboração do projeto do objeto. De fato, estabelecidas as regras de interpretação do objeto, delas decorrem as regras de notação do projeto, no sentido de que são regras de notação de uma linguagem não escrita, criada segundo modos convencionados ao nível da escritura”.(21)
No que se refere à elaboração do projeto, entende-se que a arquitetura busque representar simbolicamente a cultura e seus mitos, atendendo às necessidades dos indivíduos que a utilizarão. Para tal, as formas e os detalhes devem ser traduzidos nos códigos convencionais para que a futura construção, utilizando o instrumental inerente à sua prática, possa denotar suas respectivas funções e conotar os significados emblemáticos contidos no projeto. As conotações mais ricas vêm das formas arquitetônicas mais simples, como uma coluna, uma escada, um arco, uma torre, entre outros elementos marcantes de um projeto.
Uma análise acurada dos detalhes nos prédios adaptados ou construídos somente pode ser realizada pela contínua comparação entre, por um lado, os desenhos e objetos construídos e, por outro, as referências históricas, as práticas e as formas que originaram cada detalhe. Além disto, deve-se analisar não só os desenhos e plantas, mas também o que resultou da interação do trabalho entre o projeto dos arquitetos e a interpretação dos engenheiros e operários, no processo de construção da obra. Nos códigos de leitura de elaboração do projeto arquitetônico, verifica-se que,
“A planta de um edifício não é, efetivamente, mais do que uma projeção abstrata em plano horizontal de todas as suas paredes, uma realidade que ninguém vê a não ser no papel, cuja única justificativa depende da necessidade de medir as distâncias entre os vários elementos da construção. Ainda hoje, a análise das plantas e elevações de um prédio constitui um dos melhores meios para a representação arquitetônica” (22).
Entrar na esfera de influência de um prédio, pisar em seu território, olhar pela janela, transpor um pórtico, entender o Espaço Interior e o Espaço Exterior, segundo os conceitos de Teixeira Coelho são experiências sensoriais indispensáveis para fruir a arquitetura (23). Entretanto, sustento que com o domínio dos códigos adequados, é possível interpretar a História da Arquitetura por meio da investigação de documentos gráficos somados aos documentos escritos. (Quantos projetos não executados de Le Corbusier e Walter Gropius, para citar somente dois mestres do Movimento Moderno, serviram de inspiração para toda uma geração de arquitetos que liam as publicações onde croquis e maquetes de prédios jamais edificados foram analisados e criticados?)
A experiência espacial própria da arquitetura prolonga-se na cidade, nas ruas e praças, nos becos e parques, nos estádios e jardins, onde quer que a obra do homem tenha limitado “vazios arquiteturais”, isto é, onde tenha criado espaços fechados. Lina tem uma atitude cuidadosa com a implantação, vinculando-a ao funcionamento da cidade e ao entorno do sítio urbano em que o projeto está localizado. Ao delinear seus projetos, está consciente de que está repaginando a cidade com as novas inserções e usos simbólicos, implicando novas conexões e dinâmicas no tecido urbano.
Este fato ocorre nos espaços teatrais de Lina, que marcam o “espírito do lugar”, pois se tornam referências nos bairros e até nas cidades em que se situam, como acontece no Teatro Oficina, no Bixiga, no SESC da Pompéia e no Teatro Polytheama de Jundiaí. O teatro Gregório de Mattos é uma inspiração poética no meio do casario da Barroquinha, de forte expressão simbólica. Um espaço de alegria e confraternização. É este significado emblemático dos espaços teatrais que foi identificado por meio da análise dos desenhos.
Ao tentarmos estabelecer uma relação entre desenhos e futura edificação podemos ser levados a realizar meramente uma interpretação das linhas traçadas, buscando imaginar uma estrutura, ainda dependendo de um memorial e de especificações. Entretanto, os croquis de Lina demonstram claramente sua idéia do que poderá ser a construção ou o remanejamento dos espaços. São repletos de observações que expressam significados diversos, aproximando o pesquisador dos materiais concretos utilizados no espaço projetado. Não são apenas conjuntos de linhas, superfícies e volumes, mas denotam a mudança de um sistema de representação para outro, do desenho para o espaço que será modificado. Conotam componentes não visíveis, mas que são o resultado e a idéia da edificação e da interpretação de seu significado.
Valorizar além das plantas e cortes, os croquis elaborados antes da formulação definitiva do projeto, permite considerar o projeto de arquitetura como uma série de procedimentos utilizados para delinear um artefato que ainda não existe, demandando, portanto, desde o início, uma trajetória que vai sendo percorrida por etapas de um processo. Uma ilustração esboçada a esmo completa a informação e reforça as características deixadas pelo arquiteto num suporte qualquer, à mão livre. São os croquis que direcionam a criatividade do arquiteto aos estudos preliminares. A partir destes primeiros desenhos, as formas vão se definindo até que seja possível elaborar desenhos técnicos e precisos que definirão o objeto a edificar.
Tal como nos desenhos de seu conterrâneo Carlo Scarpa (1906-1979) (24), os esboços de Lina mostram a verdadeira natureza dos desenhos arquitetônicos, isto é, o fato de que são representações resultantes de construções, de uma interpretação de juízos perceptivos sobrepostos ao processo real de construção física de um objeto arquitetônico. As linhas e as marcas no papel constituem a transformação de um sistema de representação para outro, a transformação de sinais adequados com vista a construir determinados eventos arquiteturais.
Em outras palavras, de um lado estão os fenômenos da construção e da transformação pelos construtores, de outro lado estão os fenômenos da construção de significados e da transformação por parte dos possíveis usuários. Em conseqüência disso, no mesmo desenho estão presentes várias camadas de pensamento.
Muitos arquitetos modificam seus projetos ao longo do processo de construção, como fazia Lina - que dizia que “seu escritório era a própria obra”-, porém este fato não invalida a tese de que os croquis e esboços possibilitam acompanhar os processos e técnicas da criação arquitetônica. Permitem também avaliar as poéticas formuladas antes da produção gráfica definitiva do projeto e aquelas desenhadas no decorrer da obra, já então num processo de absorção da criatividade dos artesãos da construção.
Diante da problemática e das considerações apresentadas, o objetivo deste trabalho foi analisar as relações simbólicas e emblemáticas entre os espaços teatrais e os contextos urbanos, utilizando como referência desenhos e fotos de alguns projetos de Lina Bo Bardi.
A arquitetura cênica de Lina Bo Bardi
Os croquis do SESC da Pompéia, Cine–Teatro Polytheama, Teatro Gregório de Barros e Teatro das Ruínas (não edificado) permitem uma leitura das concepções da arquiteta e foram investigados em suas versões pré-existentes e confrontados, após restauro ou construção, com fotografias das edificações, quando estas foram construídas. Não se trata de pensar a inserção dos prédios nos terrenos, porém do caráter das adaptações ou propostas inéditas idealizadas, à luz da harmonia com os usuários, com a “vocação do lugar”.
Vale ressaltar que os documentos gráficos não substituem a análise da obra edificada, porém possibilitam avaliar os processos que sofreram desde a primeira idealização e a realidade construída. É indispensável analisar, ver e sentir a obra, mesmo porque Lina realizava, tal como Antoni Gaudi, a construção e a tradução de seus conceitos espaciais durante a própria obra. À copiosa documentação iconográfica existente nos Arquivos do Instituto Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi, somou-se a documentação dos textos escritos pela artista.
O processo de criação de Lina seguia sua crença de que “é preciso fazer uma obra que sirva, que tenha uma conotação de uso, de aproveitamento, que exprima uma necessidade” (25). O arquiteto romano Vitruvius (I A.C.), um dos primeiros teóricos da arquitetura – disciplina que na época implicava um sentido bem mais abrangente-, escreveu que uma edificação bem concebida deve contemplar as três qualidades: firmitas, utilitas, venustas — o que significa que deve ser forte e durável, ter utilidade e ser bela. (26) Para Lina, o sentido vitruviano de belo só era válido quando atendia às necessidades do indivíduo. Sua arquitetura partia do pré-existente e buscava contextualizar a obra com os desejos do ser humano, numa visão antropológica, visando amenizar as deficiências sócio-culturais. Sua concepção do projeto era sempre crítica, mas imbuída de uma poética oriunda na história na cultura local. (27) Suas escolhas ao conjugar materiais brutos (como o concreto armado) articulados com objetos produzidos pelo design, ao utilizar “buracos” à guisa de janelas e vedá-los com a treliça típica dos muxarabís, incluíam também, no processo criativo, os operários, mestres de obras e suas capacidades artesanais.
Como afirma Argan, arte e artesanato encontram um fundamento comum na matéria natural, que por meio da obra humana visa a atingir uma perfeição ideal: o trabalho humano – tempo de existência e de experiência – que aumenta o valor inicial da matéria porque este é também determinado pela obra humana. “La matière dépasse ainsi sa propre inertie, sa propre limite physique originelle. Elle entre en rapport avec le monde, devient porteuse d´expérience historique » (28). Utilizando madeira nativa para as poltronas dos espaços teatrais, especificando treliças para sustentação de telhados tradicionais, Lina dialoga simultaneamente com sistemas industrializados e sentidos da tradição, utiliza materiais locais e soluções de alta tecnologia, como se verificou nos desenhos do projeto de acesso ao Theatro Polytheama.
Seja pela economia de meios material e retórica, seja porque é incessante a busca da superposição do tempo e espaço em um só instante e lugar, a arquitetura de espaços teatrais de Lina é concisa. Sua arquitetura assemelha-se a uma narrativa simbólica do cotidiano dos indivíduos comuns, dos trabalhadores em particular (29).
Teatro SESC da Pompéia
Nos galpões pré-existentes do complexo do Sesc Pompéia, inclusive o do teatro, tudo que denota a idéia de fábrica é mantido, como as paredes de tijolo à vista, a estrutura de concreto, bem como a pavimentação em paralelepípedos e as coberturas em telhas cerâmicas. Na aquarela elaborada por Lina para o teatro, as anotações registram inicialmente, arquibancadas em concreto com assentos em madeira sem almofadas com aproximadamente 1000 lugares, paredes em concreto aparente, aberturas entre os pilares da estrutura aproveitados como camarotes, cabines com projeção e chapas ferro pintado preto no teto, para correção acústica. (Fig. 1, 2 3). Uma das ruas-corredores centrais que dava acesso a outros pavilhões foi recoberta com tesouras de madeira e telhas de vidro e o espaço transformou-se no foyer do teatro. (Fig. 4) Sobre esta rua interna transformada em foyer, ela projetou os camarins, salas de luz e de som.
Percebe-se na aquarela que originou o espaço teatral do SESC a intensa participação dos espectadores na ação que se desenrola no tablado, pela própria proposta de um espaço aberto como palco. (Fig. 5) A proposta denota a concepção de transformar o teatro em um lugar de entretenimento, sem abandonar a lembrança de que aquela edificação tinha sido um local de trabalho. Tal como Norberg-Schulz, Lina preocupa-se com a concretização do espaço existencial, mediante a formação de “lugares vivenciados”. O aspecto tectônico da arquitetura tem um papel nisso, principalmente no que diz respeito ao detalhe concreto que “explica o ambiente e exprime seu caráter” (30).
O valor simbólico deste espaço transmite-se pela não descaracterização da arquitetura da antiga Fábrica de Tambores, transformada em Centro de Lazer comunitário, na qual um dos pavilhões foi adaptado para o teatro. Adequadas ao bairro popular, as arquibancadas não discriminam as classes sociais e destinam-se, assim como o projeto total do SESC Pompéia, aos trabalhadores e seus familiares, sendo aberto ao público em geral. Uma chaminé e um edifício em concreto foram acrescidos aos pavilhões da antiga fábrica e se articulam com o antigo bairro fabril, no qual Lina criou um universo inusitado de lazer e cultura.
Teatro Gregório de Mattos
Localizado na Praça Castro Alves em Salvador, o Teatro Gregório de Mattos integrou um projeto de conservação urbana mais abrangente, denominado o Projeto Cultural da Barroquinha, desenvolvido sob a coordenação de Lina. A aquarela - Varais e teatro de 21/3/87 (Fig. 6) transmite uma poética do informal e da troca. A legenda “Estudo para uma Exposição e Teatro do Extremo Oriente e História da Companhia das Índias” é elucidativa da possibilidade de transformação da sala de espetáculo, na qual as poltronas são cadeiras de madeira dobráveis que podem ser dispostas de maneiras diversas neste amplo salão projetado pela arquiteta. O croqui permite perceber a reincidência do palco em arena, só que nesta organização, diferentemente do espaço teatral do Sesc da Pompéia, a arquiteta está propondo um tablado retangular central cercado de cadeiras por todos os lados.
Os varais remetem à tapeçaria oriental, com forte predomínio de amarelos e vermelhos, que pendem do teto, denotando elementos bem peculiares aos circos. O próprio telhado do edifício, um sobrado do século XVIII, foi totalmente substituído por um vigamento que confere ao espaço uma imagem circense, por meio da estrutura que conforma a tenda de arquitetura efêmera. Tema recorrente na obra de Lina, tal como na obra pictórica de seu pai Enrico Bo, o circo foi inúmeras vezes desenhado pela arquiteta, inclusive quando se instalou sob o notável vão do MASP. O documento atesta a poética da arquiteta para tratar o espaço de forma lúdica. Por contraste entre o documento aquarelado e o documento fotográfico, constrói-se a imagem da maleabilidade da arquitetura de Lina, que, com um mínimo de elementos, criou espaços que são verdadeiros “lugares”.
Ao adentrar este prédio no Centro Histórico de Salvador, o indivíduo sente-se contaminado pelo próprio espaço, pela poesia da escada escultural e pela proximidade dos demais espectadores em cadeiras que nem possuem braços, como desejava a arquiteta. Lina problematiza perfeitamente a inteiração do corpo humano com seu ambiente, confirmando que as sensações visuais, táteis e olfativas e auditivas constituem a parte visceral da apreensão da arquitetura, um veículo que se distingue por sua presença tridimensional (31). Contudo, uma eloqüente aquarela pode também refletir o uso de um espaço intensamente vivenciado. (Fig. 7)
Outro documento gráfico importante é o conjunto de croquis demonstrando o processo criativo do elemento mais simbólico deste teatro, que é a escada helicoidal solta no meio do espaço, sustentada por um robusto pilar. Na verdade, as formas desta e de outras escadas são uma constante na produção de Lina, apresentando-se como elementos totêmicos, que se repetem em diferentes materiais, não só em teatros, como também nas residências e museus que projetou (32).
Nestes estudos em aquarela sobre papel manteiga, realizados em 16/10/86 para definir a Escada (Fig. 8), a arquiteta demonstra total domínio sobre as técnicas estruturais propondo nervuras em concreto como numa espinha de peixe para sustentar o balanço da escada, com degraus de dois metros de largura. Nas observações dos croquis, Lina refere-se ao pilar central como uma estrutura de ferro pintada de vermelho que deveria assemelhar-se a uma “escultura abstrata”. Além de preocupar-se com a inserção fenomenológica do homem nos espaços que projetou, Lina enfatiza o dimensionamento da altura e dimensão do pilar central que dependem da “flambagem”, e, consequentemente, da verificação do cálculo estrutural, demonstrando o domínio profundo e a preocupação estrutural que tinha sobre a materialidade da construção.
Paralelamente, os croquis acrescidos das explicações textuais da arquiteta indicam o valor simbólico que o elemento “escada” tem na concepção do Teatro Gregório de Mattos como consta do texto:
“No projeto que estamos fazendo do Teatro e Fundação Gregório de Mattos, há a necessidade de uma escada que ligue o térreo ao andar superior. Como o projeto é muito simples, e o ambiente será da maior simplicidade, embora nobre, precisava de um elemento que fosse um ponto de interesse fundamental para um ambiente assim tão despido. (...) Aí projetamos uma escada. Bom, quando pensei na escada, pensei numa estrutura que fosse um pouco diferente, quer dizer, uma parte portante e uma parte apoiada, como uma folha de papel dobradinho, isto é, os degraus. (...) Aqui, há um corpo central, que é um pilar, com uma viga que praticamente abraça o pilar, e desta viga saem, como espinhas de peixe, umas mãos-francesas. Em cima desta estrutura fundamental, que é a parte portante da escada, se apóia, como um papel, um papelãozinho dobradinho (os dobradinhos seriam degraus), a escada propriamente dita” (33).
Este trecho do artigo revela também a preocupação estrutural de Lina, para quem a arte e a técnica são inseparáveis da verdadeira arquitetura.
Eco descreve a arquitetura como um sistema semiótico de significação. Sustenta que os signos arquiteturais comunicam funções por intermédio de um sistema de convenções e códigos. Portanto os signos arquitetônicos denotam funções primárias e conotam funções secundárias (34). A escada do Teatro Gregório de Mattos denota a função de interligar o primeiro piso (foyer e salão de exposições) ao segundo piso (teatro). Numa análise semiológica, conota em sua forma criativa um senso de ascensão, de elevação ao infinito, de totem escultural, desenvolvendo-se em torno de um pilar vermelho de seção quadrada, como uma monumental escultura. (Fig. 9)
A transformação de um sobrado neste espaço de sonho para as artes cênicas dependeu da demolição interna das alvenarias, como se verifica nas plantas e cortes (Fig. 10), confirmando que a metodologia adotada para a conservação de edificações não segue os preceitos de Cesare Brandi, ou das Cartas Patrimoniais mais recentes. Como muitas vezes explicou, Lina aplicava às transformações de uso em edificações históricas, o método do Restauro Crítico. (35)
Na tese de cátedra apresentada à USP, fica claro que Lina tinha grande admiração por Gustavo Giovannoni, seu professor na Faculdade de Arquitetura na Universidade de Roma, com o qual comungava o conceito de que a arquitetura do Movimento Moderno buscava apagar o passado numa visão equivocada de progresso. Tal como o professor, defendia o respeito à História na profissão do arquiteto (36). Giovanonni é o autor do conceito de Restauro Científico, que considerava o monumento como documento a salvaguardar, num determinado contexto urbano, contestando o método de Viollet-le-Duc que estabelecia a reprodução fiel dos elementos arquiteturais danificados pelo tempo.
Tanto os desenhos quanto os textos de Lina ratificam que ela segue os princípios do Restauro Crítico (37), mas, a partir dos anos 1970, passa a adotar o conceito de “presente histórico” para as suas obras de restauro, pois afirma que o “passado” deve ser reanimado pelo presente. (38) Este conceito de valorizar o passado do indivíduo, da memória coletiva, fundamentou os projetos para o Teatro Gregório de Mattos, entre outras obras.
Teatro Polytheama
Inaugurado em 13 de dezembro de 1911, o edifício teatral contava com um picadeiro camuflado, localizado no local da platéia, acrescido ainda da caixa cênica à italiana, que possibilitava sua transformação em salão de circo, caso necessário. O antigo Polytheama foi palco de espetáculos de teatro, cinema, música, e operetas. Fechado para reforma em 1927, o teatro recebeu novas poltronas e modernização das instalações elétricas, sendo na ocasião criadas novas entradas independentes para os três pavimentos da sala de espetáculo. Platéia e frisas no térreo, camarotes no andar intermediário e balcões no último pavimento brilhavam quando de sua reabertura em 1928, atendendo à demanda também do cinema que se popularizava. Em 1940 ampliou-se o foyer, introduzindo-se nova bilheteria e a bombonnière. Interditado em 1969, o teatro Polytheama passou à administração municipal e, em 1985, a convite da Comissão Municipal de Estudos Políticos, Lina foi chamada para coordenar o projeto de restauro do prédio.
Em texto de 1989, Lina compara emblematicamente o Polytheama de Jundiaí ao projeto da Maison du Peuple de Victor Horta construída em Bruxelas no final do século XIX. Não porque houvesse qualquer aproximação plástica entre os dois espaços, mas devido ao uso múltiplo, visto que o cine-teatro de Jundiaí também abrigava reuniões, comícios políticos, circos, entre outras atividades de convivência humana. Seu projeto, do qual participaram Marcelo Ferraz e Marcelo Susuki, deixava intacto o espírito de teatro como emblema de um tempo e de uma cidade. Lina almejava transformá-lo no próprio ícone de Jundiaí. Quanto à reforma, os critérios de restauração “seguiram os princípios da restauração de hoje, isto é, não só os da rigorosa restauração, como os princípios de um ‘plano direcional’, única saída para a plena realização de uma ‘continuidade histórica’ no tempo e na memória” (39)
A solução encontrada nos desenhos de 7/7/89 para melhorar o acesso ao 1º e 2º pavimentos foi planejar uma espécie de túnel em rampa feito de tubo de seção circular em concreto leve conforme desenhado na lateral da fachada eclética (Fig. 11). Os novos acessos aos andares superiores apresentam “escotilhas” que remetem ao submarino Nautilus, ou à câmara cinematográfica dos Irmãos Méliès e denotam a capacidade de Lina em articular o histórico ao contemporâneo, sem, contudo, retirar o significado da antiga edificação destinada ao “lugar e seus habitantes”. As demais propostas para a reestruturação e modernização interna do prédio eram ambiciosas como atestam as plantas heliográficas aquareladas. A arquitetura de Lina une a representação à função, pois idealiza um elemento contemporâneo de forte simbolismo para resolver uma questão prática.
Na planta de situação (Fig. 12) Lina faz um alerta e explica que o novo Polytheama ocuparia parte do terreno da Eletropaulo, ou seja, aquela empresa ficaria com a torre, um amplo jardim e mais uma parte da velha construção e uma nova a ser construída. Propôs um estacionamento para carros e uma entrada pela rua Vigário Rodrigues e um outro acesso através do gramado e jardim do teatro da rua Barão de Jundiaí. Prevê o ajardinamento ao redor de todo o prédio, contextualizando-o com a paisagem e convidando o transeunte a adentrar o terreno.
Contudo, consciente ou inconscientemente, é nos estudos para a boca de cena (Fig. 13 e 14) que Lina adota uma antiga proposta corbusiana apresentada nos Anais de um Congresso Internacional de Arquitetura e Dramaturgia, ocorrido em Paris em 1948, e publicado em 1950, período no qual Lina já estava no Brasil, porém recebendo constantemente publicações européias. Naquela ocasião, teóricos do teatro, cenógrafos e arquitetos discutiram qual seria a proposta mais adequada para o palco cênico no pós-guerra europeu. Um dos congressistas, Le Corbusier, mostra que estes espaços teatrais são desafiantes aos arquitetos, porém, por conhecerem melhor os volumes são os mais indicados para criar tais espaços. E acrescenta:
“Je pense que cette tâche est possible. La « boîte à miracles » est un cube: par-dessus, il y a tout ce qui est nécessaire, la lumière et tous les appareils nécessaires pour faire des miracles, levage, manutention, bruit, etc. L'intérieur est nu et vous suggérerez, par création de l'esprit, tout ce que vous voudrez à la manière des comédiens de la Commedia dell'arte. On peut faire encore ce qui a été suggéré à propos du fond de scène: la boîte qui peut s'ouvrir au dehors (...). Vous pourrez ouvrir le fond de scène et avoir un amphithéâtre de plein air pour les jours de beau temps“.(40)
Indicada nas plantas e cortes de 1989, a ousada empreitada não se concretizou na reforma do Polytheama. Entretanto, recentemente, foi utilizada em teatros projetados por Oscar Niemeyer. (41)
Lina faleceu antes de realizar o projeto de restauro, porém os arquitetos Ferraz, Fanucci, Suzuki do escritório Brasil Arquitetura deram continuidade à reforma do teatro Polytheama, cuja orientação seguiu o princípio norteador traçado anteriormente por Lina: resgatar a alma popular e polivalente daquela edificação, num encontro do teatro moderno com sua história. O valor simbólico da arquitetura deste teatro - que se encontrava abandonado-, consistiu em transformá-lo em prédio emblemático da cultura jundaiense, fato que realmente ocorreu.
Teatro das Ruínas
Os primeiros esboços para a instalação do Teatro das Ruínas em Campinas foram feitos em 30/11/1989 e comprovam a idéia e a concepção de Lina sobre um teatro liberto de convenções, um teatro com caráter de praça pública, com fisionomia de circo armado sob uma arquitetura de estruturas atirantadas e lonas. (Fig. 15) A proposta era aproveitar as ruínas de uma edificação residencial do século XIX. Iniciado em 1989, infelizmente, este projeto não foi concretizado.
Um desenho em tinta azul para a instalação do Teatro das Ruínas (fig. 16) revela a intenção da arquiteta criar uma verdadeira skenèsobre as ruínas, numa reminiscência ao teatro grego. Esta caixa cênica seria uma estrutura leve executada em tubos de ferro e recoberta por três pirâmides em lona, uma central e mais alta e duas laterais, mais baixas. Estas estruturas circences apresentariam “olhos”, ou seja, vãos circulares permitindo que as vozes também atingissem os espectadores pelo alto. A proposta de arquitetura “pobre” prevê o público abrigado em arquibancadas simples sob cobertura de sapê, solução que denota um total respeito pelos remanescentes da antiga casa e da senzala, como se verifica na fotografia. (Fig. 17).
Esta criação, apesar de não edificada, revela a forte ligação da arquiteta com a concepção de tempo histórico. Recuperar a história era para ela não um ato de mero formalismo estilístico, mas uma pesquisa metodológica que poderia prescindir algumas vezes dos conhecimentos tradicionais do restauro. Há indícios que, apesar das ambigüidades estilísticas apontadas por diferentes pesquisadores, Lina, foi uma marxista de formação, que entendeu o papel do intelectual tal como conceituado por Antonio Gramsci, ou seja, o de estabelecer a ponte e o equilíbrio entre a modernidade e a tradição (42). Seu conceito de tradição envolve não apenas a recuperação da memória da edificação, mas, principalmente, a “memória do lugar”. Como afirma Pasqualito Magnavita, em cada projeto de Lina, “respeitando as preexistências e valores essenciais da mensagem histórica, somam-se outros tantos conteúdos densos de expressão e cuidadosamente elaborados”.(43)
A dialética existente entre a materialidade das ruínas e as estruturas contemporâneas enfatiza as indagações sobre o tempo e a história, tantas vezes citados nos textos da arquiteta, nos quais o presente deve ser histórico e deve estar sempre iluminando o passado. Percebe-se o interesse da artista pelas artes feitas pela população, pois Lina retorna sempre ao aspecto poético e social nos espaços que idealiza. A originalidade gratuita que ela tanto refuta, talvez esteja mesmo na possibilidade de utilizar conceitos idênticos em contextos diversos, como se verifica em toda a sua obra.
Algumas considerações
Edson Mafuz comenta que na obra de Lina Bo Bardi a “idéia forte” aparece como um catalisador das interpretações e decisões parciais tomadas a respeito dos aspectos fundamentais de qualquer projeto: o programa, a construção e o lugar (44). No teatro e em todas as adaptações das estruturas históricas, a arquiteta foi capaz de criar o “espírito do lugar” na verdadeira acepção da palavra, ou seja, um lugar vivenciado, no qual concretizou o genius loci, este conceito romano que empregou em sua arquitetura capaz de despertar nossa imaginação. Seus projetos sempre simbolizaram a existência ou a presença humana e emitem significados múltiplos.
Em especial os croquis e as aquarelas de Lina constituem um acervo documental de rara qualidade, pois além de serem documentos técnicos, apresentam a forte vertente onírica identificada na produção da arquiteta. Não são apenas rabiscos numa folha de papel manteiga, pois parecem sair do papel. Coloridos, trazem comentários e observações da arquiteta, especificam materiais e mostram o projeto como se já estivesse fora do suporte, com pessoas ao redor e toda a ambiência que ela gostaria de proporcionar. O melhor, contudo, é notar que, apesar de lúdicos, são absolutamente reais, constituindo verdadeiros documentos para quem pesquisa a História e os Fundamentos da Arquitetura. Neles transparece a proposta bobardiana de criticar a autonomia da arquitetura moderna e o mito da originalidade, ou seja, a imaginação de Lina leva-a a conceber elementos e detalhes arquitetônicos inusitados, sejam eles projetuais ou modificados in loco, que retornam sempre em temas diversos. O que realmente importa é que a arquitetura implique sempre o uso e os desejos dos indivíduos que vão usufruí-la, e seja perfeitamente inserida no bairro no qual se situa.
A investigação e confrontação de documentos gráficos, fotográficos, pictóricos e historiográficos permitiram comprovar que - contrariando muitas vezes a idéia de ruptura e de fazer tavola rasa do passado, como foi propagado pelos ideólogos do Movimento Moderno, a arquitetura teatral de Bardi pode ser identificada como adequada aos conceitos de arte e técnica com base nos pressupostos teóricos de Giulio Carlo Argan, para o qual “ciò che storicamente conosciamo como arte è um insieme di cose prodotte da tecniche differenziate, ma aventi tra loro affinità per cui costituiscono un sistema” (45). Lina realizou sua experiência estética como um sistema de inter-relações de técnicas contemporâneas com “fazeres” da realidade local, em especial no que tange ao agenciamento do espaço e ao desejo de preservar o passado e a tradição, porém construindo para o futuro.
A missão do historiador da arquitetura é tornar cada vez mais eficiente a técnica da análise do espaço arquitetônico por meio da documentação disponível, complementando esta análise com a própria vivência dos espaços in loco, quando ainda for possível. Zevi afirma que “o espaço interior é um espaço que não pode ser conhecido e vivido a não ser por experiência direta, pois é ele o protagonista do fato arquitetônico” (46). No entanto, os croquis preliminares e toda a pesquisa iconográfica tida como fonte podem apontar para as características projetuais de cada arquiteto e permitem idealizar as edificações e seus significados simbólicos.
A pesquisa iconográfica e iconológica dos croquis e esboços elaborados por Lina permitiu verificar os primeiros impulsos de criação arquitetônica, posteriormente vivenciados pelo público nos próprios espaços teatrais. Os desenhos da arquiteta não são meras soluções de geometria descritiva, são descrições da futura percepção de como a obra será executada. Exibem componentes não visíveis, mas que são o resultado e a projeção da construção e da interpretação do significado.
Se a arquitetura começa a existir quando concretiza o genius loci, quando os espaços projetados reúnem as propriedades do lugar e as reaproximam do homem, pode-se afirmar que “compreender a vocação do lugar” (47) foi a questão prioritária nas obras teatrais de Lina. Foi o que ficou atestado a partir das análises iconográficas e iconológicas de todas as imagens e os desenhos consultados.
notas
1
Este artigo é produto da pesquisa institucional Estudos do Espaço Teatral (5ª etapa), apoiada pelo CNPq e contou com a participação da bolsista I/C FAPERJ Regilan Pereira. Numa versão simplificada foi apresentada no 1º Seminário Latino-Americano de Arquitetura e Documentação, Belo Horizonte, agosto 2008.
2
NESBITT, Kate. (org.) Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). Trad.Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 102.
3
GREGOTTI, Vittorio. Território da Arquitetura. Trad. Berta e Joan Villá. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 180.
4
Idem, ibidem, p.182.
5
FERRO, Sergio. Arquitetura Nova. Arte em Revista. 4 (2ª ed.), São Paulo: CEAC, março de 1983 (Art. de 1968), p. 89-95, 89.
6
No livro O canteiro e o desenho (1976), Sérgio Ferro propõe a aliança entre os técnicos e os trabalhadores da construção civil, fundamentadas em conceitos marxistas de teoria e práxis.
7
Um dos pontos que Ferro lamenta é a conduta solitária do arquiteto na elaboração de seus objetos, cada vez mais destinados a grupos econômicos e produzidos concretamente por uma quantidade de operários e técnicos diversos. Ferro, Sérgio. Reflexões para uma política na arquitetura. Arte em Revista. 4 (2ª ed.),São Paulo: CEAC, março de 1983 (Art. de 1969/70), p. 95-99, p.98.
8
BARDI, Lina Bo. Crônicas 8, de história, de cultura da vida, arquitetura, pintura escultura musica artes visuais. Diário de Notícias - Cidade de Salvador, 26 de outubro de 1958.
9
Apesar de formada pela Universidade de Roma em 1939, onde imperava uma postura mais clássica, Lina foi, já como arquiteta, trabalhar em Milão, onde naturalmente teve contato com a corrente racionalista e com as posturas renovadoras da arquitetura.
10
Erwin Panofsky definiu iconografia como o estudo do tema ou assunto e iconologia o estudo do significado do objeto em seu artigo Estudos em Iconologia (1939). Nesta pesquisa foram realizados os dois estudos.
11
NORBERG-SCHULZ, Christian. O fenômeno do lugar. in NESBITT, Kate. (org.) Op. cit, 2006, p. 444-461, p. 454.
12
Na concepção de Aristóteles e de Heidegger, além de seu atributo de ser espaço fechado ou finito, o “lugar” tem o importante papel simbólico e político de representar a estrutura das relações sociais, ou a res publica.
13
NORBERG-SCHULZ, Christian. Op.cit., 2006, p. 444-461, p. 445.
14
GREGOTTI, Vittorio. Op. cit., 1975, p. 123.
15
A palavra tectônica indica não só a probidade material e estrutural de uma obra, mas também uma poética do construir subjacente à prática da arquitetura.
16
NORBERG-SCHULZ, Christian. Op. cit., 2006, p. 443.
17
OLIVEIRA, Olívia. Sutis substâncias de arquitetura. São Paulo: Romano Guerra/ Barcelona: Gustavo Gili, 2006, p. 283-289.
18
BARTHES, Roland. A câmara clara. Nota sobre a fotografia; Trad. Júlio Castañon Guimarães, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 19.
19
ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. Trad. Maria Isabel Gaspar e Gaetan Martins de Oliveira. São Paulo: Martins Fontes, 1978, p. 42.
20
Cf. LIMA, Evelyn F.W.. Arquitetura do Espetáculo. Teatros e Cinemas na formação da Praça Tiradentes e Cinelândia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2000.
21
ECO, Umberto. A estrutura ausente. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 217. (1ª ed. 1968) grifos meus.
22
ZEVI, Bruno. Op. cit., p. 17.
23
TEIXEIRA COELHO Netto, J. A construção do sentido na arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1984.
24
Para maiores informações sobre Carlo Scarpa, ver Marco FRASCARI. O detalhe narrativo. in NESBITT, Kate. (org.) Op. cit. 2006, pp 539-556.
25
BARDI, Lina Bo. Uma Aula de Arquitetura. Projeto, São Paulo, n. 133, 1990. pp. 103-108, p. 105.
26
VITRUVIUS, (Marcus Vitruvius Pollio). The ten books on architecture. Chapter III. The departments of architecture. Trad. Morris Hicky Morgan. Cambridge: Harvard University Press, 1914, p. 14.
27
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Tensão moderno/popular em Lina Bo Bardi. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp165.asp, de janeiro de 2003. Acessado em 25 de setembro de 2008.
28
ARGAN, Giulio Carlo. Projet et destin.Art, architecture, urbanisme. Trad. Elsa Bonan. Paris: Les Éditions de la Passion, 1993, p. 18. “A matéria ultrapassa assim sua própria inércia, seu próprio limite físico original. Ela passa a se relacionar com o mundo, tornando-se portadora da experiência histórica”.
29
Para maior aprofundamento sobre este aspecto da obra de Lina consultar OLIVEIRA, Op. cit, p. 33.
30
NORBERG-SCHULZ, Christian. Op. cit., 2006, p. 32.
31
NESBITT, Kate. Op. cit., 2006, p. 31
32
Uma das escadas mais surpreendentes da arquiteta foi a projetada no Solar do Unhão, em Salvador, realizada com sistema de encaixe de carros de boi.
33
BARDI, Lina Bo. A escada - Teatro Gregório de Mattos. AU Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, n. 11, abr./maio1987, p. 25-27.
34
ECO, Umberto. Op. cit., 1987, p. 37.
35
Para aprofundar os métodos adotados por Lina nas obras de restauro, consultar a dissertação de mestrado de Ana Carolina de Souza Bierrenbach “Os restauros de Lina Bo Bardi e as interpretações da história”, defendida na UFBA em 2001.
36
BARDI, Lina Bo. Contribuição propedêutica ao ensino da Teoria da Arquitetura, São Paulo, Tese de Cátedra/USP, 1957, p. 83.
37
No Restauro Crítico, o arquiteto restaurador deve avaliar a edificação para recuperar seu valor artístico, podendo utilizar novos elementos a partir de uma livre escolha criadora.
38
BARDI, Lina Bo. Uma Aula de Arquitetura. Projeto, São Paulo, n. 149, jan/fev. 1992, pp. 59-64, p. 61.
39
BARDI, Lina Bo. Polytheama, uma restauração mais do que necessária. Projeto, São Paulo, n. 118, jan./fev.1989, p. 72-75, p. 72.
40
Le Corbusier. In: Architecture et Dramaturgie. Paris: Flammarion, 1950. “Eu penso que esta tarefa seja possível: a caixa de milagres é um cubo: por cima há tudo que é necessário, a iluminação e todos os aparelhos necessários para fazer acontecer os milagres da cena, elevações, manutenção, sonorização, etc. O interior fica vazio e vocês sugerirão pela criação da imaginação, tudo aquilo que vocês desejarem, como faziam os atores da Commedia dell´arte. Pode-se fazer ainda aquilo que foi sugerido a propósito do fundo do palco: a caixa cênica que pode se abrir ao fundo para fora (...)Vocês poderão abrir o fundo do palco e ter um anfiteatro ao ar livre para os dias de tempo bom.”
41
Recentemente, Oscar Niemeyer utilizou este recurso no Teatro Raul Cortez e no Teatro Público de Niterói, cujas arquiteturas estamos investigando.
42
OLIVEIRA, Olívia. Op. cit., 2006, p. 111.
43
MAGNAVITA, Pasqualino. Lina Bo Bardi: Salvador, uma paixão. Projeto, São Paulo, n. 155. ago 1992., pp.75-78, p. 78.
44
MAFUZ, Edson C. Traços de uma arquitetura consistente. São Paulo: Arquitextos 16, set. 2001. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq016/arq016_01.asp. Acesso em 25 jun. 2008.
45
ARGAN, Giulio Carlo. L´Arte Moderna. 1770-1990. Firenze: Sansoni, 1984, p. 605. “O que historicamente conhecemos como arte é um conjunto de coisas produzidas a partir de técnicas diferenciadas, mas que apresentam entre elas uma certa afinidade pelas quais constituem um sistema.”
46
ZEVI, Bruno. Op. cit., 1978, p. 18.
47
NORBERG-SCHULZ, Christian. Op. cit., 2006, p. 459.
sobre o autor
Evelyn Furquim Werneck Lima é arquiteta e urbanista, professora Associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Centro de Letras e Artes. Pesquisadora do CNPq. Pesquisadora da CAPES em estágio pós-doutoral (Paris X-EHESS). Membro do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural. Autora, entre outros livros, de Das Vanguardas à tradição (2006), Arquitetura do Espetáculo (2000), Avenida Presidente Vargas: uma drástica cirurgia (1990 e 1995).