Preparação. A leitura de Neve e Istanbul, de Orhan Pamuk e de Portrait of a Turkish Family, de Irfan Orga, nos ensinou como chegar à Turquia. Para apreciar a arquitetura, Greek Architecture, de A.W. Lawrence, Roman Imperial Architecture de J.B. Ward-Perkins; Early Christian and Byzantine Architecture de Richard Krautheimer, e The art and Architecture of Islam, 650-1250, de Richard Ettinghausen e Oleg Grabar, os quatro da Pelican History of Art, são algumas referências fundamentais. Como guias de viagem utilizamos o Rough Guide to Turkey, com pesquisa e textos de Rose Ayliffe et. alt., o Guia de Istambul da Folha de SP, a Viagem ao Oriente de Le Corbusier e o Ancient Civilizations and Ruins of Turkey, do Prof. Ekrem Akurgal. Bons mapas.
A chegada. Istambul vol d’oiseaux. O azul do mar de Mármara e nele, as ilhas Príncipe. A cidade em planta – branco sujo, densa e enorme – com o estreito do Bósforo separando-a: Europa e Ásia. No lado europeu, o Chifre de Ouro, o comprido braço do Bósforo, formando o porto natural e separando a península histórica, Bizâncio, de Pera. O céu é azul, claro e profundo e o mar, também. Muitos navios.
Transpondo muralhas. A descida mostra o perfil inconfundível: a linha d’água em contraponto à ondulação das colinas cobertas de vegetação – ciprestes, um mar de edifícios, num gabarito baixo e regular – publicidade massacrante em outdoors imensos, e a silhueta repetida das muitas mesquitas: cascatas de cúpulas e agulhas de um, dois ou quatro minaretes.
Já em terra, o movimento. Da E5 à avenida larga – Fevzi Pasha e, após a passagem pelo portão dos muros de Teodósio que ainda protegem, separam, dividem e, principalmente, marcam – Eminönü – Constantinopla. Fluxo intenso nos dois sentidos: são automóveis, ônibus, dolmans (táxi coletivo) e táxis comuns – amarelos, como em NY. Correndo em paralelo, o aqueduto de Valério.
Na medida em que nos aproximamos de Sultanahmed, muita gente, povo, as mulheres vestindo tesettür (o conjunto formado pelo lenço na cabeça e o mantô por cima da roupa, cobrindo tudo, para ser usado quando em público).
Ao acaso, um passeio noturno num cemitério otomano. Os túmulos com as estelas alinhadas inscritas em persa e árabe, encimadas por barretes de pedra, celebram a profissão, feitos e status de seus mortos. Não parecem ser, assim perfiladas, os próprios indivíduos?
Depois, no terraço em Sultanahmed, na escuridão observamos as luzes e contornos da cidade estranha e as sombras dos navios e embarcações que circulam silenciosamente pelo Bósforo. Chamados do muezim para a última oração são lançados ao vento, de todas as mesquitas. Sons se entrecruzam em confusão, provocando estranhas imagens e sensações. A cidade é viva e é velha.
Sagrada Sabedoria. Hagia Sofia, vermelhos esmaecidos, contrafortes, ruínas em meio aos jardins. Circundá-la. Abraçá-la. Como pode ser tão exata? O círculo e o quadrado combinados, foi o que aprendemos. E muito mais. Grandiosidade e delicadeza, robustez e fragilidade. Sob a cúpula que “uma corrente de ouro faz flutuar” o espaço – nave interior.
Capitéis intrincados, mármores coloridos, bronzes e, em cima, depois da vetusta escadaria de tijolos, as paredes com fragmentos de cenas religiosas em mosaicos coloridos cercados de outros, dourados. Arte bizantina. Lá fora, a grande praça faz pensar: onde foi parar o casario de madeira que vimos ao seu redor numa antiga foto no Istanbul do Pamuk?
Sultanahmed Cammii (mesquita). Mesquita Azul, seis minaretes, como nenhuma outra. Lindos azulejos de Iznik onde impera o azul – mas também são muitas as outras cores, formando intrincados painéis. As cúpulas se sucedem em descenso. Na competição com Hagia Sophia – mil anos mais velha – ela parece, mas não é maior. É mais baixa, a cúpula central é menor. É, assim, um tanto estridente.
Pessoas oram e gesticulam, sentadas sobre as pernas decorosamente escondidas sob os tecidos que as cobrem. Ao lado, o amplo pátio interior, rodeado do pórtico – este sim é soberbo. Piso de grandes lajes de mármore branco liso, polido, limpo. No centro, a fonte das abluções.
Topkapi Saray (palácio). Dominando o mar de Mármara próximo à entrada do Bósforo e a região portuária do Chifre de Ouro: eis a cidade murada dos sultões! Jardins, pátios, palácios, o harém e Santa Irene, conhecida como a primeira igreja cristã de Constantinopla, que sobreviveu encravada ali dentro com o átrio – intacto, e o espaço interno – de planta basilical, grandioso.
A ponte sobre o Chifre de Ouro, Gálata. Enxurradas de pessoas cruzam em direção a Pera, ou ao contrário. Ao longo dela, num nível abaixo, a sequência de restaurantes. No ar, o cheiro forte de fritura. Junto ao parapeito, pescadores com longas varas e as linhas esticadas até o limite, parecem não notar o ir e vir incansável de transeuntes misturado ao tráfego de ônibus e automóveis. Barulho, fumaça, odores e calor.
Por baixo, atravessando-a, barcos atarefados transportam mercadorias e moradores. Por cima, o vôo das gaivotas.
Vamos primeiro a Beioglu – bairro europeu e cristão, moderno, conhecer a torre genovesa de Gálata, a longa e incessante Istiklal Cadessi, ou antes, Grand Rue de Péra, com seus afrancesados e luxuosos edifícios do séc. XIX, a Praça Taksim – confusa, barulhenta e enorme, até o bairro Nisantasi (esse familiar: tipo Upper West Side, em NY, ou Higienópolis, em SP). Andar, andar e andar… Há coisa melhor na vida?
Música e imagem para acompanhar (é fácil): entre no YouTube e peça o vídeo Bosphorus, do Brazzaville.
Ziguezagueando pelo Bósforo. Do cais em Eminönu, na Europa, em direção nordeste, para Üsküdar, bairro no lado asiático, o perfil de colinas onde se eleva um número absurdo de torres de transmissão. De lá voltando para o noroeste e para a Europa, passamos pelo suntuoso palácio otomano de Dolmabahçe, logo adiante o cais de Besiktas e, no mesmo lado, Ortaköy, quase embaixo da elegantíssima ponte do Bósforo.
De novo para nordeste, a próxima estação é Kandili, na Ásia. De lá, a vista na margem oposta, da baía de Bebek com seu ancoradouro, veleiros, uma bela promenade, tudo indicando repouso, tranquilidade e tendo, ao lado, sobre a encosta íngreme, a fortaleza construída pelo sultão Mehmet, o Conquistador, em 1451-52, Rumeli, por onde se deu a entrada à cidade, causa da mudança de era. Também nas proximidades, o nome da segunda e não menos bonita ponte sobre o Bósforo o comemora.
Em ambas as margens às vezes, bosques e, sempre, as yalis, lindas mansões otomanas de veraneio, inteiramente em madeira. Ora estão restauradas, abrigando casas, hotéis boutique e restaurantes requintados; ora estão decrépitas, parecendo querer ruir, ser levadas pela correnteza…
Na última parada, na fortaleza genovesa de Anadolu, no lado asiático, a visão do mar Negro. Porta-conteiners vão ou retornam num fluxo constante – o que levam? o que trazem? dos portos distantes de Samsun, Odessa, Yalta, Novossoriysk... No sentido contrário, no lado europeu, o perfil das torres do Levent.
Igreja de São Sérgio e São Baco. A planta centralizada dessa igreja cristã do início do séc. VI foi modelo para a Hagia Sofia. Assistimos nela um culto islamita, pois é, há muito, uma mesquita de bairro – a Kuçuk (pequena) AyaSofya Camii (mesquita). Tem um minarete. Seu restauro pela Unesco valorizou características escondidas pelas camadas do tempo. A linha de trem que a tangencia não deixa a vista correr para o mar de Mármara. Mas ele está ali, logo ao lado.
Nos jardins do palácio Dolmabahçe. O Café, ao cair da tarde, convida a apreciar as águas agora prateadas, as gaivotas de sempre, os navios e barcos que vão e vem pelo Bósforo, o inacessível Usküdar, no lado asiático da cidade, e grupos – muito elegantes – sentados nas mesinhas embaixo das árvores, conversando baixo e tranquilamente. Gestos e roupas: ocidente e oriente – simultaneamente.
É curioso o streetstyle islâmico. As jovens usam tesettür e hijabs de um modo criativo e contemporâneo enquanto as mais senhoras, por baixo do tesettür claro e leve de verão, descendo até o tornozelo, usam trajes ocidentais de grife!
Os jovens são completamente ocidentalizados. Os senhores, mais conservadores nos tons, também se vestem à ocidental.
São Salvador em Chora. Quer ver os mais belos mosaicos bizantinos de Istambul? Eles se encontram na igreja de São Salvador em Chora (campo) – o museu Kariye, quase junto às muralhas de Teodósio. São espetaculares e comoventes. Em especial, aquele de Cristo Pantocrator, no endonártex, ao centro de uma cúpula ondulada revestida de mosaico dourado. Desde o séc. IV, por estar fora dos muros de Constantino, quando foi construída a primeira ermida, recebeu o nome de São Salvador “no campo”. Porém, ela está intramuros há mais de 1.500 anos: a muralha de Teodósio, que a incluiu na cidade, foi construída do séc.V. O edifício atual, em quincunx, é do séc. XI, e a maravilhosa decoração, do séc. XIV.
Errando próximo às muralhas. Em muitas casas, o ar dilapidado fala de um abandono doído. Noutras, simplicidade e gosto duvidoso no revestimento de pastilhas, roupas secando ao sol, de uma vida dura, de trabalho e luta.
Como será ser muçulmano, viver ao lado de uma muralha romana, trabalhar no negócio de melancias, jogar gamão, observar os ônibus que despejam turistas, ser fotografado e torcer, senão pelo Beksitas pelo Fenerbahce? Indiferentes à nossa passagem – homens, muitos, caminham em direção a uma animada feira de aves.
Continuando as platitudes em um wine bar de Beyoglu, próximo a Tunel. São eles, os istambullus, o que se pode chamar de “cosmopolitas”? Convivem com a mais anciã das antiguidades e fazem, como todos nós, o prosaico do dia-a-dia. Será por isso que parecem ter um lugar fixo na contemporaneidade? Dá vontade de restaurar um desses edifícios de apartamento caindo aos pedaços e mudar para cá.
No Levent, o Kanyon. De metrô – moderno, claro, eficiente e com estações amplas, rumamos de Taksim até o Levent, bairro ao norte da cidade, de negócios. Torres recentes, entre elas a do Kanyon, o complexo mix-use de escritórios, shopping center e apartamentos, projetado por Jerde Partnership e Tabanlioglu Architects.
Circulando em volta: há arrojo, equilíbrio e harmonia no contraste entre as formas de cada uma das unidades. O passeio no shopping: agradável, porque o espaço é aberto; fluído, porque as formas são serpenteantes. Os materiais e o acabamento são impecáveis. Ele é simples e sofisticado. (Tem algo de sultanesco também).
Noutro bairro muito longe dali, Kartal, no lado asiático, junto ao mar de Mármara e de uma antiga pedreira, um concurso internacional fechado promovido em 2006 pela prefeitura para um imenso Business & Cultural Center, teve como vencedor o projeto de Zarah Hadid. O slogan: “Arquitetura radical para uma cidade antiga”.
Mezzes e chá no Imaret Suleimaniye. Parte do kulliye (complexo) da mesquita de Suleimaniye, projetada no séc. XVI pelo celebrado arquiteto bizantino, Mima Sinan, este imaret – cozinha pública que nos séculos otomanos servia comida aos pobres, é digno de reis.
A forma é de um quadrado coberto por cúpulas nos salões do perímetro e no pórtico, que os rodeia, e ao jardim. A fonte central possui motivos geométricos que imitam aqueles dos capitéis da mesquita. É hoje, um excelente restaurante que serve pratos da culinária tradicional local.
A visita à mesquita de Suleimaniye – de formas simples, grandiosas e inovadoras, é inseparável da visita às demais partes que compõem este conjunto religioso e cultural.
São quarteirões e quarteirões nos quais estão instalados os banhos públicos – o haman; escolas do Alcorão – medreses; escola de medicina, hospital, tumbas de sultões e sultanesas anexas à mesquita, um caravansaray – o tradicional “hotel” de caravanas (com forma semelhante à do imaret), o túmulo de Mima Sinan e o imaret já referido, todos rodeando a peça principal: a majestosa Suleimaniye Camii.
leia a segunda parte do artigo.
sobre o autor
Maria Cristina Wolff de Carvalho é arquiteta pela UFPR e doutora pela FAU USP. É professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP e autora, entre outros, dos livros "Ramos de Azevedo" e "Paraná de Madeira"