O projeto em pauta nos remete a duas ordens de reflexões interligadas: uma urbanística e outra arquitetônica. Pela via urbanística, temos um programa relacionado à mobilidade urbana, um equipamento público para minimizar o impacto do transporte individual em pólos que atraem viagens. Pela arquitetônica, temos uma obra em que o rigoroso raciocínio projetual viabiliza o uso proposto em uma condição de extrema exigüidade espacial.
O programa e a cidade
Os estacionamentos públicos subterrâneos são usuais nas grandes cidades mundo afora. Dispostos estrategicamente em setores de grande atração de viagens individuais, essas garagens atendem a um segmento da sociedade que não utiliza o transporte coletivo e prefere pagar um alto custo pelo conforto de chegar a seu destino em seu próprio carro. Também em São Paulo o assunto vem sendo estudado há vários anos. Já em 1955 os arquitetos Rino Levi e Roberto Cerqueira Cezar desenvolveram, com seus alunos da FAU-USP, estudos de uma rede de garagens ao longo do anel de avenidas centrais, procurando com isso complementar esse sistema viário com equipamentos que suportassem o rápido crescimento da frota de veículos. A facilidade de estacionamento vertical retira da via pública o veículo estacionado e também aquele que circula em busca de vaga, oferecendo mais faixas de rolamento para o tráfego.
Essa iniciativa é polêmica, pois sob uma ótica estrita de mobilidade urbana a implantação desses grandes equipamentos compete com uma política de incentivo ao uso do transporte coletivo mediante a implantação de dispositivos que dificultam o trânsito e estacionamento de veículos individuais em setores críticos da cidade. Em tese, a proibição do trânsito desses veículos em vias centrais, transformadas em calçadões, e a eliminação de estacionamento em vias arteriais que atravessam o centro são instrumentos restritivos que visam estimular o cidadão a utilizar o transporte coletivo em seus deslocamentos. Ao longo das três últimas décadas, porém, a implantação do estacionamento rotativo tarifado nas vias (Zona Azul) e o surgimento de uma rede de edifícios-garagem particulares ao redor do centro suavizaram esses efeitos restritivos na cidade de São Paulo.
Desde 1972 a prefeitura de São Paulo discute a possibilidade de construção de garagens públicas no subsolo das suas principais praças próximas ao centro (2). As dificuldades que se apresentam estão relacionadas à preservação ambiental das praças, comprometidas pela necessidade de escavação para a construção subterrânea, e, mais recentemente, à modalidade do empreendimento, equacionado como uma concessão em que o Estado nada investe. Considerando os altos custos dessas construções, os tempos de retorno dos investimentos das concessionárias são necessariamente longos (neste caso, de trinta anos), e deveriam vir acompanhados de medidas complementares de incentivo à sua utilização.
No caso da Garagem Trianon, estavam previstas em contrato a retirada de estacionamentos de Zona Azul e a proibição de instalação de novos estacionamentos privados em um raio de 500m, medidas que teriam um grande impacto urbanístico, pois, além de estimular o uso da garagem subterrânea, gerariam maior disponibilidade de faixas de rolamento nas vias e o estímulo à ocupação construída em terrenos resultantes de demolições. As condições da concessão e as características do investimento levaram ao estabelecimento de número mínimo de quinhentas vagas para que o empreendimento fosse viável e tivesse retorno satisfatório sem valores excessivos nas tarifas cobradas (3).
O projeto
Chegamos assim ao problema que o projeto teve de enfrentar: o local escolhido, o subsolo da praça Alexandre Gusmão (parte do complexo do Trianon na região da avenida Paulista), apresentava um conjunto de limitações espaciais que dificultava a construção de uma garagem com a capacidade necessária para viabilizar o empreendimento. Por uma diretriz de preservação do patrimônio histórico, a forma da praça deveria ser fielmente recomposta, mantendo-se os maciços de árvores existentes nas bordas do terreno, a construção em forma de tempietto e a própria modelagem da sua superfície. Além desses limites superior e lateral, o inferior estava dado pelo túnel Nove de Julho, cruzando diagonalmente o subsolo da área. Chega-se assim a um volume disponível para o projeto com planta em falsa elipse e com pequena altura.
Os arquitetos do MMBB (4) foram chamados ao projeto em 1996, quando um primeiro estudo já havia sido realizado por outra equipe. Seu partido fora abandonado por não conseguir atingir o número de vagas necessário para viabilizar a concessão sem afetar a recomposição da praça. Utilizando um esquema usual em estacionamentos verticais — em shopping centers por exemplo —, o projeto era composto por planos horizontais de estacionamento e rampas exclusivas de circulação. A sobreposição das áreas necessárias para atingir a capacidade de vagas extrapolava o limite superior, resultando no afloramento do volume construído e comprometendo a condição inicial de recomposição da praça. O novo partido de projeto, uma superfície contínua se desdobrando ininterruptamente do nível mais baixo ao mais alto, onde se pode estacionar e circular tanto nos segmentos horizontais como nos inclinados (rampas), conseguiu superar a capacidade mínima estabelecida dentro dos limites disponíveis.
A forma da superfície geometrizou os limites horizontais estabelecidos inicialmente. A planta em falsa elipse é constituída por dois semicírculos horizontais nas extremidades, dispostos alternados em meio-nível, e por dois planos retangulares inclinados, que efetivam a continuidade vertical. Ao todo, seis meio-níveis horizontais são ligados pelos planos inclinados, constituindo uma única superfície contínua que se desdobra verticalmente para oferecer a área necessária à viabilização do programa. Em resumo, o plano evolui pelo espaço como uma seqüência de lances de rampa e patamares horizontais, mas a superfície gerada é o todo da obra, servindo não só à circulação como ao uso principal.
As opções construtivas também foram motivadas para atingir o máximo aproveitamento do espaço disponível. Nesse sentido, a estrutura desempenha o papel principal. O sistema estrutural — composto por lajes-cogumelo, um tipo de estrutura que não utiliza vigas e sim linhas de protensão (5) embutidas — permitiu a continuidade da face inferior do plano da laje, reduzindo a altura interna a 2,30m, o mínimo legal para a circulação dos veículos e dispersão dos gases poluentes. As barreiras de contenção dos esforços horizontais, que permitiram a profunda escavação, foram construídas com peças pré-moldadas de concreto em forma de abóbadas que trabalham horizontalmente. Para conferir estanqueidade frente às infiltrações, uma segunda parede foi construída internamente, gerando uma camada de ar que complementa o isolamento em relação ao solo.
Rampas e escadas de acesso, assim como ambientes de abrigo a equipamentos e atividades de apoio, são tratados como pequenos volumes acoplados ao espaço contínuo gerado pelo desdobramento da superfície principal. O único que se destaca visualmente é o pequeno volume de serviços e administração, disposto no limite do meio-nível mais elevado. Com sua forma prismática e uma das faces vedadas por um caixilho de vidro do teto ao piso, esse volume encerra a seqüência de evolução da superfície de estacionamento/circulação.
Com seu paisagismo, o projeto reconstitui a praça ao espaço urbano, manifestando-se apenas pelos seus acessos na forma de rampas duplas de entrada e saída de veículos nas alamedas Jaú e Santos e de rampa e escadas de pedestres ao longo do passeio elipsóide (6).
O partido arquitetônico
O partido adotado neste projeto não é novo. O desdobramento vertical contínuo de planos horizontais é uma das principais contribuições da arquitetura desenvolvida a partir da obra de Vilanova Artigas, a qual encontra na obra contemporânea de Paulo Mendes da Rocha sua mais refinada manifestação (7). Nesse partido, o raciocínio projetual baseado em volumes geométricos predefinidos dá lugar a uma forma de concepção potencialmente mais livre, que parte da disposição de planos no espaço. Podemos encontrá-lo no próprio prédio da FAU-USP, projeto de Artigas e Carlos Cascaldi, onde o programa se distribui em planos dispostos em meio-níveis e ligados por rampas. Já no Pavilhão de Osaka, de Paulo Mendes da Rocha e equipe, a continuidade entre esses planos avança para o subsolo e gera uma movimentação da superfície do solo construída artificialmente. No Museu Brasileiro da Escultura, em São Paulo, a seqüência vertical de planos horizontais organiza a superfície externa da construção e avança ao subsolo em um contínuo espacial.
A continuidade espacial da Garagem Trianon é acentuada pela integridade da superfície que se desdobra ininterruptamente, recebendo o uso programático ao longo dela toda, sem a especialização de setores concebidos apenas para a conexão dos planos horizontais. Assim, a obra também se aproxima de projetos estrangeiros contemporâneos em que fica nítido o seu caráter topológico. É o caso da proposta de Rem Koolhass para o concurso de projetos para a Biblioteca de Jussieu em Paris (1993), em que o autor a apresenta com uma seqüência de fotos trabalhando uma folha de papel, dobrando-a e recortando-a para gerar uma superfície contínua que evolui verticalmente e abriga os usos do programa em suas inclinações e dobras (8). Imagem familiar para quem conhece as fotos de Lygia Clark recortando uma fita de Moebius de papel em “Caminhando” (1964), ou a série “Bicho mole”, em que a superfície de borracha recortada evolui pelo espaço conforme suas dobras se auto-estruturam ou se acomodam derramadas sobre o chão (9).
O interesse pela Garagem Trianon está na inteligência do desenvolvimento desse partido na construção de um edifício concebido como um artefato técnico — uma estrutura apenas aparentemente simples que serve a um uso urbano contemporâneo. A continuidade da atuação do grupo em outros projetos na área de mobilidade urbana revela o potencial da contribuição dos arquitetos em parcerias com profissionais de outras especialidades. Além de outros projetos de garagens, o MMBB participou do projeto de rede de transporte coletivo da cidade de São Carlos, onde projetou também os abrigos de ônibus e a concepção das estações de integração. Realizou ainda, a pedido da Universidade de Coimbra, um estudo urbanístico a fim de contribuir para o debate público do projeto de rede de veículos leves sobre trilhos proposto pela municipalidade coimbrã.
Além do raciocínio que ordena espacial e construtivamente o projeto do edifício/equipamento, a contribuição dos arquitetos ocorre onde a coordenação urbanística é necessária, como no caso das redes de serviços de transporte público e de sistemas viários. Assunto que merece maior aprofundamento, em especial em um momento no qual se decide enfrentar a carência infra-estrutural das cidades brasileiras.
notas
1
Artigo publicado originalmente na revista Novos Estudos CEBRAP, nº 68, mar. 2004. Republicado na Revista Nu, nº 23 (número especial sobre o Brasil). Coimbra, mar. 2005, p. 23-26.
2
Após o fracasso da primeira lei, de 1974, uma nova legislação, de 1987, permitiu a licitação desta concessão em 1994, tendo vingado apenas a construção de duas garagens, a Trianon e a Clínicas, mesmo assim iniciada apenas em 1997.
3
As medidas restritivas de estacionamento na região não foram implementadas, resultando na baixa ocupação da garagem e elevando os custos da sua tarifa.
4
O escritório MMBB era formado na ocasião pelos arquitetos Milton Braga, Marta Moreira, Fernando Franco e Angelo Bucci. Atualmente, este último conta com escritório próprio, o SPBR.
5
Estrutura protendida é uma forma de estrutura de concreto armado onde as vigas ou lajes têm sua altura reduzida em virtude da protensão da ferragem. As barras de aço trabalham livres em bainhas metálicas, tracionadas por macacos mecânicos nas suas extremidades. Esse tracionamento eleva sua eficiência, permitindo a redução das alturas estruturais.
6
O projeto de condicionamento de vegetação e mitigação de impactos foi realizado pela Ecoplan Arquitetura e Planejamento, e o de paisagismo pelo arquiteto Marcelo Suzuki. O projeto de arquitetura foi desenvolvido sob a coordenação da Proenge Engenharias de Projeto (engenheiros Inácio Tadayoshi Moriguchi e Walter de Almeida Braga). A garagem foi concluída em 1999.
7
A identificação desse partido arquitetônico pode ser acompanhada em TELLES, Sophia. “Museu da Escultura”. AU – Arquitetura e Urbanismo, nº 32, 1990, p. 44-51. As reflexões a seguir foram desenvolvidas a partir de conversas com essa autora.
8
Cf. KOOLHASS, Rem; MAU, Bruce. Small, medium, large, extra-large. Nova York: The Monacelli Press, 1995, p. 1.311.
9
Cf. FABBRINI, Ricardo N. O espaço de Lygia Clark. São Paulo: Atlas, 1994, p. 79-93.
sobre o autor
Renato Luiz Sobral Anelli, arquiteto e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, USP-São Carlos.