Com a proximidade do fim de 2012, a cidade de Beirute passa por dias de incógnita e tensão gerada pelas constantes tranformações da região em função da primavera árabe. Essa tensão que a urbe vivencia não é novidade, sempre existiu, com a cidade desenvolvendo-se associada a incertezas políticas e conflitos de interesse no Oriente Médio.
Alheio a essa ansiedade atual, o mercado imobiliário continua em expansão, com valores cada vez mais exorbitantes e novas construções surgindo em diversos bairros. Infelizmente relíquias da arquitetura local vêem sendo demolidas para dar espaço a novos empreendimentos, um modelo já conhecido mundo afora. A maior transformação acontece no centro da cidade, principal canteiro de obras do período pós-guerra civil e que é motivo de muita polêmica junto a sociedade. Apesar de ter sido uma zona altamente bombardeada, especula-se que a empresa a cargo do projeto – Solidere, antes uma empresa pública e agora privada – colocou abaixo cerca de oitenta e cinco por cento dos edifícios, muitos sendo prédios importantes ou sítios arqueológicos que faziam parte do patrimônio otomano da região.
O fato curioso é que Beirute, vítima da política aleatória de seu planejamento urbano que vem descaracterizando diversas partes da cidade, vítima também dos anos de guerra civil aonde muitas construções vieram abaixo e outras ainda hoje seguem como esqueletos; a cidade é agora vítima dos Star-Architects e outros famosos. Alguns projetos começam a serem inaugurados ou tomam forma, entrando para a identidade da urbe com assinaturas de alguns dos profissionais mais renomados mundialmente.
Sobreviventes e esqueletos
A cidade perde seu charme a cada dia e descaracteriza-se com o descuido dos arquitetos que projetam por aqui. A atuação dos estrangeiros é constantemente polêmica devido a falta de indentidade dos projetos, independentemente de avanços arquitetônicos que os mesmos propõem. É sempre difícil julgar, pois devido ao mundo globalizado de hoje, profissionais de diversos países têem quase que livre acesso para atuar em qualquer mercado. Entretanto, em Beirute, a presença de muitos destes estrangeiros foi imposta pela empresa Solidere, que é responsável pelo planejamento da reestruturação do centro da cidade. Por ter adquirido praticamente todos os lotes desta área, a empresa impõe aos inquilinos uma lista de arquitetos libaneses e estrangeiros a serem selecionados.
Beirute mantém amostra os resquícios da guerra civil, prédios atacados e bombardeados se mesclam com as transformações urbanas e entram em sintonia com o entorno. A arquitetura mantém viva a memória da guerra e do patrimônio urbano, porém a tendência é a sua diluição em benefício de uma ”nova” arquitetura. Algumas relíquias resistem apesar do apetite faminto das imobiliárias, que por meio de manobras políticas, alteração de regulamentações e brigas judiciais restringem e dificultam as reformas de algumas construções, tais como os hotéis Saint George e Holiday Inn. Outro caso é o do antigo cinema, também conhecido como ”The Egg”, que com sua forma ovalada em concreto armado, ainda se mantém como uma referência do modernismo local desde sua inauguração em 1968, todavia a sua preservação é incerta.
Os projetos
Hoje em dia a maioria dos projetos de grande expressão concentra-se num raio de um quilômetro a partir do centro da cidade, muitos destes envolvendo “Star-architects”. Entretanto a atuação de arquitetos estrangeiros renomados no Líbano vem de longa data. Alguns dos pioneiros foram Alvar Aalto e Alfred Roth com o projeto para o Centre Sabbagh, em 1966. O empreendimento continua em pleno funcionamento e suas fachadas permanecem contemporâneas em meio a uma diversidade de estilos ao redor. Em meados da década de oitenta ficou pronto o Centre Sofil, fruto da parceria entre os americanos do Skidmore Owings & Merrill com o libânes Pierre Neema. Este conjunto se mantém atemporal e destaca-se por suas fachadas corridas e seus terraços jardins extensos e escalados, uma prova que a arquitetura moderna esboçava um pouco de sustentabilidade. O empreendimento serviu de referência a muitos outros projetos, tanto pela tipologia quanto pela linguagem. Até Oscar Niemeyer esteve aqui perto, com o projeto da feira internacional Rashid Karami, na cidade de Tripoli, infelizmente inacabado devido a guerra civil.
A partir do novo plano diretor da Solidere para o centro, um dos primeiros projetos a ser concluído após a guerra foi a torre Marina Towers, em 2008, projeto de Kohn Pedersen Fox Associates. O projeto fica de frente para o mar e é a principal referência do skyline de Beirute – o segundo mais alto do país. É um projeto contemporâneo e arrojado, ilustrando bem o recorte pré e pós-guerra civil, aonde a arquitetura passou a ser mais internacional em aparência e programa também. Logo ao pés da torre foi construída a baía de Zeitouna, desenvolvida por Steven Holl em parceria com o libanês Nabil Gholam. Eles projetaram restaurantes e lojas ao longo do passeio da marina e a nova sede do Beirut Yacht Club. A partir da rua, plataformas com jardins e espelhos d´água escondem o burburinho e servem de mirante para as docas dos barcos, criando níveis articulados e diversos acessos com rampas e escadas a marina, que ao fim se estendem formando a cobertura-jardim do yacht club. Nabil Gholam também se associou como parceiro local ao espanhol Ricardo Bofill na concepção da Platinium Tower, hoje o prédio mais alto do país e que se situa na faixa que cerca a baía de frente ao mediterrâneo. É um prédio rígido e monótono para a enseada e que ilustra a falta de identididade em alguns projetos contemporâneos.
Logo ao sul da marina e num segundo grupo de lotes, Herzog & De Meuron e Norman Foster têem seus empreendimentos residenciais lado a lado e em fase inicial de construção, chamados de “Beirut Terraces" e “3 Beirut” respectivamente. O desafio do “Beirut Terraces” é conseguir materializar a proposta de residências cercadas por jardins suspensos, apartamentos arejados e boa utilização dos estimados seis metros de varandas. Já o projeto de Foster – que não poderia faltar – nasce com a expectativa de um projeto inteiramente verde na cidade, e com grande atenção ao piso térreo, propondo uma integração de rotas e a livre circulação de pedestres.
Uma das atrações da cidade hoje são os Souks – tradicional bazaar – que foram revitalizados e chamam atenção devido a seus diversos blocos, lojas de grife e projeto arrojado de profissionais como Rafael Moneo e Kevin Dash. O projeto tem uma essência completamente diferente dos tradicionais bazares orientais ou árabes, sendo um shopping mall de luxo parte a céu aberto e com um certo requinte de acabamentos, porém sem a vivacidade, complexidade e mistura de cores, texturas e aromas que caracterizam tais locais. Alguns novos blocos ainda estão em estudo e incluem profissionais como Richard Rogers e Zaha Hadid. Ao redor dos Souks encontram-se mais dois projetos com pedigree. Ao sul o “The Landmark” leva a assinatura de Jean Nouvel para um complexo multiuso e uma torre. Já a leste Arata Isosaki criou um prédio residencial com fachada no estilo origami.
Situada em um terreno de frente para o mediterrâneo, a Universidade Americana de Beirute deixou de lado sua identidade clássica para apostar em intervenções contemporâneas. Os primeiros reflexos foram no complexo esportivo do escritório VJAA, pronto em 2008, e na escola de negócios Olayan, projetada por Machado & Silvetti, pronta em 2009. Os dois são exemplos de novos edificios que se mantiveram dentro do contexto da universidade. Porém, a maior polêmica gira em torno do Instituto Issam Fares, projeto de Zaha Hadid que está em fase final. O prédio traz o arrojo e linhas peculiares aos projetos de Zaha, porém provoca uma assintonia com o entorno do campus.
O 486 Mina El Hosn talvez seja uma das propostas mais audaciosas e criativas. A proposta da LAN inclui uma torre principal com partes de suas fachadas refletindo especificamente certos monumentos, apresentando uma recostituição visual da cidade.
Os projetos continuarão brotando e novos arquitetos sendo importados, daqui a alguns anos Beirute saberá se conseguiu implantar um modelo de sucesso como Barcelona – que mesclou bem a preservação do patrimonio com intervenções pontuais de profissionais estrangeiros –, ou se seguirá como mais uma cidade repleta de estrelas como Dubai e Xangai, ficando sem identidade e descaracterizada pelos excessos.
sobre o autor
Leonardo Castello é arquiteto e urbanista graduado pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro (2002). Também foi docente da mesma instituição entre 2006 e 2007 na qual lecionou a disciplina “Projeto de Arquitetura”. Ao final do ano 2000 teve sua primeira experiência de trabalho fora do país ao residir e trabalhar na cidade de Barcelona, Espanha. A partir daí começou a focar sua carreira fora do Brasil, o que o levou a China em 2005, aonde passou um ano trabalhando em diversos projetos de média e larga escala, em sua maioria complexos residenciais, comerciais e de uso misto. Atualmente reside na cidade de Beirute, Líbano, aonde trabalha para a empresa Dar Al-Handasah Shair and Partners, uma consultoria multinacional de planejamento, design e implementação de projetos e que possui destaque internacional com sua atuação no Oriente Médio, África e Ásia desde 1956.