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architexts ISSN 1809-6298


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Neste artigo, Paulo M. M. Barnabé fala sobre a relação entre luz e arquitetura, que, segundo ele ocorre desde os tempos mais remotos, de modo que a história da arquitetura poderia também ser compreendida como a história da organização do espaço-luz


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BARNABÉ, Paulo Marcos Mottos. A luz natural na Casa das Canoas. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 103.02, Vitruvius, dez. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.103/89>.

Luz e arquitetura sempre estiveram profundamente relacionadas desde os tempos mais remotos. Exemplos inspiradores da aplicação desse elemento expressivo são abundantes e servem para se entender a produção do ambiente construído em um determinado período histórico (1). O uso da luz natural como diretriz de projeto evidencia-se nas obras arquitetônicas paradigmáticas que sempre a consideraram fenômeno basilar no processo de concepção do projeto. A história da arquitetura poderia também ser compreendida como a história dos vários modos de organizar o espaço-luz e através da concepção ideativa lumínica da forma que o envolve.

Do Colonial ao Moderno, gradativamente a luminosidade foi aumentando nos espaços interiores da Arquitetura Brasileira. A produção Moderna caracterizou-se pela miscigenação entre os princípios ortodoxos das vanguardas européias, as posturas orgânicas americanas e os valores locais relacionados ao clima e à arquitetura vernácula. De modo que a arquitetura desenvolvida a partir dos anos de 1930 representou um momento que vai muito além da simples adoção dos princípios exógenos. Os mestres locais preferiram adotar uma interpretação mais poética que pragmática dos dogmas modernos. Parece claro que o ponto comum a esses profissionais foi o estabelecimento de estratégias distintas para mediar a complexa envolvência entre arquitetura e o meio ambiente, e dessa forma estabelecer certa dinâmica espacial caracterizada pela expansão e pelo recolhimento.

Oscar Niemeyer também promoveu uma arquitetura híbrida, resultado de sua habilidade em manipular influências diversas. Rapidamente superou seus modelos, subvertendo-os às necessárias adaptações. Em relação às questões lumínicas, não poderia ser diferente. Suas obras caracterizam-se pelo enriquecimento semântico do espaço mediante distintas camadas luminosas. As variações de luz e sombra realçam a sensação dinâmica e as superfícies claras oferecem presença material aos gestos abstratos. Ele é um dos poucos arquitetos que já em seus memoriais e textos publicados deixava transparecer a preocupação de utilizar a luz como elemento norteador de projeto. Desses pode-se citar a Casa das Canoas (1953):

“Minha preocupação foi projetar essa residência com inteira liberdade, adaptando-a aos desníveis do terreno sem modificá-lo; fazendo-o em curvas de modo que a vegetação penetrasse nela, sem a ostentosa separação da linha reta. E para as salas de estar criei uma zona em sombra para que a parte de vidro evitasse as cortinas e a casa ficasse transparente, como eu preferia” (2).

O arquiteto projetou algumas casas para sua família na cidade do Rio de Janeiro, além da reforma de uma casa de campo em Mendes (1949). Na casa da Lagoa Rodrigo de Freitas (1942), materializou alguns dos princípios modernos estabelecidos por Le Corbusier, como os pilotis, a rampa interna, a planta livre, as janelas em banda, a luz inundando os espaços; embora seu telhado de barro denunciasse reminiscências culturais bem brasileiras.

Entretanto, foi na Residência das Canoas que ele sintetizou suas diretrizes projetuais frente às posturas modernas. Nesse momento encontrava-se questionando o seu processo de trabalho e retomava alguns temas formais da poética de Pampulha (1940) e do Parque do Ibirapuera (1950), ao mesmo tempo em que consolidaria a opção por volumes puros em outros projetos, dos quais o Museu de Caracas (1954) seria um bom exemplo. Assim, Canoas procurava se firmar como um distanciamento das imposições racionalistas.

Para quem está acostumado a analisá-la apenas através de fotografias, visitá-la pode ser uma grata surpresa, principalmente ao constatar que ela é menor do que aparentava, e que na realidade tem dimensões bem reduzidas; seu autor manipulou os elementos construídos alterando sutilmente a escala percebida.

Mesmo após várias visitas, é impossível não se sensibilizar ao chegar a essa obra. Da cota mais baixa na Praia de São Conrado o acesso em aclive se dá por uma típica estrada sinuosa de floresta tropical cobrindo montanhas - a floresta da Tijuca: a Estrada das Canoas, sombreada por várias árvores que refratam feixes esporádicos de luz coada entre folhas. A casa não é totalmente visível da estrada, encontra-se camuflada pela vegetação densa e pelo grande desnível entre elas. Deixa-se o carro em um pequeno estacionamento superior, percorre-se uma trilha em rampa curva, descendente, suave e, finalmente, pode-se começar a avistá-la após alguns metros de caminhada. Hoje, um feixe de luz aponta para uma escultura de Ceschiatti e para a piscina tangenciada por uma grande pedra. A água, muitas vezes presente na arquitetura de Niemeyer, institui múltiplos reflexos a todas as formas próximas.

Da rampa identifica-se sua imagem emblemática: a laje amebóide, uma cobertura orgânica branca apoiada em esbeltos pilotis metálicos escuros - uma lâmina contínua flutuante sem platibanda, cobrindo os volumes da casa, pintados na cor verde musgo, e o piso de cimento e pedra preta que conduz a percorrer os espaços, dirigi o olhar para pontos focais específicos conforme se contorna a piscina e olha-se para as várias esculturas distribuídas nas reentrâncias da mata. Niemeyer utilizou o conceito da promenade architecturale, manipulando o trajeto que o visitante tem ao percorrer do acesso até a casa e depois internamente. Tal dinamismo é mantido pelo agenciamento espacial e locação de uma larga escada que interliga os pavimentos. A casa não tem frente ou fundos, nela o que predomina é a fluidez espacial, um movimento contínuo que não permite que os olhos se fixem por muito tempo em uma forma específica.

Assim como a casa Farnsworth de Mies (1945-51), Canoas é um pavilhão com uma composição marcantemente horizontal, embora negue veementemente a geometria cartesiana. Seus espaços protegidos pela laje em forma de ameba surgem ora abertos, ora fechados, ao mesmo tempo contínuos e separados, aproximando-se e afastando-se da natureza. Neles todos os graus de iluminação foram premeditadamente estudados. O jogo de claro e escuro participam da definição da planta, animando os espaços com seus contrastes instáveis.

Se forem comparadas as fotos antigas com as condições atuais, percebe-se que a mata envolveu a casa, adensando-se mais ainda pela intervenção de Burle Marx e do próprio Niemeyer, que plantaram várias espécies vegetais. Antigamente era evidente a presença da pedra da Gávea e da praia de São Conrado, emolduradas pelos elementos construídos.

O memorial descrito acima e os croquis explicativos de Niemeyer evidenciam o uso da luz e da sombra como diretrizes de projeto, além do seu cuidado em valorizar e harmonizar-se com a paisagem periférica. A área de sombra íntima, contrastando com áreas envidraçadas, viria a ser utilizada um ano mais tarde na planta tipo de um dos apartamentos do edifício Oscar Niemeyer (1954), na Praça da Liberdade de Belo Horizonte.

As curvas da Casa das Canoas são organicamente submissas ao terreno, acomodando-se entre a vegetação e as pedras, contornando os obstáculos naturais. O partido define-se pelo zoneamento lumínico. No pavimento térreo, três zonas são percebidas: a área do estar em sombra, a área do vestíbulo de distribuição em plena luz e a discreta área de serviço a meia luz. No pavimento inferior, a área íntima qualifica-se com luz controlada, voltando-se para Sudoeste e Sudeste, sendo regulada por pequenas aberturas, algumas das quais com venezianas.

Além da evidente inversão dos níveis de distribuição funcional dos sobrados, ao propor atividades sociais no térreo e íntimas no pavimento inferior, é interessante notar também que esse zoneamento está ligado a aspectos formais bem delimitados: as áreas sociais e de serviços do térreo, relacionadas às atividades diurnas, foram definidas por uma configuração livre, orgânica e escultural, contrabalançada por planos retos, com predominada transparência; já as áreas íntimas do pavimento inferior, relacionadas às atividades noturnas, foram determinadas por formas mais contidas, geometricamente menos irregulares, privilegiando o recolhimento, enfatizando a opacidade - tudo organizado a partir de uma grande pedra que fica locada entre as áreas internas e externas. Percebe-se que a pele envoltória, então, caracteriza-se por um jogo equilibrado de transparências e opacidades no pavimento térreo e que no pavimento inferior impera a opacidade.

Quando se entra pelo lado Noroeste da casa, nota-se que as áreas em sombra, adequadamente, delimitam-se como confortáveis estares ou avarandados receptivos, e os panos de vidro opostos no vestíbulo permitem avistar o plano da laje amebóide sombreada, difundindo a luz natural e sendo bordada com reflexos ondulantes dos raios de sol sobre o espelho d’água da piscina. A marquise cria áreas de sombra e luz diferenciadas, ou melhor, as janelas junto à laje de cobertura funcionam como difusoras de luz.

Do vestíbulo, intensamente iluminado, chega-se a um estar sombreado pelo lado esquerdo, com apenas uma pequena janela quadrada, que se manifesta mais como um quadro emoldurando a paisagem do que uma fonte de luz. Do lado direito, encontra-se a sala de jantar protegida por uma parede curva, revestida com filetes verticais de madeira, atrás da qual está um pequeno lavabo, a cozinha iluminada por janelas altas em fita e a área de serviço externa dissimulada por um muro baixo pintado de branco. Também, desse lado, encontra-se a escada que contorna a grande pedra, conduzindo à área íntima do pavimento inferior. Do hall ainda é possível acessar a parte posterior da casa: uma laje que se projeta sobre o vazio do terreno, cobertura de parte do pavimento inferior, sala de estar ao ar livre sob sombra de árvores, belvedere para usufruir a luminosa paisagem da mata próxima e do mar no horizonte. Ou seria um terraço sobre um jardim, quase um “terraço-jardim”?

Descendo a escada interna, há uma saleta com lareira e um pequeno escritório iluminados e ventilados por pequenas aberturas circulares junto ao teto, por um estreito rasgo reentrante na alvenaria, e pelo próprio vão da escada que permite ver as paredes superiores à meia altura com panos de vidro junto à laje. Nas extremidades desse pavimento tem-se de um lado uma suíte para as visitas, e do outro uma suíte, dois dormitórios e um banheiro para a família. Os banheiros também são iluminados e ventilados por pequenas aberturas circulares, enquanto os dormitórios têm janelas com vidros projetantes e venezianas internas de correr embutidas.

Normalmente Niemeyer optava por grandes aberturas em vez de “buracos na caixa”, assim como todos os modernos que privilegiaram a transparência. Mas aqui, além dos grandes planos de vidro que definem o partido geral do térreo em contraponto às áreas fechadas, encontram-se outros tipos de aberturas.

Na casa projetada para sua família, ele conseguiu sintetizar sua postura híbrida moderna, avessa aos postulados rígidos da poética estrangeira. Ela pode ser considerada como um conjunto de citações, nas quais convivem diretrizes “construtivas” e “orgânicas”, como a laje amebóide a lembrar as formas dadaístas; as paredes autônomas que cumprem papel independente na qualificação das formas; os grandes balanços; os pilares esbeltos de aço que sustentam a laje plana e a parede curva do jantar revestido com filetes de madeira (referências ao Pavilhão de Barcelona, a Casa Tugendhat e a Casa Farnsworth de Mies); a continuidade entre os espaços internos e externos através dos planos de vidros protegidos por grandes beirais sombreados semelhantes às casas de Wright; os múltiplos materiais empregados na hierarquização dos espaços, além de muitas outras. Mas apesar dessa íntima relação com arquiteturas altamente pessoais, o que se vê em Niemeyer é uma interpretação livre e sempre contestatória, unindo posturas dispares, como a fixação pelo ângulo reto de Mies e suas formas espontâneas. Ele dissimulou em Canoas as ressonâncias da poética estrangeira. Ela não se enquadra no racionalismo repetível, é única e adaptada ao seu contexto físico.

Os materiais externos restringem-se ao uso de pisos de pedra e cerâmica preta (que invadem o interior), paredes de alvenaria pintadas na cor verde musgo e branco, além de placas de mármore branco nas bordas da piscina. Antigamente, a superfície externa da sala de estar era revestida com filetes verticais de madeira. Internamente pisos de cerâmica preta no pavimento superior, madeira e cerâmica clara no pavimento inferior; paredes revestidas com filetes verticais de madeira, pastilhas de vidro cinza, azulejos brancos, além de alvenaria e lajes pintadas na cor branca.

A luz e a sombra articulam os ambientes da Casa das Canoas. Embora esteja envolta por muitos planos de vidro, pode-se dizer que, do ponto de vista da luz, é a sombra, ou a penumbra, o tema principal dessa residência. Ou, melhor ainda, o tema é o contraste dual de rupturas e continuidades, de forma que nela encontram-se luz direta e indireta, luz e sombra, continuidade espacial e ambientes contidos, áreas em sombra mais íntimas e áreas transparentes cheias de luz em contato contínuo com o exterior. Portanto, a iluminação resultante é heterogênea, caracterizando-se pela claridade em função dos grandes planos de vidro e das superfícies refletoras, e pela obscuridade relativa nas áreas de estar e íntimas. Efeitos contrastantes, deliberadamente pronunciados entre ambientes claros e escuros, diferenciam outros transicionais ou permanecentes, enfatizam o expressivo dinamismo materializado e percebido ao se perambular pelos espaços dessa casa.

notas

1
BROGAN, James (org.). Light in architecture. Edição especial Revista AD, Architectural Design. Londres: Academy Group, 1997.

2
NIEMEYER, Oscar. Casa das Canoas. In: Revista Módulo, n. 14, p. 20, 1958. Grifo nosso.

sobre o autor

Paulo Marcos Mottos Barnabé. Doutor e Mestre em Arquitetura pela FAU/USP - 2005 e 2001; Especialista em Didática do Ensino Superior pela PUC/PR em 1998; Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela PUC/PR em 1981; Professor da Área de Projeto no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Londrina desde 1985

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