Nossas avenidas, convertidas nos últimos tempos em espaços de desfile e lutas, são no cotidiano, outras. Junto com pontes, passarelas e anéis viários são espaços inertes de circulação expressa. Lugares avessos à convivência, onde pouco se experimenta, e muitas vezes lamenta, o contato com o outro, esbarrado com violência em meio à multidão. O temor ao contato com o estranho se converteu em regra de conduta nos espaços da cidade, alimentando uma antipatia ao próximo que está introjetada em todos nós.
Mas o que vemos nas manifestações populares são situações únicas em que o temor ao contato consegue ser transformado no seu oposto. Seja em grupos de caras-pintadas, ou embaixo de bandeiras coloridas, imersos em um mar de gente simpatizante da mesma causa, experimentamos uma sensação de integração (1). Pouco importa se falta ar, se se transpira. É exatamente a sensação de multidão que se quer experimentar. Chocar-se com o vizinho só perturba temporariamente o ritmo. O espaço se negocia instantaneamente, com astúcias invisíveis e simpáticas – a la Michel de Certeau (2). A sensação compartilhada nas ruas é de amizade, mesmo entre estranhos, uma alegria entusiasmante e inédita (3), cuja potência pode ser sentida no seu revés – o ódio e a forte reação popular desencadeados pela repressão violenta aplicada ao movimento.
Que não se menosprezem os "sem-causa", sem partido, todos os indignados que tomam nossas ruas. Poderá sua indignação se tornar transformação de fato? Tomara. Seu ímpeto de sair às ruas e seguir a pé, tomando vias e espaços restritos ao automóvel, deve ser celebrado. Revela um forte desejo de sentir a cidade com o próprio corpo, vê-la de perto, estabelecer contato direto. Seu lema singelo é um grito de apropriação urbana, e ecoa alto nos paredões de concreto dos espaços inóspitos de nossas cidades:
— Vem pra rua, vem!
notas
1
Ver CANETTI, Elias. Massa e poder. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
2
Ver CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Rio de Janeiro, Vozes, 2008.
3
Ver CHÊNE, Aurelie. Percepções corporais do mundo urbano. in JEUDY, Henri P. e JACQUES, Paola B. (org.). Corpos e cenários urbanos. Salvador, Editora da Universidade Federal da Bahia, 2006.
sobre a autora
Juliana Monferdini é mestre pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, arquiteta e urbanista pelo IAU EESC-USP.
sobre o fotógrafo
Ed Reis é médico psiquiatra e fotógrafo amador.