Introdução
Rio for Partiers é um guia de viagem de pequenas dimensões (13,5 por 18 centímetros, aproximadamente) e com 154 páginas, que anualmente recebe atualizações de seu conteúdo. (1) O guia sugere e descreve locais para se ir (pontos turísticos, espaços de entretenimento, espaços culturais, áreas para lazer, contemplação ou prática de esportes) e, sobretudo, produtos para se consumir (alimentação, vestuário, utensílios, entretenimento etc.), o que serve de oportunidade para que sejam recomendados os parceiros da publicação, que recebem um selo de “RFP Partner”. Escrito em inglês pelo brasileiro Cristiano Nogueira, descrito como “escritor e editor que viveu no Rio, Viena e Chicago e recebeu dezenas de gringos no Rio” (2), e com fotografias e ilustrações respectivamente de João Penani e Felipe Moraes, também brasileiros, (3) Rio for Partiers se anuncia, em sua contracapa, como “o primeiro guia do Rio desenvolvido por jovens para jovens”, prometendo uma experiência tal qual se o leitor estivesse acompanhado de um “guia local que o apresentasse aos roteiros essenciais, ao melhor em esportes de aventura, aos mais saborosos restaurantes e às melhores festas e casas noturnas”.
Pode-se dizer que a publicação se insere em certa mudança estrutural que gradualmente vem sendo notada no mercado turístico: por um lado, tem sido valorizados mais a experiência cotidiana e o contato com a população local do que propriamente o cumprimento de um roteiro formal de paisagens e monumentos (4); por outro lado, esta experiência do espaço visitado constantemente é ajustada às categorias culturais de cada viajante, sendo cada vez mais fortes turismos que recebem adjetivos como “gay”, “radical”, “aventureiro”, “de risco”, “para idosos”, “para jovens” etc. (5) Além de Rio for Partiers, o mercado editorial brasileiro vem se adequando ao momento com guias de títulos e conteúdos inusitados como How to be a carioca, Paris agora – o guia de viagem sem lugares-comuns ou Como dizer ma-ra-vi-lho-sa! em 8 línguas – o guia de conversação para homens gays em viagem, publicações que, normalmente bem-humoradas, visam a atender a essa demanda por autenticidade e especificidade. Mas no caso de Rio for Partiers o que poderia se tornar oportunidade para oferecer algo mais além do “Rio para gringo ver” a este turista “jovem” que é declaradamente seu público-alvo, infelizmente torna-se uma colagem de representações infames.
Mais do que uma construção da cidade, Rio for Partiers possui uma construção de seu leitor: minha análise do guia parte do entendimento de que o “jovem” anunciado como estruturante tanto da elaboração quanto da decodificação obtida por sua leitura diz respeito a um homem branco, heterossexual e burguês – em um sentido que infelizmente carrega tudo que pode ser entendido como pejorativo e estereotipado, hoje, no recorte específico deste olhar (6). A partir da ativação de tropos bastante heterossexistas, textos e imagens apresentam a aventura de se estar no Rio como a junção da prática de esportes radicais que desafiam o físico para se vencer a natureza presente na cidade com a circulação em um lugar apresentado como desorganizado e culturalmente inferior, aonde o “jovem” em questão exercerá seu poder de consumo e facilmente irá tomar posse do espaço e, sobretudo, das mulheres para exercer sua masculinidade e superioridade. Fora outros exemplos que utilizarei ao longo do trabalho, colaboram para este entendimento: as páginas 1 e 3 (ver o Grupo de Imagens I deste trabalho), que ao apresentarem seu título junto de imagens bastante específicas já direcionam o olhar do leitor, provocando identificações de gênero; as partes intituladas “Gay Rio”, “How to deal with Brazilian boys” e “For the girls”, bastante exíguas (2 páginas cada) e escritas a partir da contribuição de escritores externos (provavelmente com maior interação nestes gêneros).
O trabalho está dividido em três partes. Antes de analisar Rio for Partiers, apresentarei uma breve discussão sobre a larga produção de objetos da cultura de massa em que os guias de viagem estão inseridos, objetivando demonstrar que os mesmos são reflexos de nosso cotidiano desejo de representar o mundo, ou melhor, os vários mundos particulares dos vários grupos, dando-lhes inteligibilidade. A segunda parte complementará a discussão, apresentando a situação do Rio de Janeiro nesta intrincada polissemia de discursos e técnicas que conformam narrativas. Por fim, analisarei na terceira parte o guia Rio for Partiers, sob o ponto de vista já apresentado e tendo como suporte a discussão teórica que agora se iniciará.
Parte I – objetos da cultura de massa e as representações do(s) mundo(s).
Hoje, a descrição das várias porções da superfície terrestre não mais está restrita às aulas de geografia, à National Geographic, ao Atlas Universal e à Enciclopédia Conhecer: filmes, desenhos animados e videoclipes apresentam situações singulares em várias partes do mundo; a Internet conecta todos os lugares e dá informação e desinformação sobre os mesmos; crianças e adolescentes podem se tornar momentaneamente guerreiros de recantos inóspitos ou até mesmo de mundos imaginários através de jogos de RPG ou de videogames; e são inúmeros aqueles que, antes de sair em férias, põem na sua mala um guia de viagens. Tais objetos são os frutos atuais da “era da reprodutibilidade técnica” (7), cujos estímulos ao mesmo tempo em que localizam espaços, singularizando-os e dotando-os de inteligibilidade para quem os vivencia de fato ou não, comprimem distâncias ao se desvencilharem do tempo e do espaço concretos. Como produtos para consumo imediato, parecem efêmeros e superficiais, mas não por isso deixam de ter conteúdo e abrangência avassaladora sobre o cotidiano, sendo parte importante, talvez preponderante, de uma cultura urbana e ocidental com pretensões universais. Nosso mundo e nossa vida, hoje, são invadidos e estruturados como nunca antes por imagens e sons que constroem representações (8) do próprio planeta, com suas inúmeras semelhanças e diferenças – geográficas, econômicas, culturais e sociais –, que ora singularizam, ora tentam homogeneizar essas características. Em outras palavras, nossa interação com o(s) mundo(s), está sendo permanentemente mediada por representações áudio/visuais, que reforçam visões de mundo bastante específicas, bem como suas respectivas filiações.
No que diz respeito às representações do espaço, é preciso se ter claro que há uma interpenetração entre o lugar representado e o campo intelectual do qual emanam as representações, que pode ser cultural (de gênero, classe, etnia ou idade, por exemplo), geográfico, político, econômico ou teórico (9). Elas são conseqüências deste embate, que não é necessariamente uma guerra ideológica e amoral ou está atuando na escala corporativa e da produção capitalista, mas sim é parte de um processo de (re)conhecimento do(s) espaço(s) e seus Outros, com propósitos específicos. Não se deve também questionar a “veracidade” das representações, pois todas elas vêm sempre acompanhadas com intenção e necessidade de autenticidade (10), estabelecendo para isso um sistema que faz permanentemente dialogar o “Meu Mundo” com o “Mundo do Outro”, ou seja, quem representa e quem é representado, não necessariamente nessa ordem. Para se entender as representações, então, é fundamental perceber que há práticas seculares que corroboram para composições específicas de cada espaço e de que os objetos como os guias de viagem são parte de seu resultado. Por isso, estão plenos de informações e desinformações que, ao serem reproduzidas tecnicamente mundo afora, levam idéias e conformam narrativas que vão novamente se relacionar com o cotidiano, impregnando-o, adensando pensamentos correntes ou inaugurando novos campos de representação.
Parte II - Voando para o Rio: narrativas de viagem e a experiência dos lugares.
Freire-Medeiros (11) argumenta que a cidade do Rio de Janeiro é uma “travelling city”, na medida em que sua imagem é “viajante” – de grande circulação global e de fácil assimilação – e está sendo permanentemente construída e reconstruída pelos já mencionados objetos múltiplos da cultura de massa, atraindo a atenção de estrangeiros, futuros turistas. Esta circulação não é natural nem vocacional. Como apontado por Celso Castro, a condição turística da capital carioca ou de qualquer outra cidade é uma construção:
“[s]eria ingenuidade ... pensar que um local possa ser ‘naturalmente’ turístico. Seu reconhecimento como ‘turístico’ é uma construção cultural – isto é, envolve a criação de um sistema integrado de significados através do qual a realidade turística de um lugar é estabelecida, mantida e negociada. Esse processo tem como resultado o estabelecimento de narrativas a respeito do interesse da ‘atração’ a ser visitada. Essas narrativas associam determinados adjetivos a ‘pontos’ ou eventos turísticos, antecipando o tipo de experiência que o turista deve ter. A construção do caráter turístico de um local também envolve, necessariamente, seleções: alguns elementos são iluminados, enquanto outros permanecem na sombra” (12)
As cidades, na verdade, estão imersas em narrativas e constantemente definem e redefinem suas próprias utopias e distopias (13), que se podem não exatamente corresponder à experiência urbana vivida, relacionam-se com valores e aspirações dos diversos grupos que acabam sendo reforçados e legitimados via representação. Partindo deste entendimento, pode-se considerar a paisagem carioca como uma representação, tecnicamente reproduzida e que utiliza de forma abundante ícones como o Corcovado, o Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara e os Arcos da Carioca, apontando a exuberância natural presente na cidade em contraposição às construções engenhosas da racionalidade humana. Tais ícones, que não deixam de ser violentas intervenções sobre o meio físico da cidade, são partes preponderantes da construção da imagem turística da cidade, e caracterizam-se como “objetivos a serem alcançados [pelo turista], locais de peregrinação, objetos de desejo que dão o próprio sentido de se visitar a cidade. Um turista ... se sentiria lesado se não pudesse subir esses dois morros para ver a cidade de cima”. (14) Estas atrações paisagísticas da chamada Cidade Maravilhosa não foram construídas para que fossem apenas vistas, mas também para que fossem constantemente percorridas, atravessadas ou atingidas, dando ao visitante certa sensação de conquista do território visitado. Juntam-se a isto outras informações que atuam na composição das narrativas da cidade: de um lado a exuberância e a sexualidade exacerbada femininas, os corpos seminus e a tropicalidade, as baianas, as mulatas e o carnaval, além da musicalidade diversificada e expressiva; do outro lado, a violência, o tráfico de drogas e a pobreza, sintetizados na favela. Mas se todas estas representações podem ser universais em termos de distribuição e reconhecimento mundo afora, com certeza diferenças podem vir a surgir ao se definir exatamente a quem se destinam: o Rio de Janeiro de/para um grupo de turistas gays com certeza guarda diferenças do Rio de Janeiro de/para um grupo de turistas formado por casais de idosos, por exemplo.
O que viso a deixar claro, aqui, é que o conjunto de representações da cidade do Rio de Janeiro tecnicamente reproduzido por diversos meios se converte em narrativas que, se estão intimamente ligadas à construção da “histórica” vocação turística da cidade e à estratégica captura de turistas, também podem inaugurar novas construções e narrativas. É preciso, portanto, tratar as representações sobre a cidade como construções simbólicas que ao mesmo tempo em que capturam pensamentos correntes, estão plenos de valores sociais e produzem efeitos bastante concretos na forma que a cidade é apresentada e vivida por seus habitantes ou visitantes. Acima de tudo, deve-se ter em mente que a experiência de viagem ao Rio de Janeiro está diretamente fundida e confundida com suas inúmeras representações.
Parte III – Rio for Partiers: rebaixamento cultural, sexismo e consumo.
Logo na página 12 de Rio for Partiers, o leitor é informado sobre a existência de “9 mandamentos do Rio”, aos quais se destacam “ficar longe dos morros”, pois é em suas encostas onde crescem as favelas, que devem “ser evitadas como praga” e “não discutir com os policiais ... [porque] não importa quem está certo, quem roubou o quê de quem ou se você não sabia que ela tinha menos de 18 anos, se eles quiserem te prender, deixe que te levem e então ligue para seu consulado”. O guia também sugere, mesmo afirmando que tais policiais têm o “Q.I. de uma manga”, que eles saberiam barganhar para livrar o turista de uma multa sem que nada diretamente sobre isso fosse dito explicitamente. Tendo talvez como únicos propósitos tornar a leitura divertida e dar ao leitor a falsa sensação de domínio do cotidiano local, a demonização das favelas e, portanto, dos pobres é explicitamente estabelecida, além de a prostituição infantil e o despreparo e a corrupção da polícia serem apresentados com o tradicional tropos discursivo do turismo sobre os “costumes de um povo”. É esta postura que autorizará o texto de Cristiano Nogueira a considerar aviltante a presença de pedintes na cidade, não por se caracterizar por um problema grave, mas sim por esmolarem nas áreas mais ricas. O autor afirma que “eles pedem mesmo quando estão em condições de trabalho” e avisa: “não dê nada a eles, já que eles não ajudam ninguém” (p. 132). Outro conselho, bastante heterossexista, se dirige à prostituição de transexuais e travestis: a única atitude recomendada ao turista é a de “não se apaixonar” (p. 133).
O texto também rebaixa a expressiva diversidade musical brasileira. Entre outras descrições, é dito: que o pagode “é um samba improvisado executado a partir de tudo que se pode bater sobre uma mesa de bar” (p. 78); que o famoso funk carioca é “como se um retardado tocasse um piano eletrônico depois de apenas uma aula” (p. 79); que a prestigiosa bossa nova é “o tranqüilo som que você ouve quando pensa nos cassinos dos anos cinqüenta, Frank Sinatra e vistas para o mar”, mas que pode ser apreciado, “especialmente depois do sexo” (p. 80); que o forró é “mais um pretexto para se agarrar uma mulher”; e que Raul Seixas, cultuadíssimo cantor e compositor do rock brasileiro das décadas de 1970 e 1980 era “uma versão brasileira de Bob Dylan, com um pouco mais de drogas” (p. 81). Talvez seja por isso que o texto negue haver na cidade punks, nerds, junkies, reggaes ou quaisquer outras tribos urbanas, ligadas à música ou outras filiações culturais: o Rio apresentado por Nogueira é um lugar de “gente normal” (p. 133), não comportando portanto tais tribos urbanas. Em outras palavras, ao apresentar o cotidiano da cidade e dar pouco espaço às imagens mais tradicionais de paisagens, baianas e foliões de carnaval, Rio for Partiers troca a construção de um exotismo pela a da desqualificação espaciotemporal. A cultura e o espaço da cidade não são apreciados por suas diferenças, mas sim ridicularizados de tal modo a poder induzir o leitor a valorizar e hierarquizar suas próprias origens.
Mas o jovem leitor do guia também é construído. Isto se torna claro quando são descritos os jovens cariocas, bem como as possibilidades de interação dos turistas com eles. As duas páginas escritas por India Lee Borba, “How to deal with Brazilian boys” (p. 110-111) são bastante sugestivas no que diz respeito à possibilidade de estarem delimitando o olhar masculino que estrutura e a que se destina a publicação. Recorrendo a uma metáfora culinária, Borba resgata as narrativas sobre os latin lovers, afirmando que no Brasil eles existem em quatro diferentes “sabores” (ver o Grupo de Imagens II): Preppy-types (algo que os brasileiros geralmente nomeiam como “Mauricinhos”, rapazes de classe média alta de gestos, aparência e gostos comportados), Pitbulls (a que estamos acostumados a chamar “Pitboys”, jovens muito musculosos, geralmente lutadores marciais, famosos por se envolver em violência nos espaços públicos), Neo-hippies (aparentemente o texto não teve coragem de fazer referência a “maconheiros”, aqueles que consomem a proibida cannabis) e Playboys.
Sobre os Preppy-types, Borba parece denunciar certa metrossexualidade: “eles sempre têm roupas legais e carinhas bonitas ... [e] gastam mais tempo em frente ao espelho para ficar prontos para sair do que com você”. Explicitamente ela recomenda distância dos Pitbulls, que seriam “tipos-Vin Diesel dedicados a seus corpos” que lutam jiu-jitsu e por isso estariam sempre interessados em brigas, e implicitamente dos Neo-hippies, denunciando que eles “vivem aonde o vento os leva” e que “ficar sentados pacificamente na praia fazendo bijuterias, cantando e socializando são seu esporte favorito”. Restam os Playboys, que podem ser achados “numa praia da Zona Sul”, mas que “preferem conversar sobre dinheiro e como o conseguir mais”. Surpreendentemente, esta sentença não é uma crítica, já que Borba diz que os Playboys são “os solteiros disponíveis e os melhores jogadores, sabem o que nós [mulheres] queremos, e possuem a habilidade para nos dar”.
É de fato notável que, além de Borba universalizar os latin lovers, desprovendo-os de qualquer latinidade inerente, ela descreva como o melhor macho o referido Playboy, (15) cujas qualidades são possuir dinheiro e gastá-lo, ser esportista e dar a mulher o que ela precisa (dinheiro e sexo, presumivelmente). É possível se interpretar, então, que este inusitado elogio ao Playboy por parte da autora, visa a uma identificação do público-alvo. A construção que o guia faz de seu jovem leitor é a mesma do Playboy apresentado por Borba: um jovem esportista, com dinheiro, que quer consumir e quer conquistar mulheres e que, mesmo exigindo um guia que não seja “tradicional”, no fundo estrutura a realidade a partir de bases convencionais. Tomando como máxima a afirmação de Douglas & Isherwood (16) de que consumir é se comunicar com os outros sobre si mesmo, Rio for Partiers a todo o momento irá fornecer o material que ajudará o playboy/ leitor a reforçar, em sua interação com a Cidade Maravilhosa e seus habitantes, Seu Mundo hetero e etnocêntrico em constante auto-afirmação.
É desta forma que fica autorizado o capítulo “How to deal with Brazilian Women” (p. 113, ver o Grupo de Imagens II), em que a exemplo do que Borba fizera nas páginas anteriores, Nogueira também define os “quatro tipos da mulher brasileira (além da garota normal)”. São elas: as Britney Spears, contrapartes femininas dos Preppy-types e talvez a tradução possível para o que os cariocas chamariam de “Patricinhas”, que são “lindas, mas que não deixam ninguém paquerá-las”, sendo recomendado ao leitor nem se chegar perto delas; as Hippies ou Ravers que seriam “fáceis de se chegar, boas de papo, difícil de beijar, fácil de beber e se divertir com elas” (grifo meu); a genérica categoria the 30 year old, de mulheres mais velhas que gostam de “se divertir, dançar, beber e beijar”, sendo recomendado que sejam tratadas “como damas, pois assim ... tratarão [o turista] como um rei, talvez não esta noite, mas amanhã com certeza”; e, por fim, as Popozudas (mulheres de quadris largos que dançam funk sensualmente), que são “maquinas de sexo, ... [que] vestem calças apertadas, ... pintam o cabelo de louro e fazem de tudo para ficarem lindas. Um bom investimento, já que o motel é sempre uma possibilidade com estas gatas”. A categorização das cariocas, que segundo o guia “acreditam de coração que são as Garotas de Ipanema” (p.112), é feita, portanto, a partir da possibilidade do playboy/leitor construído pela publicação ter sexo ou não com elas, aparentemente a única interação possível.
O rebaixamento da figura feminina é constante, o que pode ser percebido de forma um pouco mais sutil nas fotografias presentes no guia. Em quase nenhuma imagem os rostos femininos podem ser identificados: eles estão sempre um pouco sem foco se comparados ao restante em quadro, ou então as mulheres aparecem de costas, várias vezes portando um biquíni sumário. Quando aparecem em melhor detalhe, é bastante comum que estejam precisando receber alguma ajuda ou instrução masculina, como no capítulo sobre “adventure sports” (ver novamente a Figura 1 do Grupo de Imagens I e também as Figuras 1, 2 e 3 do Grupo de Imagens III). Mais do que reativar as tradicionais narrativas sobre a permissividade sexual da mulher brasileira, Rio for Partiers na verdade fornece reforço ao ponto de vista totalizante e masculino da hierarquização dos gêneros.
Sobre os esportes de aventura, aliás, o playboy/leitor poderá ter contato com mais um discurso que potencializa sua autoconfiança e sua masculinidade. O guia informa que a capital carioca apresenta as várias modalidades de esportes radicais – asa delta, parapente, mergulho, bodyboard, kite-surfing, rappel, surfe, escalada, windsurfing, canoagem, wakeboarding e esqui aquático –, com a vantagem de que os preços no Rio “estão próximos a um terço do que você pagaria no Primeiro Mundo” (p. 49). As estratégias de gênero novamente se confirmam, pois as fotos privilegiam a prática dos adventure sports por um ou mais jovens do gênero masculino. Preferencialmente as imagens mostram os rapazes em poses dramáticas, lances acrobáticos em que o desafio está no seu limite máximo. Pois não basta apenas ter as mulheres como objetos e tomá-las de forma viril, não basta somente percorrer as praias, atingir o alto do Corcovado ou do Pão de Açúcar ou atravessar ícones do turismo carioca como os Arcos da Carioca e a Baía de Guanabara. Rio for Partiers oferece a seu jovem estrangeiro e leitor a possibilidade de se relacionar com a natureza exuberante da cidade não apenas a partir da mera contemplação de uma vista panorâmica, mas sim de um esforço físico que fornece contato direto e violento com o meio natural – ar, montanhas, águas e áreas verdes – e visa a sua superação e domínio (ver Figuras 4 e 5 do Grupo de Imagens III).
Mas será mesmo que não há chances do leitor de Rio for Partiers entrar em contato com uma capital carioca mais culturalmente plural? É impossível serem rompidas as amarras heterossexistas que delimitam o guia e tornam pré-concebidos o olhar do leitor e o olhar sobre a cidade? Gays e mulheres, por exemplo, estão excluídos de qualquer forma de interação e identificação com sua leitura? Felizmente não. Mais uma vez, as várias possibilidades de consumo que abundam as páginas de Rio for Partiers irão se tornar formas de comunicação do self, e desta vez fornecendo alguns desvios, mesmo que tênues, deste mundo previamente recortado por um olhar elitista, masculinizado e sexista.
Ao que parece, as várias listas de estabelecimentos e serviços que se apresentam no guia objetivam que o leitor consuma o máximo possível a partir da sua consulta, de preferência os produtos com o selo RFP Partners. Para isso, o turista recebe dicas sobre a compra de “coisas que você precisa ter”, tais como filtro solar, loção após sol, “remédio para desarranjo” e “remédio para ressaca” nas farmácias, sandálias de praia e calção de banho nas lojas perto da praia e, finalmente, cartão telefônico e relógio e óculos de sol falsos com os vendedores de rua (p. 26-27). Além disso, são muitas as informações sobre aonde e o quê comer, quais souvenires comprar e em que lojas, sobre os lugares da moda ou onde se pode ouvir cada um dos estilos musicais brasileiros, sempre com endereços e fotos. São apresentados para isso muitos mapas (ver Grupo de Imagens IV) que fornecem a localização de drogarias, lojas, academias, lanchonetes, bares, boates, restaurantes, caixas de banco, locais de aluguel de bicicletas, supermercados, cybercafes e todo tipo de serviços, além de locais de lazer na praia e points de concentração gay, nomeados como “gay hang out” e representados divertidamente pelo encontro de duas tomadas-macho. Desta forma, o guia estimula a flânerie descompromissada que possibilita, em parceria com o consumo nas mais variadas formas de comércio e serviços (inclusive nos camelôs), a experiência do(s) espaço(s) de forma mais plural.
A partir do mapeamento destas inúmeras possibilidades de consumo, Rio for Partiers pode oferecer uma relação mais complexa entre deslocamento, representação e experiência (17), dando a seu leitor/playboy a chance de conhecer, por exemplo, o rock, o pagode, o funk ou o forró cariocas, mesmo que descritos de formas nada lisonjeiras em outros momentos da publicação: a partir da experiência de se ir aos locais que de fato são freqüentados pelos “nativos” apreciadores de cada um destes sons – respectivamente a Casa da Matriz, a Rua do Mercado, a casa de espetáculos Via Show e o bar Severyna, citados pelo guia –, o turista poderá então conferir a existência das tribos urbanas que a publicação insiste em dizer não existirem na cidade. Além disso, mesmo que com poucas páginas e mantendo de algum modo visões bastante reducionistas, os capítulos Gay Rio e For the Girls se abrem, a partir da indicação do consumo respectivamente em bares e saunas gays ou em elegantes salões de beleza, à possibilidade de outras filiações de gênero, que poderão ser reforçadas pelos deslocamentos indicados nos mapas de localização com mais algumas informações para estes grupos.
Particularmente as referências sobre alimentação se tornam um meio rico para se entrar em contato com a diversidade cultural da cidade: além de listar as propriedades benéficas das frutas e sucos que podem ser encontrados nas lanchonetes do Rio de Janeiro (p. 128-129), da cana-de-açúcar à pitanga, o guia referencia a feijoada carioca (p. 72), o sanduíche paulista Bauru feito de bife de carne e ovo (p. 68), as “dezenas de delícias mineiras” (p. 73) e a “autêntica comida nordestina” (p. 75). Apresenta ainda as cozinhas árabe, portuguesa e italiana do caldeirão étnico do Rio de Janeiro e também indica o consumo de doces regionais como a cocada, a paçoca e o quindim, as iguarias normalmente consumidas nos botequins (caldinho de feijão, frango à passarinho e lingüiça acebolada) e manufaturados brasileiros, como os biscoitos Globo, o Guaraná Antarctica e o Matte Leão, por exemplo. Fornece, além disso, uma diferenciação de status social através de alimentos mais populares: faz elogios às benesses nutricionais do “prato feito” – bife, arroz, feijão, salada e batata (p. 68) e lista várias das “comidas de rua”, como o pastel de carne, o quibe, o misto quente, o croquete de carne, o bolinho de aipim, a coxinha de galinha, o salsichão e o X-Tudo, dentre outros (p. 120-121, ver Grupo de Imagens V).
Deste modo, é possível então se concordar com os argumentos de Jackson (18) de que economia e cultura não devem receber uma leitura maniqueísta que os vê em pólos opostos que precisam permanecer sem interação, e de que a diversidade cultural pode, sim, ser expressa a partir da comercialização e consumo de produtos culturais (regionais, étnicos, de status social), não havendo necessariamente espetacularização indevida ou violência conceitual. Pois ao longo do guia, é justamente a partir desta itemização de produtos que ao menos pretende dar conta do cotidiano da cidade e da expressividade da cultura carioca, ou se destinar ao público GLS e às mulheres, que o olhar heterocêntrico e etnocêntrico se turva, aparentemente sendo a via possível para que o leitor de Rio for Parties tenha alguma forma de contato com a diversidade da cidade do Rio de Janeiro.
Considerações finais
Ao priorizar a escala da experiência, Rio for Partiers elege narrativas sobre a interação com a cidade e sobre o cotidiano de seus habitantes que muitas vezes espantam por seu conteúdo pejorativo. Como todas as representações, as de Rio for Partiers apresentam alguma sustentação, mesmo que mínima, na experiência concreta: o problema está no conjunto de representações escolhido e na maneira que o mesmo é apresentado.
Se a referência à multiplicidade cultural da culinária presente na capital carioca tornou-se um meio de se ampliar o repertório à disposição do leitor, junto com as possibilidades de consumo diferenciado auxiliadas pelos mapas, talvez ela não seja suficiente para minimizar os prováveis efeitos de uma experiência turística mediada por construções apriorísticas de sexismo e rebaixamento cultural tão fortes quanto as de Rio for Partiers. Evidentemente não fiz minhas críticas ao guia exigindo-lhe uma análise sociológica ou antropológica da cidade e de seus habitantes, mas é de fato lamentável que os brasileiros envolvidos na publicação tenham priorizado visão tão reducionista e não tenham utilizado seu genuíno conhecimento de campo para produzir representações mais abrangentes e ampliar de forma mais efetiva a experiência cultural do turista na capital carioca. Tais autores construíram, de certa forma pejorativamente, não apenas o Rio de Janeiro: a capital carioca da publicação, com seus atrativos e adversidades, assim o é porque também está construído e representado o jovem estrangeiro que interage com a cidade. Ele está inserido em uma narrativa de conquista territorial e de exibicionismo masculino, expressa tanto a partir do domínio da natureza quanto das mulheres, do rebaixamento dos jovens nativos e da cultura carioca, mas que não deixa de estigmatizar o visitante estrangeiro, sua própria masculinidade e sua própria condição de jovem.
notas
1
Estou utilizando a edição publicada em fins de 2003 (Nogueira, Cristiano. Rio for Partiers 2004. Rio de Janeiro : Solcat Editora, 2003, 154p), válida para todo o ano seguinte, intitulada por isso como Rio for Partiers 2004. O guia também é impresso em espanhol com o títtulo de Rio sin Parar e está disponível na Internet, em diversos idiomas, no site www.rioforpartiers.com.
2
Esta como as demais citações ao longo do texto foram traduzidas para o português quando no original se encontravam em outro idioma.
3
Infelizmente a publicação não fornece mais informações sobre o autor, o fotógrafo ou o ilustrador, o que contribuiria para uma análise mais aguçada da construção e, sobretudo, das intenções das representações do guia.
4
Uma simpática reportagem da revista Domingo, encartada ao diário carioca Jornal do Brasil informou sobre os inúmeros turistas que em visita ao Rio de Janeiro exigiam se hospedar em casas de família e fazer programas “tipicamente cariocas”, como ir ao Maracanã e a uma roda de samba, subir a pé uma favela ou até mesmo arranjar um emprego em caso de estadias mais longas. Ver: Braille, Ana Carolina. Para inglês ver e viver. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 out. 2006, Domingo, n. 1530, p.14-20.
5
O caderno Rio Show, do jornal O Globo (fev. 2004) trouxe um levantamento das atividades e programas relacionados a cinco perfis de turistas em visita à Cidade Maravilhosa, chamados de “jovem”, “classe A”, “gay”, “família” e “mochileiro”, que negariam o estereótipo da “figura cor-de-rosa, de bermudão florido e camisa idem, com meias até os joelhos e máquina fotográfica gigante dando bandeira” (p. 22). Ver: Para carioca ver. O Globo, Rio de Janeiro, 13 fev. 2004. Rio Show, p. 22-25.
6
Situo este trabalho, portanto, no contexto dos ataques de teóricos feministas, pós-positivistas, pós-estruturalistas, pós-modernos e pós-coloniais à noção genérica de “indivíduo”, que na verdade carregaria um ponto de vista bastante particular: ocidental, masculino, heterossexual e burguês. Trata-se de um conjunto de escritos que denuncia a construção de uma universalidade, que por sua vez forja o que é “a” cultura e “a” ciência, quem é “a” sociedade e diz de quem são os espaços e que, por contrapartida, valoriza a diversidade. Para sínteses interessantes, esclarecedoras e bastante engajadas, consulte: McDowell, Linda. Understanding diversity: the problem of/or "theory". In: JOHNSTON, R. J. & Taylor, P. J. & Watts, M. J. (eds.). Geographies of global change. Oxford : Blackwell, 1995, p. 280-294; e Shohat, Ella & Stam, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo : Cosac Naify, 2006 [1994].
7
Benjamin, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo : Brasiliense, 1985 [1935/36], p. 165-196.
8
Filio-me à posição teórica que entende as representações como “os modos como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída pensada, dada a ler... [São moldadas por] classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real ... [S]ão produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças as quais o presente pode adquirir sentido, o outro se tornar inteligível e o espaço ser decifrado” (Chartier, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa : Rio de Janeiro : Difel : Bertrand, 1990, p. 17).]
9
Duncan, James. Sites of representation: place, time, and the discourse of the other. In: Duncan, James: Ley, David (orgs.). Place, culture and representation. London: Routledge, 1994, p. 39-56, p. 34.
10
Livingstone, David N. Reproduction, representation, and authenticity: a rereading. Transactions of the Institute of British Geographers, v. 23 , n. 1, 1998, p. 13-19.
11
Freire-Medieros, Bianca. The travelling city. Representations of Rio de Janeiro in U.S. films, travel accounts and scholary writing. 2002. Tese (Doutorado em Teoria e História da Arte e da Arquitetura) – Graduate School of Binghamton University, State University of New York, New York.
12
Castro, Celso. Narrativas e imagens do turismo no Rio de Janeiro. In: Velho, Gilberto (org.). Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro : Zahar, 1999, p. 81.]
13
Ver: Mcarthur, Colin. Chinese boxes and russian dolls: tracking the elusive cinematic city. In: CLARKE, David B. (ed.). The cinematic city. London : Routledge, 1997, p. 19-45; e Bellavance, Guy. Proximidade e distância da cidade: a experiência da cidade e suas representações. Interseções. Revista de Estudos Interdisciplinares. Ano 1, nº 1, p. 67-86. Rio de Janeiro, 1999.
14
Denis, Rafael Cardoso. O Rio de Janeiro que se vê e que se tem: encontro entre a paisagem e a matéria. In: A paisagem carioca. Rio de Janeiro : Prefeitura do Rio de Janeiro : Secretaria Municipal de Cultura : Secretaria Municipal de Educação : RIOARTE, 2000, p. 82-97.
15
A autora parece não se dar conta de que “playboy” é categoria que no linguajar do jovem carioca, pode se referir tanto a um “machão” que pouco pensa e apenas quer se exibir a partir de seus feitos no esporte e com as mulheres, como também, especificamente entre os jovens da favela, designar de forma pejorativa justamente o jovem que não é da favela, mas sim da elite, e que portanto não trabalha de sol a sol, é dependente dos pais e sabe pouco da vida.
16
Douglas, Mary & Isherwood, Baron. O mundo dos bens. Para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro : Editora UFRJ, (2004 [1979]).
17
Exemplos da relação entre deslocamento e experiência da cidade são: Benjamin, Walter. Obras escolhidas II. Rua de mão única. São Paulo : Brasiliense, 1987; Simmel, Georg. A metrópole e a vida mental. In: Velho, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1987 [1903]; Debord, Guy. Introdução a uma crítica da geografia urbana. In: Jacques, Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva. Escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro : Casa da Palavra, 2003 [1955], p. 39-42; e Khatib, Abdelhafid. Esboço de descrição psicogeográfica dos Les Halles de Paris. In: Jacques, Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva. Escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro : Casa da Palavra, 2003 [1958], p. 79-84. Para ver artigo sobre as diferenças de representação a partir das várias formas de deslocamento, incluindo a flânerie, consulte: Name, Leonardo. Cidades em movimento: sobre cinema, percursos e acelerações. Cadernos de Antropologia e Imagem, v. 18, n. 1, 2004, p. 115-134.
18
Ver: Jackson, Peter. Commercial cultures: transcending the cultural and the economic. Progress in Human Geoography, v. 26, n. 1, 2002, p. 3-18; Id. Commodity cultures: the traffic in things. Transactions of the Institute of British Geographers, v. 24 , n. 1, 1999, p. 95-108.
sobre o autor
Leonardo dos Passos Miranda Name (Leo Name) é arquiteto-urbanista (FAU-UFRJ), doutor em Geografia (UFRJ) e professor do Departamento de Geografia da PUC-Rio