Como sabemos, a obra de Jean-Paul Sartre é incomum e talvez mesmo ímpar na história intelectual do século passado. Primeiramente, ele não se dedicou a uma única expressão literária, tendo escrito ensaios sobre literatura e política, livros filosóficos e textos ficcionais; e, nestes últimos, se dedicou a escrever romances, novelas, contos e peças teatrais. Ora, esses dois fatos já seriam o suficiente para inscrevê-lo no Panteão dos intelectuais franceses, mas há um fato suplementar: essa obra não é apenas versátil e variada – assim como, há que se reconhecer, desigual – mas é, igualmente, extremamente vasta. E após a sua morte, que ocorreu no ano de 1980, ainda foram publicados alguns livros póstumos, como o Diário de uma guerra estranha e a sua compilação da correspondência trocada com Simone de Beauvoir e diversos amigos, o Cartas a Castor e a alguns outros (1).
O mais instigante e estranho dos seus livros publicados postumamente talvez seja o ensaio ficção intitulado La reine Albermale ou le dernier touriste, um texto redigido em 1951 no qual um turista narra a sua viagem a algumas cidades italianas, como Capri, Roma, Nápoles e Veneza. A sua filha adotiva, responsável por organizar e lançar o livro no ano de 1991, assim definiu esse texto:
“A partir de outubro [de 1951] ele passa uma temporada em Veneza, e continua a escrever, dessa vez em um caderno, medindo as suas palavras para fazer vibrar a presença da cidade. Já é um rascunho; ele toma a forma de um diário, com um tom que permanecerá nas versões ulteriores, com emoção e ironia misturadas. Inspirado pela origem italiana do caderno, ele escreve alegremente na primeira página o título do futuro livro: La Regina Albermala o Il ultimo turisto” (2).
Mas o filósofo francês não concluiu esse ambicioso projeto literário, e sabemos por seus biógrafos que ele, após esse período, teria praticamente encerrado a sua carreira de escritor ficcional. La reine Albermale permaneceu, então, em estado de manuscritos, tendo parte destes se extraviado e perdido. A forma atual desse livro (grafamos, aqui, o termo “atual” porque é sempre possível que parte desse material perdido seja algum dia recuperado) é a de um conjunto de fragmentos, que são divididos, por sua vez, em capítulos bem desiguais no que se refere à extensão, e que são relativamente descontínuos, sem que se possa perceber com clareza a sua inserção no conjunto dessa obra e nem as intenções do autor (3). Contudo, há que reconhecer o seu interesse estético assim como a sua importância no conjunto dessa obra copiosa. Ora, em La reine Albermale, ainda que aqui e acolá se possa verificar alusões à vida política italiana, já estamos bem distantes da prosa existencialista e engajada do Sartre de Os caminhos da liberdade, que, na época, possuía o perfil de um autor interessado em analisar a ação do homem em um período historicamente conturbado. E nesse texto póstumo o filósofo francês parecia mais disposto em se divertir com as palavras do que em usá-las de maneira política (4).
Mas, como já afirmamos, esse livro ficou inconcluso, e não se sabe exatamente as razões pelas quais um projeto no qual se investiu tanto tempo e energia criativa foi abandonado. Os seus biógrafos, contudo, aventaram duas possibilidades: ou bem o seu engajamento político na ocasião não lhe permitia mais a escritura de um livro tão “estético”; ou, então, a própria ambição do projeto, que mesclava vários gêneros literários – como o diário íntimo, a narrativa viática, o ensaio sobre pintura –, teria levado ao seu abandono (5). E Sartre se contentou em publicar, em vida, alguns trechos selecionados em forma de breves ensaios, como Un parterre de Capuchins, publicado no L’Observateur, em 24 de julho de 1952, e Venise, de ma fenêtre, publicado na revista Verve em 15 de janeiro de 1953 (6). Contudo, nesse livro há um capítulo particularmente interessante sobre as relações entre as viagens e as cidades, e que permaneceu inédito até 1991, intitulado Marcher à Venise: feminité et lenteur (7), no qual o autor se permite algumas digressões sobre a mais antiga maneira de deslocamento no seio das cidades: caminhar a pé; o filósofo francês lamentou, como veremos, que não se possa mais caminhar nas ruas como se fazia outrora. O objetivo desse artigo, então, é analisar como o filósofo francês apresentou essa questão, e no território de uma cidade que lhe era muito cara e que é, pela sua arquitetura e malha urbana, bastante particular, Veneza.
Além disto, nesse texto a personagem criada por Sartre emite algumas críticas em relação ao modelo de cidade que privilegia o tráfico motorizado em detrimento ao caminhar dos pedestres, e deplora o destino das cidades ocidentais, nas quais o pedestre não mais goza de sua antiga dignidade. Acreditamos que esse tema seja pertinente porque, de certa maneira, faz eco com as críticas à cidade do Movimento Moderno que se iniciaram mais ou menos no período da redação do romance inacabado, realizadas por uma série de arquitetos, isolados ou fazendo parte de movimentos ou de dissidências destes. Não trabalhamos, contudo, com a hipótese de que Sartre estivesse ao corrente dessas críticas, uma vez que ao filósofo francês não interessava as discussões sobre a arquitetura modernista e, assim, talvez as suas considerações sobre a perda do estatuto de nobreza daquele que caminhava nas cidades fossem as lamentações de um esteta passadista, muito mais que as de um intelectual realmente interessado nos destinos das cidades ocidentaisn (8).
Caminhando em Veneza
Sartre inicia o seu texto com uma observação da sua personagem, o turista francês, o qual declara que, se há no mundo uma cidade propícia à caminhada, essa cidade é, certamente, Veneza: “Antigo e solene, eu vagabundeio entre miniaturas, sem uma finalidade senão a de passear a minha dignidade pastoral de caminhante na única cidade de 400.000 almas que ainda trata o pedestre como um homem de qualidade” (9). Ele faz alusão ao fato de que, naquela malha intricada de ruas estreitas e tortuosas, de canais, pontes e praças, o homem sente-se antigo, solene, e caminha com passos, como afirma a personagem em um outro momento da narrativa, “dóricos e sumérios”. Em Veneza, então, para a alegria e o conforto desse turista, um antigo hábito faz a sua rentrée na vida cotidiana dos homens e, assim, calli e campi são vistos e descobertos pelos caminhantes na correta e contida velocidade de um homem. Ora, pergunta-se a personagem, entre nós quem ainda caminharia senão “os manequins de alta-costura e os excursionistas marselheses?” (10). Essa pergunta, bastante irônica, refere-se ao fato de que hodiernamente a caminhada tem meras funções mercantis ou terapêuticas, e que não está mais revestida da sua dignidade de antanho. A não ser, naturalmente, em Veneza, uma cidade na qual só há duas opções: navegar ou caminhar.
Como alude a personagem, a caminhada já foi tanto uma realidade cotidiana (lembremos, a esse respeito, que nas cidades romanas o homem ou caminhava ou era carregado sobre liteiras, e as carroças serviam apenas para o transporte de mercadorias) quanto o apanágio de figuras socialmente importantes, de místicos e de filósofos: “Um dia eu encontrei um São João Batista: era no Hoggar, a dois quilômetros de Tamanrasset, ele caminhava, pés descalços, e todo o deserto tinha depositado o pó de arroz nas suas pernas marrons” (11). Para o turista francês, esse homem perdido no deserto parecia, simplesmente, caminhar, sem um trajeto fixo que lhe colocasse um destino, esse homem encontrado por acaso em um deserto africano tinha a nobre dignidade perdida, “simplesmente porque ele utilizava um meio de locomoção que foi próprio ao homem” (12). Mas, com essa reflexão, a personagem apontava para algo que foi definitivamente perdido, e que é praticado por certos homens que teriam permanecidos “místicos”, em territórios isolados que somente são alcançados por eles mesmos e, naturalmente, por indefectíveis turistas franceses.
Algumas cidades, todavia, ainda permitiriam – ou obrigariam – o deslocamento a pé, e é esse, justamente, o caso de Veneza. Mas a personagem nos assevera a raridade de tal fato, uma vez que – e ainda segundo a personagem –, em quase todas as cidades caminhar seria um evento da ordem do extraordinário, e que ao pedestre, outrora soberano, teria sido reservado um pequeno espaço marginal nas ruas, a chamada “calçada”. O tráfico considerado importante, nas cidades, é mecânico: “Hoje, caminha-se nas pegadas dos carros, entre trilhos de aço, com uma velocidade premeditadamente lenta; em um universo marcado por projéteis, fazem-se pequenos deslocamentos efêmeros e inúteis” (13). Assim a personagem lamenta o destino das cidades ocidentais, pensadas, construídas ou modificadas para o tráfico de automóveis e não para a caminhada dos pedestres. Mais profundamente, isto significaria que o homem, nas cidades, não está mais em casa, posto que foi definitivamente desalojado e, entre bólidos, sente-se em um ambiente que lhe é estranho e hostil. E, conclui a personagem, em um tom pessimista, que mesmo quando caminha, o pedestre avança premido por outros tantos que partilham o seu infortúnio urbano: “Você é um corpo inerte e o seu caminhar lhe foi emprestado, apenas lhe comunicam o fato” (14).
Mas, ainda segundo a personagem, os venezianos não conhecem esse ambiente mecanizado e hostil ao homem, e o seu modo de vida corresponderia à ancestral tradição humana, na qual a cidade se confundia com a própria “casa”: “Em Veneza, os venezianos estão em casa” (15) E assim o turista, um pouco por “contaminação”, passa a se sentir, em Veneza, como se fosse ele próprio um veneziano (16). Na opinião desse turista, Veneza foi uma cidade construída para abrigar o homem no período em que as grandes migrações colocavam em risco o seu modo – romano – de vida e, dessa maneira, nunca teria sido um mero lugar de passagem a que teriam atravessado homens e povos.
“Nenhum movimento a atravessa, nenhum impulso lhe é comunicado do exterior: todas as forças terrestres vêm morrer na água, em torno dela, sem tocá-la; os venezianos singraram o universo, mas o universo jamais atravessou Veneza: no continente, a vinte léguas dela, as ruas correm, desfilam, tremem e, imperturbável, ela constrói para o seu próprio uso as suas escalas, as suas distâncias e as suas velocidades” (17).
Assim comenta a personagem as especificidades dessa cidade que teria sido fundada para a permanência e, igualmente, para o abrigo e a proteção do homem em tempos conturbados, os venezianos podem ter viajado o mundo, mas sabiam que retornariam a um porto seguro; e, mais tarde, essa mesma cidade teria se tornado um abrigo contra a “invasão” da velocidade mecânica e do trânsito motorizado que teria se tornado, a partir do século XX, o atributo inevitável das sociedades ocidentais. Ora, as ruas de Veneza teriam sido sempre “locais”, “ruas de quarteirão” que os citadinos usariam para se dirigir a outro endereço no interior da mesma cidade, mas jamais para conduzi-los ao exterior. Essas ruas “fechadas” e seguras seriam, então, vias que confortam e consolam, posto que possuem uma escala mais adequada – uma “escala humana”, diria um arquiteto – e, a esse título, não seriam propícias ao veículo motorizado, e mesmo os repeliriam.
Poder-se-ia afirmar que a eleição dessa cidade ímpar que é Veneza como o local por excelência do nobre deslocamento humano seria uma marca do intelectual reacionário que insiste no fato de que o mundo jamais deveria mudar, e que os homens deveriam ainda se deslocar a pé; ou seja, estaríamos diante da visão de um passadista para quem tudo o que ocorre no presente é sempre pior – e necessariamente pior simplesmente porque é o presente vivido, e o cotidiano raramente pode se revestir da glória dos feitos do passado – e se deve, obedecendo a uma espécie de credo, lamentar les beaux vieux temps. E se as nossas asserções acima estão corretas, é mister admitir que esse turista, diante de uma cidade cujos sinais da sua riqueza pretérita e, portanto, da sua decadência, estão em quase todos os lugares, coloca-se em uma longa tradição romântica. Assim, e nos permitindo parafrasear um poeta francês, o “tempo deveria suspender o seu voo”, e as “horas propícias, o seu curso”. Sob essa perspectiva, os canais de Veneza tornar-se-iam, para esse turista francês, o “Lago” de Lamartine, topos literário por excelência das lamentações de um devir tanto impiedoso quanto inexorável.
Contudo, Sartre jamais foi um romântico nem lamentou o inevitável curso dos anos. Aqui, trata-se de outro sentimento, bem diverso de um vago lamento em relação a um presente que se faz nada rumando sempre em direção ao futuro; nesse texto, o filósofo francês faz uma bela ode a uma cidade europeia, na qual há a marca das trilhas do homem e onde este “se sente em casa”. Nesse sentido, o filósofo francês tendeu a estabelecer uma dicotomia entre a chamada “cidade museu”, que é a cidade europeia, com os seus inúmeros monumentos que atestam a riqueza do seu passado, e a “cidade mecanizada”, cujo modelo perfeito e mais bem acabado seriam as cidades norte-americanas. Ora, se em Veneza – e tomaríamos a liberdade de estender os atributos andarilhos desse único exemplar a outras cidades europeias sobre as quais Sartre teria escrito: Roma, Capri, Nápoles e, é claro, Paris – as ruas não são simples vias de comunicação, mas abrigam todo um mundo a parte de múltiplas e diversas significações; por outro lado, as ruas das cidades norte-americanas seriam um espaço destinado unicamente à circulação, e o simples ato de ali parar e permanecer seria uma transgressão maior à vida urbana: ora, quem cometesse tal ato estaria cerceando o tráfico e, assim, a própria marcha da cidade. Uma rua nas cidades do continente norte-americano, assim como o tempo e os rios, escoa.
Em algumas cidades, os transeuntes se localizam por coordenadas precisas: em direção ao Sul, tal rua ao Norte, um bairro denominado Poniente, e muitas das ruas da cidade de Manhattan, por exemplo, são designadas por números, e não por nomes. Disto resulta uma cartografia precisa, um espaço cuja orientação obedece a uma lógica que, ainda que haja a presença do simbólico (termo como Poniente, ainda que faça uma clara alusão ao Oeste, termina, com o desenrolar dos anos e décadas, por evocar outros significados), é feita, sobretudo, para orientar os seus habitantes. Ora, poder-se-ia imaginar um ambiente no qual o motorista, parafraseando o turista francês, “sente-se em casa”, uma cidade na qual a localização existe unicamente para os veículos e os seus utentes, e que andar a pé seria apenas um eventual acidente. Mas isto está longe de ser o caso de Veneza, como observa a personagem de Sartre:
“De resto, nenhuma delas [ruas] se define pelas coordenadas habituais: quem iria pensar, em Veneza, que se sobe em direção ao Norte ou se desce ao Sul? Veneza tem as suas próprias coordenadas: a Praça São Marcos, a laguna, as Fondamente Nueve; ela ignora os pontos cardinais” (18).
A questão das “coordenadas simbólicas” de Veneza nos remete, mais uma vez, ao fato de que Veneza acabou por se tornar uma cidade indicada para o caminhar humano e, sobretudo, para que se caminhe sem um destino pré-estabelecido que agisse como uma espécie de “pano de fundo”, como, aliás, procedia o turista francês nessa cidade. Em outras palavras, trata-se de uma cidade “sob medida”, isto é, “feita para ele” – pelo menos é essa a visão desse turista –, para que ele se perca e se desoriente nas ruas estreitas e tortuosas; mas, nesse caso, estamos diante de uma “desorientação devidamente domesticada”, sem perigos nem aflições, uma vez que, em determinado momento, a vista de uma construção, de uma ponte ou de um canal conhecidos orientará o turista de volta ao ponto a partir do qual a caminhada teria se iniciado. Ora, no fundo, escreve-se sobre ruas e cidades, mas talvez seja lícito admitir que se trata de um conceito mais geral, o do próprio espaço; ao menos, é o que afirma o turista francês: “O espaço, em Veneza, não é vetorial; ele é homogêneo e neutro” (19). Pode parecer estranho, contudo, que uma cidade como Veneza, plena de particularidades urbanas e de acidentes locais, tenha o seu espaço definido como “homogêneo e neutro”; todavia, a personagem queria apenas indicar que, não levando aparentemente a “lugar nenhum”, essas ruas se bastam, e “guardam a indiferença dos desertos e do mar” (20). Isto é, de acordo com a compreensão do turista francês, um deserto ou o mar, ainda que tenham as suas particularidades, podem parecer “neutros”, no sentido em que muitas vezes não há se percebe com clareza se se está singrando ou caminhando para o Norte ou para o Sul.
A compreensão de Veneza como a cidade propícia às caminhadas por excelência estaria, todavia, incompleta, se não escrevêssemos sobre a sua antípoda no pensamento urbano de Sartre, cujo papel, como já afirmamos, cabia às cidades norte-americanas. Nas trinta e duas reportagens que o filósofo francês escreveu no ano de 1945 nos Estados Unidos da América para os jornais franceses Le Figaro e Le Combat (este último contava como chefe de redação o seu então camarada Albert Camus) as cidades norte-americanas despertaram a sua curiosidade e foram temas para a sua pena (21). Mais tarde, seis destas reportagens foram republicadas na coletânea Situations III, com os títulos Villes d’Amérique e New York ville coloniale. Nesses dois ensaios o filósofo francês narra o seu espanto com as ruas dessas cidades, que foram percebidas como sendo exatamente opostas àquelas das cidades do Velho Continente. Recorramos, então, às palavras do próprio autor: “Mas também é incorreto visitar as cidades americanas como se visita Paris ou Veneza: elas não são feitas para isto. As ruas não têm, aqui, a mesma significação que as nossas” (22). Com essas frases, Sartre realiza, com a precisão de um bisturi, uma cisão calculada: há as nossas ruas e há as ruas “deles”, possuindo uma significação e, porque não dizê-lo, funções completamente diferentes e mesmo opostas: “Na Europa, uma rua é o intermediário entre o caminho de grande comunicação e o “lugar público coberto” (23). Trata-se, portanto, de evidenciar a disparidade entre uma rua que é, simultaneamente, lugar público e via de comunicação, e outra que cumpre apenas uma única e solitária função: “A rua americana é um pedaço de uma grande rodovia. Às vezes ela se estende a vários quilômetros. Ela não incita ao passeio: as nossas ruas são oblíquas, tortuosas, cheias de desdobramentos e de segredos” (24).
Tudo foi dito nessa frase: “Ela não incita ao passeio”. Ou seja, as ruas das cidades norte-americanas foram percebidas pelo filósofo francês, na sua viagem de 1945, como um simples “pedaços de rodovia” que, certamente, comunicam diferentes pontos da mesma cidade, mas cujo objetivo primordial é levar ao exterior, ao espaço situado além da própria cidade, e esse seria o seu fim último: conduzir o homem da sua cidade a outras cidades. As ruas das cidades europeias, por sua vez, sendo “oblíquas e tortuosas” são propícias ao passeio e à caminhada, escondem e desvelam segredos, e são o espaço público no qual os homens não apenas passam, mas se encontram e têm um contato dito “pessoal”. Não deve ser por acaso que, na cultura francesa, há uma expressão que designa a rua como o espaço próprio às manifestações públicas: o “descer à rua”, tomá-la como espaço próprio ao manifestar a sua posição política ou o seu descontentamento. Aparentemente, em 1945 Sartre não viu como “as quilométricas e retilíneas ruas” das cidades norte-americanas poderiam ser tomadas por uma multidão em fúria ou em júbilo (25). No próprio romance inacabado La reine Albermale há outro capítulo em que o turista francês deplora o urbanismo norte-americano, o qual não deveria jamais ser seguido pelos europeus:
“Ah! Eu sei muito bem, sei mesmo, o que eles acabarão por fazer, o que eles já começaram: reconstruir uma bela cidade leve e nova, americana, com ruas retilíneas, com parques; não conservar senão nos squares bem floridos o essencial, alguns monumentos-testemunhas, uma amostra bem feita” (26).
Esse solene lamento faz com que retornemos às cidades europeias e a sua vocação pedestre. Percebe-se que Sartre, servindo-se da sua personagem, esse viajante-escritor, proclama uma espécie de pretensa superficialidade das cidades norte-americanas, que teriam surgido em torno de grandes empreendimentos comerciais e cujos atrativos não seriam senão “parques floridos” e squares com monumentos residuais. As suas ruas, por outro lado, foram definidas, simplesmente, como “retilíneas”, não podendo ter nem os segredos e nem os desdobramentos das ruas das cidades europeias. Contudo, é mister reconhecer que o filósofo francês, ao descrever a situação do pedestre que, nas ruas, erraria entre os espaços residuais que lhes foram reservados, e talvez tomado por uma espécie de dépaysement, referia-se já ao citadino do Velho Continente, que “hoje” caminharia “nas pegadas dos carros” e “entre trilhos de aço”. Ora, ainda que se admita que o modelo norte-americano não tenha triunfado em todos os lugares, é necessário reconhecer que o pedestre europeu não mais se encontraria em “casa” nas cidades que já foram o seu lar. O que teria, então, ocorrido? Se o pretenso modelo das cidades norte-americanas não foi implantado (admitindo que esse “modelo” tenha realmente existido), o que, então, teria triunfado e modificado o estatuto urbano do pedestre na Europa? Novamente, recorramos às narrativas realizadas por Sartre no ano de 1945 em solo norte-americano:
“Do metrô à escada rolante, da escada rolante ao elevador, do elevador ao táxi, do táxi ao ônibus e de novo ao metrô e, depois, ao elevador, aconteceu comigo, em certos dias, de ser transportado como um pacote de um destino a outro sem que tivesse que ter colocado um pé diante de outro” (27).
A mecanização dos meios de transporte seria esse fator quase universal – ao menos nos países ditos ocidentais – que teria levado à diminuição do estatuto do pedestre nas ruas das grandes cidades europeias. Ora, se o modelo das cidades norte-americanas que, como vimos, significava para Sartre a malha xadrez e as ruas retilíneas, não foi incorporado à urbanística europeia, a mecanização, por outro lado, o foi e em um grau semelhante ao do chamado Novo Mundo. Portanto, não é por acaso que a personagem de Sartre considera a cidade de Veneza como uma espécie de “santuário do pedestre”, uma vez que seria a cidade que, devido as suas vicissitudes históricas e a uma série de particularidades urbanas, teria tornado impossível qualquer transporte mecânico nas suas. É nesse sentido que aludimos alhures que o capítulo que analisamos é uma espécie de “ode a Veneza”, cidade na qual ainda se pode caminhar com passos “dóricos e sumérios”.
Últimas considerações
Escrevíamos, então, sobre o espaço: as cidades norte-americanas com ruas ditas retilíneas, e, por outro lado, as ruas de Veneza consideradas como tortuosas, e acolá se aludiram a “pegadas de carros” e a “trilhos de aço”. Contudo, em Veneza, a personagem de Sartre não faz referência a uma única dimensão, mas a duas, perfeitamente complementares em seu mundo: há, certamente, o espaço, mas há, igualmente, o tempo. A mecanização a que aludimos acima não tem consequências somente no que se refere ao espaço, mas, igualmente, ao tempo, e é justamente isto o que nos afirma o turista francês, ao perceber que, ainda que naquele momento em Veneza ele estivesse em uma “poça de tempo muito antiga”, o tempo havia se acelerado: “O futuro caminhava sobre a terra com a velocidade de passos de um cavalo, no mar com aquela de um barco de trinta toneladas; fugia-se do destino ou ia-se ao encontro dele de barco ou a cavalo” (28). Era o tempo “não mecanizado”, em uma época em que as notícias demoravam meses para chegar aos interessados, e as batalhas eram incertas e muitas vezes não se sabia, senão muitos dias depois, quem a havia vencido.
Ora, na velocidade mecanizada não somente os espaços que separam os homens dos seus destinos encolheram, mas, igualmente, os dias e as noites, assim como os prazos tornaram-se mais curtos e mais breves; e isto é, ao menos, o que afirma a personagem de Sartre: “O que dizer? O espaço e o tempo tinham uma espessura que eles perderam. Um dia tinha oitenta quilômetros; hoje tem sei mil” (29). Seja nas ruas retilíneas das cidades norte-americanas ou nos bulevares parisienses, a velocidade mecânica alterou o sentido do espaço assim como o sentido das distâncias a percorrer e, como observou o nosso turista, um único mês já é tempo suficiente para cobrir todo o espaço da Terra. Nesse sentido, as personagens de Júlio Verne já não teriam tido necessidade de oitenta dias para percorrer o mundo; viagem que era no século XIX, contudo, um feito de ficção científica.
A partir do que foi exposto acima, pode-se bem imaginar a fruição estética do turista que se entrega ao lento deslocamento naquelas ruas de Veneza que não se deixam desdobrar senão aos poucos. E, se é justo que acreditemos que a velocidade molda a percepção estética de paisagens naturais e urbanas (como, aliás, acreditava o autor de La reine Albermale), com a velocidade dos tais “passos dóricos e sumérios”, quase atemporais, a personagem buscava – em vão – a Veneza desaparecida, não a cidade do turismo de massa internacional, mas a urbe perdida em alguma “poça de tempo” com uma água estagnada que, apesar de não escoar, tampouco secava: as cidades dos patrícios e dos Doges, em um tempo imemorial em que, a partir do seu território, se cruzava, lentamente, o mundo.
notas
1
Esse título é uma evidente paráfrase ao romance de Rubem Fonseca, intitulado A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro; apesar de ser uma paráfrase, o uso desse título pareceu-nos adequado em relação às análises realizadas por nós sobre o capítulo do livro póstumo de Sartre.
2
ALKAÏM-SARTRE, Arlette. Présentation. Em: SARTRE, Jean-Paul. La reine Albermale ou Le dernier touriste. Paris: Gallimard, 1991, p. 12. Tradução nossa do francês para o português.
3
Assim Alkaïm-Sartre descreve esse conjunto de manuscritos: “O manuscrito de, pelo menos, três sequências, Nápoles, Capri e Veneza (os dois primeiros terminados em 14 de janeiro de 1952, a última ainda no canteiro no mês de junho) não foi reencontrada Por sorte, ele trabalhou com muita exigência e, mais que corrigir as páginas, ele as reescrevia sem parar. As ‘quedas’ [assim Sartre se referia às páginas que eram definitivamente abandonadas] adquiridas pela Biblioteca Nacional permitiram-nos escolher fragmentos importantes desse escrito abandonado, nas versões anteriores ao texto desaparecido – que talvez não fosse definitivo aos seus olhos”. ALKAÏM-SARTRE, Arlette. Op. cit., p. 15. Tradução nossa do francês para o português.
4
Em uma carta a sua amante Simonet de Jolivet assim ele comentou acerca desse projeto literário, então, em curso: “Eu te envio saudações de Nápoles e de Capri. Viagem tranqüila, sem histórias, feliz. Exceto que (eu estou escrevendo sobre a minha última viagem a Itália. Não essa aqui, mas a anterior) e eu estou tentando escrever sobre ‘Veneza sob a chuva’ nesse sul onde faz tanto sol”. SARTRE, Jean-Paul. Lettres au Castor et à quelques autres. Paris: Gallimard, 1983, p. 354. Destaque do autor. Tradução nossa do francês para o português.
5
Em uma entrevista concedida a um periódico alemão no ano de 1957, assim o filósofo francês definiu esse projeto literário: “A minha editora parisiense Gallimard queria um texto sobre a pintura, algo que fosse fácil de ilustrar. Eu mesmo tinha, na origem, projetos muito diferentes. Desde 1947 venho a Itália quase todos os anos; e tenho uma queda por esse país e queria lhe consagrar uma volumosa monografia, com o contexto histórico, os problemas sociais, as constelações políticas, a Antiguidade, a Igreja, o turismo, tudo devia estar ali. Depois eu percebi que o tema era amplo demais, grande demais.” Gespräch mit Jean-Paul Sartre. Em: Welt am Sonntag. Apud: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Les écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970, p. 314. Tradução nossa do francês para o português. Michel Contat, notório “Sartrólogo”, faz ecos a essas afirmações: “Nem romance, nem narrativa viática, nem diário, nem ensaio, nem estudo histórico, mas tudo isso ao mesmo tempo se destruindo em benefício de um gênero novo, eis o livro impossível e por isso ainda mais desejável, como o livro de Mallarmé que era para Sartre, nessa época, uma obsessão”. Autopsie d'un livre inexistant: La Reine Albemarle ou le Dernier touriste. Em: Item [On line] Disponível em http://www.item.ens.fr/index.php?id=172593.
6
A esse respeito, ver: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. cit.
7
Como se trata de um livro constituído por um conjunto de fragmentos que, por vezes, é heteróclito, não se pode esperar encontrar nele a coesão de uma obra acabada; nesse sentido, esse capítulo se divide em duas partes que estão relacionadas apenas pelo tema, a saber, a cidade de Veneza. Contentar-nos-emos em analisar a primeira parte do capítulo, Marcher à Venise, a segunda parte do capítulo, féminité et lenteur, será objeto de um outro artigo.
8
Um dos poucos filósofos franceses a desenvolver, no século passado, um pensamento sistemático sobre as cidades foi Henri Levebvre.
9
SARTRE, Jean-Paul. La reine Albermale (op. cit.), p. 84. Destaque do autor.
10
“Para falar a verdade, ainda se caminha. Na Europa, pelo menos. Mas essa atividade, em geral higiênica e algumas vezes clandestina, é bastante desconsiderada”. Idem, ibidem, p. 84.
11
Idem, ibidem, p. 84.
12
Idem, ibidem, p. 84.
13
Idem, ibidem, p. 85.
14
Idem, ibidem, p. 86.
15
Idem, ibidem, p. 86.
16
“Basta um céu suave, como nessa manhã, com uma luz agradável, alegre como um sorriso, para que o turista se sinta um pouco menos turista, quase veneziano”. SARTRE, Jean-Paul. La reine Albermale (op. cit.), p. 86.
17
SARTRE, Jean-Paul. La reine Albermale (op. cit.), p. 87.
18
Idem, ibidem, p. 87.
19
Idem, ibidem, p. 87.
20
Idem, ibidem, p. 88.
21
A este respeito ver: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. cit.
22
SARTRE, Jean-Paul. Villes d’Amériques. Em: Situations III. Paris: Gallimard, 2003, p. 81. Tradução nossa do francês para o português.
23
Idem, ibidem, p. 81.
24
Idem, ibidem, p. 81.
25
Já em 1945 as ruas de grandes cidades norte-americanas foram tomadas por uma multidão em júbilo: era o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa. Contudo, seriam necessários momentos absolutamente excepcionais para que os norte-americanos concedessem em “descer as suas ruas”.
26
SARTRE, Jean-Paul. La reine Albermale (op. cit.), p. 42.
27
SARTRE, Jean-Paul. Villes d’Amériques (op. cit.), p. 81.
28
SARTRE, Jean-Paul. La reine Albermale (op. cit.), p. 97.
29
Idem, ibidem, p. 97.
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Autor do livro: Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo.