Há 30 anos, o discurso de um curador não influía muito na escolha dos artistas estrangeiros em bienais internacionais que dependiam dos países participantes. Hoje, comissários e curadores estrangeiros não só se mobilizam para seguir à risca as linhas preestabelecidas pelas instituições, como admitem a mundialização, chegando até mesmo a negar a representação de seus países como uma “unidade hermética nacional”. É o caso da Alemanha, nesta Bienal de Veneza, que troca de pavilhão com a França e, além disso, apresenta os trabalhos de um chinês.
Vantagem ou desvantagem, o insucesso de uma Bienal não pode mais ser justificado, como antes, por envios inadequados. Assim, a 55ª edição da Bienal de Veneza, fruto absoluto do olhar de Massimiliano Gioni, se divide, como a precedente, em duas partes principais: de um lado, uma exposição “de autor”, que conta com 150 artistas de 38 países e, de outro lado, 88 pavilhões nacionais, alguns recém-criados, todos em acordo com os preceitos do “Palácio Enciclopédico”. A isto se juntam 47 “eventos colaterais”, também aprovados pelo curador, alguns dos quais talvez mais importantes do que as exposições no Arsenale dos “Giardini”.
Gioni debruçou-se principalmente sobre as imagens e o imaginário, inspirando-se nos institutos científicos da Renascença, que queriam juntar a bicharada empalhada e os fósseis do mundo conhecido. Não é difícil imaginar que ele tenha conseguido, de fato, apesar de alguns disparates, uma certa unidade conceitual dentro desta “lógica da acumulação” que marca a exposição.
Mas as suas ideias não são originais e o parti pris, embora bastante afirmativo, é um pouco desonesto. Não é novidade o interesse e a paixão que as criações externas à arte exercem sobre os artistas: este é, até mesmo, um dos princípios fundamentais da arte do século 20, inúmeras vezes recuperado em centenas de exposições, desde os anos 1960 até hoje. Depois das Bienais de São Paulo dos anos 1980 (Art Brut na 16ª, A Grande Coleção e o gabinete de curiosidades na 19ª), da mostra Les Magiciens de la Terre, entre outras mais recentes, a cenografia veneziana não é mais do que um atrasado remake.
Também não há nada de inovador no “revival” como ponte de ligação entre o presente e o passado. Nem se for o “revival do revival”, como é o caso. Algumas de nossas bienais e várias Documentas nos anos 1970 e 1980, a partir da que foi organizada por Rudi Fuchs, utilizaram explicitamente a mesma estratégia. Sem falar nos próprios movimentos estéticos “neoclássicos” pós-modernos, que floresceram na pintura e arquitetura daquela época.
A “retromania” geralmente se instala quando o presente é incompreensível e insatisfatório. As “curiosidades” também. O problema é que quando se olha o passado ou quando se observa uma vitrina de raridades, fica-se de fora.É por isso que, ao contrário da última Documenta, na Bienal de Veneza o espectador raras vezes é partícipe. Diante dos objetos, instalações, pinturas e vídeos que compõem esta “enorme peça de teatro que deve dizer o seu tempo”, como afirma o curador, o público é apenas testemunha da procura individual dele e espectador remoto de uma representação crítica e sombria da sua época.
De camarote, e não raro com perplexidade, assistimos a um certo oportunismo. Vemos o jovem gladiador Gioni escondendo-se por trás da armadura do enciclopedismo, pois na enciclopédia não há escolha nem partido. Tudo entra e tudo vale. De par com a “globalização”, ele empunha obras de autodidatas, anônimos e “não artistas” da mesma maneira como o faz com os trabalhos de “profissionais” reconhecidos e vedetes do mercado.
No seu “Palácio” habitam igualmente, sem qualquer hierarquia, arte e não arte, erudição e primitivismo, obsessão e sistema, delírio e ordenação, loucura e cultura. Ocorre também muita coleta de pequenos gestos cotidianos cooperativos decorativos, o que parece ser uma nova moda ou academismo. Há até mesmo o “antienciclopédico”, obstinações que nada têm a ver com os domínios do conhecimento. Além de algumas obras francamente execráveis, como as de Pawel Althamer, que não sabemos o que fazem lá. O anedótico impera.
O já muito visto e dito sobre “energia cósmica”, “enraizamento da identidade” e “simbologia esotérica” reaparece em abundância. Tanto no pavilhão da Itália, que se abre com a máscara mortuária de André Breton, como na mostra que se encontra no Arsenale, que começa com a maquete do autodidata Marino Auriti (1891-1980) que dá o nome à Bienal.
Veem-se desenhos da Melanésia, estandartes vodu, Bispo do Rosário, pedras da coleção de Roger Caillois, o Livro Vermelho de C. G. Jung, Rudolf Steiner, fundador da antroposofia, Aleister Crowley, místico e guru, Augustin Lesage, o mineiro espírita, Anna Zemankova, a visionária. Isso sem falar em centenas de obras e na seção entregue a Cindy Sherman, onde estão os “grandes antigos” do surrealismo.
O melhor encontra-se nos pavilhões nacionais. Porém, em sua totalidade, a Bienal fala apenas de história e memória. E revela paradoxalmente, no final, que o verdadeiro saber humano universal não se forma a partir de uma coleção exaustiva e aleatória de objetos. As pessoas o carregam (e decantam) dentro de si em virtude de suas escolhas e experiências. Jamais graças a enciclopédias.
nota
NE
Publicação original do artigo: LEIRNER, Sheila. Lógica da acumulação. O Estado de São Paulo, São Paulo, caderno 2, 18 jun. 2013, p. C10 <http://sheilaleirner.com/textos/Caderno2/Bienal-de-Veneza2013_SL_Caderno2.pdf>
sobre a autora
Sheila Leirner é curadora, jornalista e crítica de arte. Foi curadora geral de duas bienais internacionais de São Paulo (1985 e 1987).