A cidade do século XX foi marcada pelo surgimento de novos lugares voltados para o espetáculo e entretenimento. As ruas, as calçadas, as praças e toda uma sorte de espaços públicos tradicionais na história urbana, foram “resignificados”, ou seja, ganharam novas conotações simbólicas e valores. O caos urbano, as velocidades dos automóveis e da vida agitada das metrópoles modernas (sintomas que já se estendem para as cidades menores), aliados a falta de segurança das ruas, criou um novo ambiente urbano muito pouco favorável para a vida comunitária nos lugares públicos, cristalizando no século XX a tendência já iniciada cem anos antes da interiorização da vida, com o surgimento de lugares que se voltam para si e menos para a cidade. Espaços climatizados e protegidos artificializam os lugares públicos ao tentarem traduzi-los como parte de sua ambientação interna. Shoppings Centers, museus e hipermercados são os novos espaços do convívio e da atração e estão ligados intrinsecamente à lógica do consumo, seja ele cultural ou de produtos industrializados de massa, que dentro desta lógica moldaram a cidade do século XX e que ainda reverberam sobre a cidade que adentra o século XXI. Salvo raras exceções, a pujança econômica deste último século, com todas as suas crises no mercado financeiro, impôs sua marca em novas obras e espaços até então inexistentes na cidade tradicional ou que nesta mesma, já começavam a despontar e anunciavam uma nova era. Inevitavelmente, estes novos lugares ganharam qualidades ambientais muito superiores aos da própria cidade, na medida em que, esta última veio sucessivamente recebendo muito menos investimentos (sejam eles públicos ou privados) para a melhoria e criação de seus espaços públicos.
O espaço introvertido
Passamos por um século onde se é marcante a construção de espaços climatizados, condicionados e direcionados ao entretenimento. A tradicional praça, os largos e mesmo as ruas, foram trocados, ou melhor, trazidos para dentro destes novos ambientes, onde tudo é controlado, desde sua segurança até o seu olhar. O caos urbano, a violência, a sujeira das ruas e seus indigentes são deixados do lado de fora desses novos lugares do consumo de mercadorias, serviços, arte e cultura. A cidade se interioriza e volta para dentro das casas onde surge uma arquitetura introvertida (1) mais bonita que o entorno de sua própria cidade. Dá-se mais ênfase ao trato dos ambientes internos em detrimento do urbano construído. A insegurança nas ruas só faz piorar a feiúra que nossas cidades sucessivamente vêm passando neste último século. A exclusão das ruas (antigos lugares do andar do flâneur de Baudelaire) em troca da velocidade dos automóveis fez com que as pessoas procurassem o abrigo e os encontros nos interiores, mais tranqüilos e confortáveis.
O século XIX inicia este processo com os primeiros automóveis e os grandes espaços fechados para o encontro (2), e é no século XX que tudo assume proporções inimagináveis até então. O século dos arranha-céus de vidro espelhado, que concorrem entre si em altura, nos dá a medida da cidade em que vivemos voltando-se para dentro e fugindo das ruas ao tentar alcançar as nuvens. Provavelmente o ataque terrorista as torres gêmeas do WTC no famoso “11 de setembro” de 2001 não venha causar muitos danos no poder imagético dos arranha-céus, mas é bem provável que a partir de agora seus projetos sejam acompanhados bem de perto – e até projetados (3) – por engenheiros especialistas em explosivos e ataques terroristas com bombas. Aos arquitetos, ainda sobram as fachadas (4), enquanto para as cidades, por muito tempo se manterá a tensão e o medo causado pela imprevisibilidade dos ataques terroristas. Qual será o próximo alvo e quem vai nos proteger? Como evitar? O por quê? Quem e como? Só nos sobram perguntas sem respostas contra a irracionalidade do homem.
O desafio do espaço público
A crise do espaço urbano de qualidade é muito maior nos países que durante este último século vieram lutando contra problemas sociais e econômicos, onde a preocupação maior não era a criação de novos lugares públicos, mas sim o atendimento de necessidades básicas de infra-estrutura para suas populações que não pararam de crescer desde a explosão demográfica mundial que ocorreu a partir da década de cinqüenta do século XX.
Em exemplos diametralmente opostos, temos os países da América Latina (aqui, em particular o Brasil) e os países asiáticos, que durante o século XX buscaram de imediato resolver seus problemas de infra-estrutura urbana, só que em proporções muito distantes entre si, como veremos mais à frente. Enquanto isso, na Europa a atenção maior foi dada à criação de novos espaços urbanos para uma população que pouco crescia (se compararmos com os exemplos acima) e ansiava por novos lugares para o seu convívio e voltados para a cultura e o entretenimento. Fica então a pergunta: qual é a marca da cidade deste novo século? É a que busca ainda se aprimorar, crescer ordenada e planejada, mesmo em níveis diferentes ou aquela que busca algo a mais, novos lugares, novas vivências? Vejamos abaixo, algumas experiências necessárias à compreensão desta cidade do novo século.
A retomada do espaço público nas cidades européias
As grandes cidades européias das últimas décadas, como Barcelona, Berlim e Paris se mantêm candidatas a criarem a marca urbana do século XXI e retomarem o lugar europeu na cultura mundial. São cidades que vem passando por grandes urbanizações desde as últimas duas décadas do século XX, onde o caos urbano foi trocado por generosos e concorridos espaços públicos, voltados aos encontros de pessoas e culturas diversas. E este é o mote primordial dessas cidades: o multiculturalismo como fomento de novos espaços e lugares. Efeitos ou não do lado “bom” da globalização, a diversidade e o acesso a outras culturas atrai a cada ano, um número crescente de pessoas a estes novos “lugares urbanos”, desfrutando de um grande mix de atividades culturais e de lazer como bares, lojas, restaurantes, teatros, cinemas, museus, eventos religiosos e folclóricos, feiras, fóruns mundiais, etc.
De uma forma muito consciente, recuperaram com grandes obras de urbanização e arquitetura – e com os maiores nomes de então do star sistem arquitetônico – o seu lugar na esfera cultural mundial. A tônica do espaço público vem como meio de recuperar suas identidades históricas e inserir estas cidades dentro de um novo conceito urbano: a cidade espetáculo. Para tanto, dentro do seu tradicional tecido urbano houve a necessidade de se criar novos lugares a partir de áreas esquecidas, abandonadas ou desvalorizadas até mesmo socialmente pela sua população. Grandes áreas portuárias desativadas como as Docklands de Londres, ou grandes áreas industriais também desativadas do Poble Nou de Barcelona e ainda áreas que margeiam a costa do mar ou rios como a da Zona Del Levante (onde ocorreu o Fórum Cultural Mundial de Barcelona de 2004) ou do Siene River Gauche em Paris, conformam dois novos tipos de intervenções contemporâneas: as “mutações” urbanas ou “exúrbias” (5) que buscam novos limites geográficos extravasando os antigos muros do tradicional tecido urbano e as Terrain Vague (6), terras vagas ou vazios urbanos que se diferem das mutações por serem áreas naturais de crescimento urbano mas que ainda se mantém desocupadas ou desvalorizadas.
As mais recentes intervenções urbanas na cidade catalã de Barcelona, desta vez para sediar o Fórum Mundial das Culturas no ano de 2004, exemplificam muito bem a forma como as grandes cidades européias vêm encarando a constituição de seus espaços públicos. Barcelona, que passou por sucessivas reurbanizações desde a última década do século XX e sempre teve como mote o acontecimento de algum grande evento mundial (como por exemplo, as Olimpíadas de 1992 e o por último, o Fórum em 2004) para urbanizar extensas áreas abandonadas ou desvalorizadas pelo seu uso pouco integrado ao tecido urbano (áreas industriais decadentes, áreas portuárias, áreas destinadas à instalação de sistemas de infra-estrutura, etc.), vem nesta última “mutação” urbana ocupar a região nordeste da cidade, conhecida como Zona Del Levante (7) onde se encontram atualmente áreas pouco valorizadas devido à presença da estação de tratamento de águas residuais, a central termoelétrica e a incineradora de lixo da cidade.
São áreas relegadas exclusivamente à infra-estrutura da cidade, que pouco dialogam com o seu tecido urbano e localizados em um ponto muito caro a cidade, em sua região costeira, concluindo assim esta seqüência de urbanizações que buscavam redirecionar a cidade ao mar. Mas desta vez, as funções básicas desta área foram mantidas e melhoradas além de novas intervenções que criaram novos espaços públicos que dividem o lugar com extensos parques arborizados, totalmente integrados com os edifícios públicos que inicialmente sediarão os eventos do Fórum de 2004 e terão outros usos futuros, além de edifícios de uso privado, como residências e hotéis que garantiram a presença e a circulação de pessoas, e conseqüentemente, de vida deste novo espaço público europeu.
Estas grandes urbanizações inseriram novamente a Europa no panorama cultural mundial após a hegemonia americana pós segunda guerra. A vontade de transformar cada cidade em novos lugares da cultura mundial, seja ela um grande centro histórico e cultural como Paris, Londres ou Berlim, ou mesmo alçar as pequenas cidades aos holofotes da mídia como o ocorrido com a cidade de Bilbao na Espanha, por exemplo, é a marca destas novas urbanizações européias, que se completam com objetos-espetáculos urbanos, ou seja, novos prédios, parques e espaços públicos criados pelas mentes dos mais famosos nomes da arquitetura contemporânea, e que por si só são fortes elementos urbanos, como signos desta nova era européia. Vide aí, o Museu Guggenheim de Bilbao do Arquiteto Frank O. Gery, a Pirâmide do Louvre de I. M. Pei, o Arco de Tête de La Defénse de Johan Otto von Spreckelsen, entre outros tantos projetos que levaram estas cidades às páginas dos jornais, revistas e noticiários da TV (além de documentários próprios).
Ficam aqui as críticas para as cidades-espetáculo e seus objetos – que em muitas vezes sãos mais espetaculares que as próprias, se estes conseguem dentro de seu discurso no mínimo atender aos problemas sociais e urbanos que ainda carregam principalmente os de moradia popular. Mesmo com todo o seu desenvolvimento social e econômico, muitas destas cidades enfrentam problemas quanto à massa de excluídos do sistema, como ocorre em Berlim após a unificação das duas Alemanhas, Paris e sua urbe de imigrantes e Barcelona e seus bairros fora do eixo das urbanizações e de infra-estrutura precária (8). Percebemos então, que o alcance destas urbanizações se limita em muitos casos até aonde a vista do poder financeiro consegue enxergar dividendos, principalmente em áreas onde o conflito social direto seja o menos perigoso possível.
As megaconstruções das cidades asiáticas
Do outro lado do mundo temos o exemplo asiático, com seu boom econômico dos últimos anos e o realce de suas cidades onde a história milenar e os maiores avanços tecnológicos convivem lado a lado, mas não necessariamente de forma harmônica. Cidades como Hong Kong e Xangai na China, Tóquio (a primeira a despontar) e Kobe no Japão, e Seul na Coréia do Sul são exemplos de cidades do “capitalismo tardio” com suas taxas de crescimento populacional e urbano assustadores para qualquer metrópole ocidental. São exemplos vivos e em constante mutação do poder do capital transformando o espaço urbano. Hong Kong na última década do século XX viu passar por grandes transformações urbanas, calcada em “megaconstruções” de infra-estrutura urbana (9).
“Mega” obras, “mega” projetos que prepararam a cidade para o novo século e a sua devolução para a China, sendo até então, posse da Inglaterra desde o século XIX. O novo aeroporto internacional (na época da construção, considerado uma das maiores obras de infra-estrutura e um dos maiores espaços fechados do mundo), uma nova via composta de auto-estrada e trilhos para um trem-bala e sua estação, além de duas das mais altas pontes suspensas do mundo (com dois andares) (10), são exemplos da magnitude da força de transformação que as cidades orientais vêm passando nestas últimas décadas, como forma, a bem nos parece, de compensar os séculos de atraso frente ao mundo ocidental e a corrida pela primazia econômica no mundo globalizado. Chega a ser atordoante pensarmos que ainda podemos imaginar que estas cidades, como tantas outras do mundo asiático, há menos de um século atrás, ainda viviam em um estado feudal e provinciano, e que neste pequeno espaço de tempo (muito menor do que qualquer crescimento urbano europeu) se abriram ao mundo e são hoje, os maiores canteiros de obras do mundo, com novos prédios, novas áreas e novas cidades para atender uma enorme massa populacional que descobriu recentemente as luzes e o poder financeiro do capitalismo.
Com sérios problemas urbanos de infra-estrutura a serem ainda resolvidos, as cidades asiáticas tiveram nestas últimas décadas que correr contra o tempo e o atraso em suas cidades que cresciam de forma assustadora e descontrolada. Para os países que queriam estar dentro deste novo mundo globalizado, de rápidas transformações, seriam necessárias intervenções urbanas drásticas e em escalas nunca imaginadas para adequar seus espaços urbanos para sua população e para a nova ordem mundial. O seu crescimento urbano, que não conseguindo acompanhar o crescimento populacional, aliado aos seus espaços exíguos, fez com que estas maiores metrópoles do mundo asiático realizassem no final do século XX intervenções urbanas radicais, avançando sobre seus braços de mar e baias através enormes aterros para suportar suas “megaconstruções” de infra-estrutura. Além disso, novas cidades são planejadas para habitar populações na casa dos milhões e cidades antigas são deixadas de lado e totalmente abandonadas sem nenhum remorso, em prol do avanço econômico e social traduzido em grandes hidrelétricas, estradas e obras de cidades inteiras construídas do zero e pautadas nas mais avançadas técnicas construtivas.
Antigas cidades ganham novos espaços, novas áreas que quando precisam, avançam em aterros sobre o mar, novos prédios contrastam propositalmente com a arquitetura secular oriental, e se repetem tanto na China como na Malásia. A tecnologia se torna a nova tradição a ser conquistada por estes povos, expressa em suas cidades, em seus prédios, em seus novos espaços públicos e em seu novo modo de vida, bem diferente daquele de décadas atrás. Como nos explica Nishikawa, “a tecnologia e o senso de valor de uma sociedade contribuem na codificação de seu estilo de vida; se aqueles alteram, altera o estilo de vida; por sua vez, a configuração espacial tende a ser moldada à sua imagem” (11), e ainda nos diz que “nestas condições, se o desenvolvimento tecnológico alterou o estilo de vida, (...) conseqüentemente alterou a forma de ocupação espacial, afetando os espaços destinados à interação e provisão da vida comunitária (...)” (12).
Temos como exemplo a cidade de Kobe, que mesmo depois da devastação do terremoto de 1995, se ergue como a expressão desta nova era tecno-urbana das cidades asiáticas através de grandes obras de infra-estrutura. Uma nova área da cidade, o Teleporto (13) possui os mais avançados conceitos de tecnologia aliada à construção civil que são transformados em infra-estrutura urbana: prédios para a coleta seletiva de lixo por sistemas computadorizados, reciclagem da água do esgoto de toda a região com seu reaproveitamento e o prédio central do teleporto (o Telecom Center) onde todas as informações são coletadas e distribuídas por antenas ligadas á satélites e toda a rede elétrica subterrânea controlada também por sistemas computadorizados; tudo isso aliado á uma arquitetura que lembra o menos possível a sua função – o próprio prédio de reciclagem do esgoto desta região, além de suas arrojadas linhas arquitetônicas divide sua função mais “ordinária” com uma grande área interna de lazer com piscinas e quadras de esportes (14). Todo este novo complexo urbanístico de Kobe se traduz na corrida que o país vem há décadas fazendo para minimizar seu crescimento urbano acelerado e caótico. São áreas agora totalmente planejadas e pensadas em suas minúcias, onde parques urbanos se integram com as edificações em busca de uma recente consciência ecológica em contraste com a frieza de toda a tecnologia ao redor.
As “mutações” asiáticas estão em uma escala e conceito muito diferentes das cidades européias, as quais se utilizaram de espaços residuais existentes em seu tecido urbano, sendo que no caso asiático o espaço, ainda mais “residual”, lhes é muito caro. Para tanto, suas mutações se baseiam em busca de novas áreas para expansão sobre ainda o que lhes resta de área edificável, ou para cima com seus novos arranha-céus que entram na lista dos maiores do mundo, ou para dentro do mar conquistado sobre milhares de quilômetros cúbicos de aterros, criando novas áreas para urbanizar e expandir. Recentemente, esta conquista sobre o mar ganhou um novo significado com a criação dos megafloats (15), grandes áreas flutuantes que podem ser ancoradas em qualquer região costeira e montadas no prazo de no mínimo três meses. Como verdadeiras balsas construídas em aço, titânio e aço inox podem suportar desde aeroportos, passando por plantas industriais a áreas de hotéis ou moradias, resistindo as mais ferozes forças da natureza. Tantos os megafloats como esta série de ocupações de áreas marinhas que as cidades asiáticas vem efetuando nos últimos anos, nos remete as propostas dos arquitetos metabolistas japoneses nos anos sessenta do século XX.
O grupo Metabolista (16), tendo o arquiteto Kenzo Tange como umas das figuras mais proeminentes, frente ao caos urbano e a falta de planejamento corrente nas cidades japonesas, que cresciam no pós-guerra de forma rápida e descontrolada, buscaram em suas tradições culturais e no próprio Movimento Moderno novas e radicais abordagens de intervenções urbanas para enfrentar a realidade caótica de suas cidades: novas áreas urbanizadas que extravasavam os limites da terra e ocupavam espaços no mar e no ar e suas residências móveis que podiam ser deslocadas para qualquer parte. Como nos explica Montaner (17), os metabolistas em nome de uma arquitetura brutalista que agregava tanto valores modernos e das tradições de seu país, e unidos em volta da tecnologia como resposta ao caos urbano, esperavam que a sociedade acompanhasse esta sua visão do avanço tecnológico como avanço social e urbano. O que nos parece vendo a sociedade japonesa dos dias atuais, é que os arquitetos metabolistas não estavam errados em apostar na tecnologia como forma de alavancar a grandeza de um povo. Mas, outra referência que poderíamos trazer também, mantidas as devidas proporções, são as propostas futurísticas do grupo Archigram (contemporâneas dos metabolistas) e suas cidades andarilhas que podiam estar em qualquer lugar. Todas estas grandes intervenções asiáticas, antecipadas ou não pelas propostas visionárias dos metabolistas, ou do grupo Archigram, são exemplos deste novo urbano que não possui limites para crescer e nem teme (ou respeite) os obstáculos da natureza.
Mas o drama das cidades asiáticas fica na interface entre estas novas obras e o antigo e tradicional tecido e sua arquitetura milenar (18). Sob o signo dos últimos avanços tecnológicos, estas cidades cresceram de forma acelerada e caótica, com muitas de suas tradições culturais trocadas por símbolos ocidentais ou arremedos historicistas. Está nos projetos do governo chinês a construção de nove cidades “temáticas” (19) a serem construídas ao redor da cidade de Xangai. Com uma população de 100 mil habitantes, cada nova cidade irá representar um país e sua arquitetura tradicional, num mix de arquiteturas clássicas e contemporâneas. Como diz Gómez Pióz, arquiteto espanhol da nova “Cidade de Espanha” (com o início de suas construções marcadas para o começo de fevereiro de 2005), ela deve ter “uma dose de classicismo, de tradição, em elementos como a praça ou a rua, mas também com modernidade” (20). Com o nome de “Uma cidade e nove povos”, este grande programa urbanístico do governo chinês mostra como a forma urbana é utilizada na afirmação política e econômica de um país perante o mundo, superando em escala e proporções o conceito das “cidades-espetáculo” e desbancando qualquer parque de diversões da Disneylândia.
A luta pelo espaço nas cidades latino-americanas – o caso do Brasil
Na América Latina, em especial no Brasil, se torna mais evidente as formas como as cidades sob influência das situações econômicas e políticas do país convivem com problemas que se arrastam por séculos. A favela e o celular convivem lado a lado sem cerimônia, a pobreza está sempre a um passo dos condomínios fechados e dos Shoppings Centers e a fome esbarra nos (hiper)supermercados 24 horas. As cidades latino-americanas também crescem a passos rápidos em busca de novas levas para a expansão imobiliária, enquanto os excluídos do sistema ainda se amontoam nas favelas. A influência cultural e tecnológica do “primeiro mundo” ainda se faz presente e mesmo necessária, enquanto problemas terceiro-mundistas ficam sem solução; na globalização, ninguém pode ficar para trás, independente de quanto isso custe. As cidades latino-americanas são exemplos da dicotomia do mundo atual: a pequena parcela dos “incluídos” – sujeitos de toda a sorte que moram nos bairros de melhor infra-estrutura, possuem a melhor renda e, por conseguinte, melhor poder aquisitivo e de consumo, se deslocam com veículos próprios e possuem as facilidades de acesso ao mundo da informação (via celular, internet, TV a cabo, etc.) – dividem o espaço com o mar de “excluídos” de todo o sistema, vivendo a parte da sociedade e a mercê da sorte. E isto se configura de forma muito clara na constituição espacial de nossas cidades, quando a democracia urbana, ou seja, a existência de espaços públicos é pequena e seu uso é bem tímido, e às vezes elitizada. A exceção fica para as praias, espaços públicos naturais aonde à mistura das “castas” ainda é tolerada. As políticas públicas pouco valorizam a construção e criação de espaços públicos, voltando seus esforços e incentivo à criação de espaços mais rentáveis economicamente, principalmente para o entretenimento semi-público ou privado.
Soluções para os problemas causados pelo crescimento urbano desenfreado foram buscadas nos processos de planejamentos urbanos, muito incentivados principalmente nas cidades brasileiras nas últimas décadas e sacralizados atualmente através do Estatuto das Cidades, lançado em 2001 pelo Governo Federal. Advindos do discurso urbano-modernista, onde zoneamento e índices urbanísticos ditam o crescimento das cidades, os Planos Diretores Urbanos se tornaram (ou criaram) os modelos atuais de crescimento das grandes cidades brasileiras. De certa forma, conseguem seu intento ao colocar “ordem na casa” regulando e controlando excessos e abusos através do poder da lei, onde exemplos mais recentes tiveram uma maior e mais ativa participação popular nas discussões, buscando-se assim, tentar atender as diversas camadas de nossa sociedade. Mas fica a crítica ao seu próprio intento quando os P.D.U’s planejam mais do que desenham a cidade.
Algo que não ajudou em muito a mudar as feições de uma cidade que vem a muito tempo sendo construída sob a égide de um pseudo-modernismo, em construções estandardizadas que usam ao máximo os índices dos Planos e onde a máxima de Mies Van der Rohe do “menos é mais” foi descoberta como uma “fórmula” para a expansão imobiliária e o mar de arquiteturas repetitivas, pouco afeitas ou interessadas com a cidade e mais preocupadas em adensar o máximo possível de pessoas no menor espaço disponibilizado, principalmente pelas altas margens de lucros que advém deste uso. Junta-se a isso os próprios Planos Diretores que ainda não conseguiram se desvincular ou avançar sobre a imagem da cidade modernista zoneada, que em muitos casos, não leva em consideração as peculiaridades de certos lugares e propicia a lógica imobiliária da repetição e a homogeneização de partes inteiras da cidade. Del Rio & Gallo nos apontam uma outra crítica quanto ao poder contrário que possam ter os P.D.U.´s com relação à exclusão social. Teoricamente, instrumentos democráticos os P.D.U.’s “garantem as novas centralidades, expulsando para áreas menos dotadas e a periferia da cidade (ou para os morros) a população de menor poder aquisitivo e que não pode instalar-se nas tipologias arquitetônicas e urbanísticas oficiais” (21). De certa forma, está nas mãos de nossos planejadores urbanos a devida qualidade de vida de nossas cidades.
Infelizmente, nossas cidades brasileiras carecem de vontades políticas e econômicas para empreenderem espaços mais democráticos, sejam através de novas obras ou mesmo nas tão faladas “revitalizações” dos centros urbanos, que também acompanham o processo mundial de desvalorização destas áreas centrais. Faltam-nos principalmente políticas públicas verdadeiramente imbuídas para a criação de projetos urbanísticos voltados a melhoria e a criação de novos espaços públicos. Ficamos então, restritos ao que podemos chamar de “urbanismo de pracinhas”, intervenções que na maioria das vezes se limitam a melhorias de ruas (em muitos casos, transformadas em num grande tapete de asfalto) e na criação de pracinhas que sempre angariam votos para as próximas eleições. Estas intervenções, conhecidas pela alcunha de “urbanismo” pelo meio político vigente, se contrapõem aos escassos exemplos de intervenções de porte já ocorridos no Brasil no último século.
Os grandes projetos urbanísticos como Brasília, Palmas e para as intervenções em Curitiba e o Rio-Cidade nos mostram modelos urbanos em escalas diferentes que de uma forma ou de outra buscam em seus projetos a integração de sua população aos espaços da cidade; ora seja na escala de toda a cidade como o plano modernista de Brasília, ora como lugares específicos e pontuais como em Curitiba. São intervenções não acabadas, que passam ainda por avaliações quanto a sua qualidade de vida urbana. Mas são “ousadias” que precisavam ser repetidas, no mínimo em seu intento, não como fórmulas, mas como projetos de cidades que tem (ou buscavam ter) a qualidade de vida como foco principal. Por outro lado, temos os fenômenos dos condôminos fechados que tem na imagem dos “tranqüilos” e “pacatos” subúrbios americanos sua referência que chega a ser estética. Alguns conseguem sua auto-suficiência, com uma infra-estrutura tal que não é encontrada na maioria dos outros bairros, além de virem acompanhados do discurso da segurança como seu diferencial do restante da cidade. Só que estas “pequenas ilhas da tranqüilidade” já não conseguem mais transmitir este ideal de tranqüilidade com os índices de criminalidade que vem crescendo dentro de seu próprio “ambiente urbano”, enfatizando ainda mais o outro fenômeno, o de introversão, com casas que mais parecem bunkers high-techs para se protegerem do que há do lado de fora.
A contradição é a marca das cidades brasileiras, bem como das cidades da América Latina. Aqui, as diferenças se sobressaem com maior vigor quando são confrontadas no plano do urbano. De um lado, a pobreza que vive em condições precárias em morros ou bairros afastados sem espaços adequados e infra-estrutura necessária, e do outro lado da cidade, toda a infra-estrutura seja pública ou privada que atende os de maior posse, onde as facilidades gravitam em sua volta. Estes últimos possuem as melhores ofertas de moradia, os melhores espaços, a melhor segurança e toda a sorte de equipamentos urbanos necessários ao seu bem-estar.
Uma conclusão em aberto
Não queremos com este artigo esgotar este assunto. Pelo Contrário! Mas queremos também que fique aqui registrado, como arquitetos, a nossa crítica e preocupação sobre esta cidade que adentra o século XXI. Qual é a cidade que nós queremos? Há algum modelo a ser seguido como foi o malquisto modelo americano, advindo das mãos de Robert Moses e dos planejadores-urbanos-técnico-burocráticos, por exemplo, e suas renovações urbanas para a Nova York a partir da década de 50? Grandes cidades de crescimento vertiginoso que foram baseadas nas auto-estradas e no fluxo dos automóveis e em um arremedo do discurso modernista para o urbano? Onde o boom imobiliário a partir da década de 50 ganha força e encontra nas “fórmulas” modernistas, campo fértil para o seu lucro rápido? Com certeza, este modelo de cidade dita “moderna” precisa ser superado em prol de algo mais humano, e não necessariamente deverão ser as urbanizações européias e asiáticas modelos a serem seguidos ad nauseum. São sim, exemplos bem característicos deste momento em que vivemos conturbado e caótico e de grandes incertezas. São marcas desta era de grandes transformações, cidades mutantes, cidades inseguras que voltam para si cada vez mais ou cidades que não encontram mais barreiras para o seu crescimento.
É verdade que as cidades do século XX tiveram seu crescimento urbano sob conceitos os menos humanos e democráticos possíveis. Os espaços públicos se tornaram espaços da repressão, seja ele físico ou psicológico. Mas será que há um modelo a ser seguido? Preferimos acreditar na possibilidade de encontrarmos respostas dentro de nossas próprias cidades, dentro de nossas peculiaridades sem desviar o olhar do mundo à volta.
Entendemos que o ideal do espaço público, que nos remete desde a nossa antiguidade urbana (seja clássica ou colonial), é um conceito válido quando o mesmo é tratado como um lugar primordialmente atrativo às pessoas, de onde saem toda a carga simbólica e afetiva tão necessária a este tipo de espaço. O desafio é então buscar um modelo interno e próprio, modelo(s) desses lugares numa cidade onde a rápida velocidade das mudanças é uma constante, onde a paciência e a perseverança não são mais características intrínsecas de uma sociedade que se contenta, em muitos casos, com espaços de passagem que sejam fluídos o suficiente para não se tornarem obstáculos a sua pressa. Em nossas cidades caóticas, principalmente aqui no Brasil, o espaço público se torna vital como um respiro, um lugar de descompressão e precisa ser (re) valorizado como tal, como forma de se contrapor a esta arquitetura introvertida que clama (como muita propriedade) por seu lugar privilegiado na cidade.
Com certeza, independente do continente em que se viva, a cidade no século XXI será ainda o ponto focal das discussões, o palco de todas as ações e o campo fértil da atuação do homem em comunidade (enquanto ainda haja valor simbólico neste termo). Por muito tempo ouviremos falar dela e viveremos nossas alegrias e frustrações sobre o seu solo urbano. Cabe a cada um de nós, preservar, ou mesmo renovar constantemente o que lhe resta de qualidade de vida urbana, nos sobrando então, enquanto ainda não dominamos, nos proteger das forças da natureza que nos mostra a cada momento (22), como somos pequenos neste mundo, e ainda, nos proteger de nós mesmos, de nossa irracionalidade perante o próximo e de nossa ambição desenfreada que consome este planeta.
notas
1
DIAS. Fabiano Vieira. “Arquitetura Introvertida”. In website ViverCidades. Rio de Janeiro, ago. 2002 <www.vivercidades.org.br>.
2
BENÉVOLO, Leonardo. História da cidade. São Paulo, Perspectiva, 1983, p. 593.
3
Como foi mostrado em um documentário da Discovery Channel (NET), Brasil, exibido no ano de 2004.
4
Joseph Rykwert, de forma crítica nos aponta uma tendência atual no mercado dos grandes prédios, onde o arquiteto fica relegado ao plano das fachadas, ou seja, a um mero decorativismo. Ver em especial RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar. A história e o futuro da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 376-377.
5
A “exurbia” ou as mutações urbanas são, segundo Gandelsonas, os processos (ou o conjunto de processos de transformações estruturais no sentido do crescimento urbano sobre seus limites) que vieram para soterrar, ou definitivamente enterrar, a cidade tradicional e a Moderna (entende-se por Moderna, a cidade modelo advinda da Revolução Industrial). A cidade estática tradicional, de limites definidos por seus muros, ou a cidade Moderna que se superpõe ao tecido antigo, dá lugar agora, a expansões mutacionais que as necessidades contemporâneas se impõem ao urbano, extravasando estas necessidades em novos lugares que “ampliam” o contexto urbano requalificado. Ver em especial: GANDELSONAS, Mario. “La arquitectura de exurbia”. In Presentes y futuros. Arquitectura en las ciudades , catálogo do XIX Congresso da União Internacional de Arquitetos UIA Barcelona 96. Comitè d`Organització del Congrés UIA Barcelona 96. Barcelona, 1996, p. 36.
6
Segundo Solà-Morales, os “terrain Vague” são lugares que expressam a identidade de pessoas ou grupos distintos, que tem em seus vazios urbanos, o “único reduto não contaminado” para “exercer” sua liberdade como pessoas, como indivíduos de uma sociedade. Redutos de uma história, lugares que suscitam a memória de um passado ainda não apagado pela cidade contemporânea. São lugares que surgem também do próprio desenvolvimento desta cidade: lugares residuais, outros; deixados à mercê da especulação imobiliária ou a margem, e até encravados, nas grandes vias que cortam nossas cidades, ficando fora de acesso dos habitantes. Solà-Morales nos resume em alguns exemplos:
“Áreas abandonadas pela indústria, pelos trens, pelos portos; áreas abandonadas como conseqüência da violência, o recesso da atividade residencial ou comercial, a deterioração do edificado; espaços residuais nas margens dos rios, vertedouros, canteiros; áreas subutilizadas pela inacessibilidade entre autopistas, à margem das operações imobiliárias fechadas sobre si mesmas, de acesso restrito por teóricas razões de segurança e proteção”. Ver em especial: SOLÀ-MORALES. “Editorial”. In Presentes y futuros. Arquitectura en las ciudades, catálogo do XIX Congresso da União Internacional de Arquitetos UIA Barcelona 96. Comitè d`Organització del Congrés UIA Barcelona 96. Barcelona, 1996, p. 23.
7
ORCIOULI, Affonso. “Uma proposta ambiciosa”. In AU – Arquitetura e Urbanismo, n° 116. São Paulo, 2004, p. 37.
8
Ver especial o caso de Barcelona in ORCIUOLI, Affonso. “Relação causa-efeito”. In AU – Arquitetura e Urbanismo, n° 128. São Paulo, 2004, p. 70-71.
9
Aliás, “Megaconstruções” é o nome de um programa da Discovery Channel brasileira (NET), onde apresentam as últimas novidades em construção civil com ênfase em projetos de escalas incomensuráveis.10
Ver em especial o programa “Megaconstruções”, Discovery Channel (NET), Brasil, exibido em janeiro de 2005.
11
NISHIKAWA, Ayako. “O espaço da rua articulado ao entorno habitacional”. In Desenho urbano. Anais do II SEDUR – Seminário sobre desenho urbano no Brasil. São Paulo, Bernamy Tukienicz, 1986, p. 132.
12
Idem.
13
Ver em especial o programa “Engenharia do Futuro”, da National Geographic Channel (NET), Brasil, exibido em 17 de janeiro de 2005.
14
Idem.
15
Ibidem. Como uma informação um tanto pitoresca, temos que na Ilha de Papua-Nova Guiné existem duas tribos ainda em estado primitivo, que intervêm em seu espaço de forma muito peculiar: uma, vivendo em uma área pantanosa e com pouca área “seca” para sua utilização, cria ilhas artificiais de lama e junco para uso comum da comunidade, e a outra, com algumas tribos que ainda não tiveram contato com o mundo “exterior”, como forma de se proteger dos inimigos, animais selvagens e insetos, constroem suas casas nas copas das árvores, criando verdadeiros arranha-céus low-tech que planam sobre tabuleiros de toras de madeira. O que nos parece, é que repetimos soluções já utilizadas há milênios, por povos considerados “tecnologicamente atrasados”. Ver em especial o programa “Hora Limite”, da National Geographic Channel (NET), Brasil, exibido em 03 de fevereiro de 2005.
16
Ver em especial MONTANER, Josep Maria. Después del movimiento moderno: arquitectura de la segunda mitad del siglo XX. Barcelona, Gustavo Gilli, 1993, p. 116.
17
Idem.
18
Ver em especial RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar: A história e o futuro da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 325.
19
Ver em especial artigo publicado no website espanhol Diario de Navarra <www.diariodenavarra.es> em 02 de fevereiro de 2005.
20
Idem.
21
DEL RIO, Vicente; GALLO, Haroldo. “O legado do urbanismo moderno no Brasil. Paradigma realizado ou projeto inacabado?”. Arquitextos, Texto Especial 023. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2000 <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp023.asp>.
22
No dia 26 de dezembro de 2004, uma gigantesca onda (uma Tsunami) causada por um terremoto em alto mar atingiu a costa sul da Ásia e o sudoeste da África, matando mais de 260.000 pessoas e causando enormes destruições, além de remodelar a geografia do mundo. Fonte: www.uol.com.br.
sobre o autor
Fabiano Vieira Dias é arquiteto urbanista, formado pela UFES em 1997, atuante em projetos arquitetônicos em geral e autor de artigos publicados em revistas, jornais e websites.