There are places I'll remember
All my life, though some have changed
Some forever, not for better
Some have gone and some remain
All this places have their moments
With lovers and friends I still can recall
Some are dead and some are living
In my life, I've loved them all…
“In my life”, Lennon & McCartney
Sou uma advogada arquiteturista. Viajar pela história da Arquitetura é uma paixão que adquiri em comunhão de bens por casamento de trinta anos com um arquiteto. Transito com relativa facilidade entre os grupos de amigos advogados e arquitetos e todos se surpreendem ao descobrir que para mim não é coisa de alienígena, falar em nomes como Palladio, Vasari, Borromini, Bruneleschi, Frank Lloyd Wright, Le Corbusier, afinal já fiz turismo em Vicenza, visitei o estúdio de Wright em Oak Park e caminhei pelas ruas e super-quadras de Chandigarh. Cruzei as Américas, Europa, Ásia, Oriente Médio, África, visitando as arquiteturas da antiguidade até os tempos modernos.
Minha outra paixão desde o início da adolescência foi o quarteto de Liverpool. Enquanto minhas amigas sonhavam com a Disneylândia eu sonhava com Liverpool. Há dez anos atrás, após uma pausa na visitação dos castelos da Escócia, passamos rapidamente por Liverpool. Em Londres aproveitei para cruzar a Abbey Road como tantos outros turistas. Foi só um aperitivo para uma viagem programada que se realizou agora.
Acabamos de retornar. Liverpool é uma cidade para beatlemaníacos e arquiteturistas. Para os arquitetos, o centro histórico formado ao longo do porto do rio Mersey é considerado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. O projeto de restauração da Albert Dock com a Tate Gallery Liverpool do arquiteto James Stirling é um dos melhores exemplos de aproveitamento de edificações históricas com uma arquitetura arrojada no seu interior. A última novidade foi a inauguração em julho deste ano do Museum of Liverpool dos arquitetos holandeses 3XN (Nielsen, Nielsen & Nielsen), que me fez lembrar do Museu MAXXI em Roma da Zaha Hadid pela ousadia das formas.
Vamos ao que me interessa – a cidade dos Beatles. Foi uma sensação gostosa de nostalgia, como um retorno aos meus adoráveis anos 60. A “Magical Mistery Tour” começou pelo hotel escolhido o “Hard Day’s Night” na esquina da lendária Mathew Street onde se localiza o Cavern Club. O edifício do hotel datado de 1824 (incluído nos bens arrolados como Patrimônio da Humanidade) merece uma visita à parte. Com um guia e motorista exclusivo contratado por recomendação do concierge começamos o passeio de volta para o passado. O mesmo passeio pela máquina do tempo feito por Ringo Starr no seu primeiro disco solo Sentimental journey, em cuja capa expõe a imagem do pub The Empress ao lado da modesta vila operária em que nasceu.
Em apenas um dia vi passar parte da minha juventude. Tudo registrado na câmera do meu fotógrafo-arquiteto preferido: a maternidade, a matriz anglicana, o Liverpool Institute School of Arts, onde três dos quatro personagens deram os seus primeiros passos na arte (John, Paul e George), sem contar o pintor Stuart Stutcliffe, o quinto Beatle. Mas foi nos subúrbios afastados e interligados do sul da cidade, com denominações como Dingle (conhecido hoje como Ringoland), Allerton, Childwall, Woolton e Wavertree que John, Paul, George e Ringo viveram e iniciaram uma carreira que influenciariam a juventude do mundo todo. É nesse quadrilátero de bairros operários, muito arborizado, mesclado com casas da classe média da cidade, onde se situam as residências de Lennon (251, Menlove Avenue), de McCartney (20, Forthling Road), ambas consideradas Patrimônio Nacional pertencentes ao National Trust. Menlove Ave. foi o título escolhido por Yoko Ono para o álbum póstumo de John Lennon lançado em 1986.
Também se encontram nesta área a casa n. 12 da Arnold Grove de George Harrison e a residência n. 9 da Madryn Street onde nasceu Ringo Starr, cujo conjunto de casas operárias infelizmente está em processo de demolição para abrigar um novo empreendimento imobiliário. As mensagens dos fãs em várias línguas nos tapumes da Madryn Street mostram a indignação pela destruição do pequeno sobrado.
Na música “Liverpool 8” (2008), Ringo escreveu: Liverpool I left you / Said 'goodbye' / To Madryn Street / I always followed my heart / And I never missed a beat / Destiny was calling / I just couldn't stick around / Liverpool I left you / But I never let you down. (o distrito Liverpool 8 é o bairro de Dingle).
Uma avenida comercial corta esses pequenos bairros suburbanos. É a famosa Penny Lane, com a doceira Penny Lane Cakes que aparece no filme Hard Day’s Night e a Barber Shop que inventou o famoso corte de cabelo Beatle.
Penny Lane there is a barber showing photographs…
Penny lane is in my ears and in my eyes…
There beneath the blue suburban skies…
Na Beaconsfield Road, perto da casa que foi de Lennon encontram-se os jardins do orfanato Strawberry Fields, e nas proximidades está a St. Peter’s Church onde John conheceu o parceiro Paul e fizeram as primeiras músicas. As lápides do pequeno cemitério desta capela possuem alguns nomes sugestivos: Eleanor Rigby e Father Mackenzie.
Eleanor Rigby died in the church
And was buried along with her name
Nobody came...
O Pub Ye Cracke no número 13 da Rice Street foi a minha parada favorita. É um dos mais antigos da cidade, próximo do Liverpool Institute, era o ponto de encontro de John, Cynthia e Stuart Stutcliffe – o Beatle que abandonou o conjunto para se dedicar à pintura e morreu prematuramente. Depois, passou a ser o refúgio de todos do conjunto até a mudança para Londres. Uma reprodução da pintura de Stutcliffe na parede mostra o artista com Lennon no balcão. No salão dos fundos denominado “Hall da Guerra dos Boers” aparece uma enorme pintura mural de um artista anônimo retratando uma das batalhas travadas na África do Sul contra os colonos franceses e holandeses. Os proprietários do Pub acreditam que esta pintura pop poderia ter inspirado os desenhos psicodélicos de Yellow Submarine e os uniformes da Banda do Sargent Pepper. É apenas um desejo dos donos, mas não deixa de ser uma hipótese tentadora considerando as dezenas de noitadas regadas a muita cerveja em frente ao mural.
A Falkner Street é considerada a mais bem preservada rua vitoriana do Reino Unido. Cenário de tantos filmes como Sherlock Holmes, Jovem Indiana Jones, Harry Porter e tantos outros, a casa n. 36 é conhecida como a “residência secreta de John e Cynthia”. Após o casamento sigiloso o empresário Brian Epstein emprestou seu imóvel (apartamento do piso térreo) aos recém-casados até o nascimento do filho Julian. O pub Ye Cracke, que ficava nas proximidades era um dos lugares seguros para a restrita vida social do casal neste período. A música Do You want know a secret? (1963) é dessa época.
Encerramos a noite ouvindo músicas dos anos 60 no Cavern Club. Este clube é um caso inusitado, pois todo o subsolo que era o antigo Cavern Club foi desmontado tijolo por tijolo e remontado em um terreno vizinho, depois de um grande movimento popular pedindo a sua preservação. No local original, o novo empreendimento imobiliário conservou apenas a entrada original do clube onde os Beatles surgiram.
Depois de dois dias de chuva e sonhos em Liverpool partimos de trem para a realidade de Londres. No dia seguinte, ao sair da tradicional e maravilhosa Burlington Arcade quando a chuva cessou, avistamos a Savile Row com o prédio n. 3, primitiva sede da Apple Record. O edifício de tijolos aparente estava em obras encoberto por andaimes. Olhei para a cobertura onde ocorreu o último show dos Beatles do telhado da Saville Row em 1969. Foi ali o lugar onde o sonho acabou.
sobre a autora
Alexandrina Mori é advogada, formada em Direito e Letras pela USP, foi Procuradora da Assembléia Legislativa e trabalha atualmente na Assessoria de Relações Institucionais e Governamentais da Fiesp. É casada com o arquiteto Victor Hugo Mori do Iphan.