Em fins de 1990, com 25 anos, eu cursava o quarto ano da escola de arquitetura e, na parte da tarde, trabalhava no escritório de Luiz Paulo Conde, no Rio de Janeiro. Foi quando, meio que inesperadamente, depois de ganhar um “extra” com um P.F. (denominação que, no Conde, dávamos aos projetos feitos “por fora”), decidi ir passar uma temporada em Paris.
Minha intenção inicial era permanecer por lá não mais que dois meses. Contava fazer um curso de francês na parte da manhã e, no tempo que me restasse, trabalhar num escritório local. Foi com isso em mente que, pouco antes de partir, fui procurar aqueles que eu supunha poderiam conhecer algum escritório parisiense. Por sorte, logo de saída, contei com o apoio de Rizza Paes Conde, do próprio Conde e da saudosa Yedda Pitanguy Sampaio, que fizeram cartas de apresentação todas muito elogiosas, e forneceram o endereço do escritório de Christian de Portzamparc em Paris.
O arquiteto já era então uma celebridade internacional, graças, sobretudo, à recém-inaugurada Cité de la Musique, no Parque da Villette (Paris) – projeto publicado à exaustão pelas revistas do star system. O que me fazia imaginar quão difícil seria conseguir um posto, um estágio que fosse, em seu escritório
E no entanto, no dia seguinte à minha entrevista, e graças sobretudo ao empenho pessoal de Elizabeth de Portzamparc, eu já estava trabalhando no escritório da rue de l’Aude. Nosso acerto inicial era para que eu ficasse no escritório por dois meses, trabalhando meio expediente apenas. Mas não demorou muito (uma semana, se tanto) para que eu largasse o curso de francês e me engajasse integralmente nas tarefas do escritório. E começasse a pensar em não voltar tão cedo para o Brasil.
Passados três ou quatro meses, não me lembro bem, decidi finalmente que não iria voltar (um amigo, Eduardo Lo Fiego, ex-colega do Conde, quase brigou comigo quando lhe disse que estava pensando em voltar logo para o Brasil: – “enlouqueceu”, disse ele sério, “trocar isso aqui pela faculdade. A faculdade que espere!”). Bem entendido, para tanto, era preciso que fosse contratado pelo escritório; que começasse a receber um salário decente e que me fosse providenciada uma Carte de séjour – o visto de permanência com autorização de trabalho. E, por difícil que tudo isso pudesse parecer àquela altura, fui contratado, com um salário surpreendente e, o que era ainda mais improvável (já àquela altura as portas começavam a se fechar para a imigração), recebi uma permissão de trabalho renovável ad infinitum.
Ao todo, trabalhei com Christian de Portzamparc por pouco mais de dois anos (janeiro de 1991 a março de 1993). Foi sem dúvida, no quadro de minha formação (melhor seria dizer, de minha primeira formação), a experiência profissional, de longe, mais importante. E isso por diversas razões. Em primeiro lugar, tratava-se – e ainda se trata – de um dos melhores escritórios da França. E, o que é essencial – digo do ponto de vista de quem, como eu, queria aprender –, um escritório não muito grande, de no máximo 20 pessoas, no qual tudo era discutido por todos e com todos – prática, que eu saiba, rara na maioria absoluta dos grandes escritórios.
Além disso, o escritório era muito dinâmico. O carro-chefe eram os concursos internacionais. E eram tantos! Um atrás do outro, cada qual mais interessante que o outro: salas de concerto, museus, centros culturais, escolas de arquitetura. É verdade, as “viradas” (na França se diz “Charette”, e foi esta uma das primeiras gírias que aprendi chez Christian de Portzamparc) eram intermináveis, como eu nunca tive notícia aqui no Brasil. Mas, para o aspirante de arquiteto que eu era, tudo estava muito bom. Eu queria era mais.
O quotidiano do escritório era igualmente estimulante. E divertido, se me lembro bem. As equipes eram formadas por arquitetos de diversas nacionalidades, e me lembro de um projeto (Edifício-sede do Credit Lyonais em Lille) em que a equipe era formada por um francês, um irlandês, um turco, um vietnamita e um brasileiro – eu. Não tenho dúvida de que parte da qualidade dos projetos produzidos ali se devia ao cosmopolitismo da equipe de projeto – comum, diga-se de passagem, a outros escritórios importantes.
No escritório, todos, sem exceção, faziam de tudo um pouco. E, por conta da própria maneira de projetar de Portzamparc, não havia quem não estivesse constantemente produzindo maquetes – sobretudo maquetes de estudo (esse foi meu primeiro choque, por assim dizer, cultural: projeto algum jamais – jamais mesmo – ia adiante sem que se fizesse uma maquete, muitas maquetes, intermináveis maquetes de estudo – hábito que acabei incorporando, de maneira, digamos, menos obsessiva.). Quando de minha última visita ao escritório, alguns anos atrás, descobri, para a minha felicidade, que o advento da informática não havia alterado esse aspecto do processo de projetação de CdP: se em cada prancheta havia agora um PC, ao seu lado permaneciam as indefectíveis maquetes de estudo portzamparquianas.
Outra coisa boa era o fato de estarmos na França de François Mitterand e de seus Grands Projets d’Architecture. Não sei se ainda hoje é assim, mas, na época, trabalhar com um arquiteto de renome na França implicava um reconhecimento social inimaginável no Brasil de hoje (quem, neste que já foi o “país dos arquitetos” ainda liga para arquitetura de qualidade? Ou para a arquitetura tout court? Cartas para a redação). E isso não se traduzia, obrigatoriamente, em vaidade por parte dos arquitetos, senão, muitas vezes, num sentimento de responsabilidade, de que, o que se fazia nos escritórios, tinha afinal de contas alguma importância para as pessoas que vivem nas cidades.
Quanto à adaptação a uma cidade estranha e a um país estrangeiro, confesso que não tive grandes dificuldades. É claro, houve, como sempre há, um milhão de dificuldades – até porque eu não havia partido com a intenção de “ficar”. Mas, além do fato de ter podido contar com a ajuda de amigos, a cidade em questão era Paris. E a Paris do começo dos anos 90 era ainda uma cidade encantadora e excitante.
Quando decidi voltar, no entanto, Paris já não parecia a mesma. Ou talvez fosse eu que já não fosse o mesmo. Em todo caso, aos meus olhos, nada daquilo tinha mais o apelo de antes. O que não significa dizer que duvidasse do acerto da escolha. Há algo na formação de um arquiteto que, inescapavelmente, não se aprende nas escolas (por melhores que elas sejam), e que passa pelo convívio quotidiano, intenso e minimamente prolongado com um “grande arquiteto”. Quem, dentre os estudantes que pretendem ser projetistas, nunca fez isso e tem a possibilidade de faze-lo (muitas vezes, trata-se de uma escolha pessoal, não de contingências externas), que trate que intenta-lo. Não muito cedo. Nem muito tarde. Mas que o faça. Em Paris, na Cidade do Porto, em São Paulo; pouco importa. Em questão, mais que a cidade, está o arquiteto.
Curiosamente ou não, dentre as muitas coisas que aprendi com Christian de Portzamparc (arquiteto de peculiar sensibilidade, dotado de uma qualidade raríssima entre nós: a capacidade de ver e desenhar o vazio) – com ele e com Elizabeth de Portzamparc (que, estou certo, ainda há de brindar seu país natal com um de seus inigualáveis projetos de arquitetura de interiores) –, uma, em especial, foi marcante para mim: o interesse pela arquitetura brasileira. Foi a partir do contato com Elizabeth e Christian – verdadeiros apaixonados pela nossa arquitetura moderna em geral, e por Niemeyer em particular – que comecei a perceber nossa arquitetura moderna, a indagar sobre seu significado histórico, a questionar sua eventual atualidade, a imaginar em que medida, ou em que termos, seria possível fazer o que Christian costuma chamar “a crítica amorosa do moderno”.
No dia de minha partida, pouco antes de pegar o avião que me traria de volta ao Brasil, falei com Christian de Portzamparc ao telefone. Eu estava apreensivo, preocupado com as conseqüências de minha decisão de voltar. Ele deve ter percebido isso. Com sua voz suave e seu jeito de menino, sério mas (imagino) quase sorrindo, me disse: – “você pode ser algo que eu sempre sonhei ser, mas que, no entanto, jamais poderei ser: um arquiteto brasileiro”. A frase nunca mais me saiu da cabeça. O que é que cada um de nós, “arquitetos brasileiros”, pode fazer com uma frase dessas? Não sei. Quando voltei, achava que na “leitura crítica” de nossa tradição moderna haveria de estar um caminho possível para nossa produção contemporânea, e para o equacionamento de seus impasses e dilemas. Em certa medida, ainda continuo pensando isso hoje. Mas quando vejo que essa mesma tradição está virando uma espécie de FGTS de nossos arquitetos contemporâneos, fico me perguntando o que, afinal de contas, pode ser essa leitura crítica. E, o que é mais grave, se, todas as contas feitas, passados 50 anos, não estaríamos incorrendo, agora mais do que nunca, no equívoco de produzir o que Lucio Costa chamou de “arremedo, inepto e bastardo, caracterizado pelo emprego avulso das receitas modernistas desacompanhadas da formulação plástica adequada e da sua apropriada função orgânica” (1). Mas isso já não é mais o depoimento de um arquiteto carioca.
notas
1
COSTA, Lucio. "Muita construção, alguma arquitetura e um milagre – Depoimento de um arquiteto carioca”. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 170.
série completa dos "Depoimentos da Geração Migrante"
GUERRA, Abilio. "Depoimentos de uma geração migrante", Arquitextos 030.00, São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_00.asp>.
SPADONI, Francisco. "Geração Migrante – Depoimento 1. Kenzo Tange e uma peniche no rio Sena". Arquitextos 030.01. São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_01.asp>.
LEONIDIO, Otavio. "Geração Migrante – Depoimento 2. Em Paris, chez Christian de Portzamparc". Arquitextos 030.02. São Paulo, Portal Vitruvius, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_02.asp>.
VIOLA, Assunta. "Geração Migrante – Depoimento 3. Arquitetura e criatividade: uma experiência com Massimiliano Fuksas". Arquitextos 030.03. São Paulo, Portal Viutrivus, nov 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_03.asp>.
ORCIUOLI, Affonso. "Geração Migrante – Depoimento 4. De São Paulo a Barcelona". Arquitextos, Texto Especial 161. São Paulo, Portal Vitruvius, dez 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp161.asp>.
OIWA, Oscar Satio. "Geração Migrante – Depoimento 5. Arte sem fronteira". Arquitextos, Texto Especial 162. São Paulo, Portal Vitruvius, dez 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp162.asp>.
MOREIRA, Pedro. "Geração Migrante – Depoimento 6. Brasil, Inglaterra, Alemanha – 15 anos", Arquitextos, Texto Especial 163. São Paulo, Portal Vitruvius, jan 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp163.asp>.
LIMA, Zeuler R. M. de A. "Geração Migrante – Depoimento 7. Migrar, verbo transitivo e intransitivo. Uma experiência nos Estados Unidos", Arquitextos, Texto Especial 164. São Paulo, Portal Vitruvius, jan 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp164.asp>.
DIETZSCH, Anna Julia. "Geração Migrante – Depoimento 8. Uma dupla experiência nos Estados Unidos", Arquitextos, Texto Especial 172. São Paulo, Portal Vitruvius, mar 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp172.asp>.
Leia entrevista de Nanda Eskes com Christian de Portzamparc
sobre autor
Otavio Leonídio é arquiteto, doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio