O prédio da Bienal de São Paulo é difícil de abarcar. Se tomar a distância para o seu enquadramento mais suscita um voo de pássaro; é possível porém sondar os seus limites internos, simular com as mãos entre o rosto e o vidro escuro uma câmara que alinhe o olhar e atenue o reflexo. Lá dentro, pessoas operam instrumentos, alguns dos quais lançam salvas de faíscas que caem de diferentes alturas, relativas aos andaimes que erguem esses seres apartados uns dos outros, e nunca chegam a tocar o chão. Na paisagem mecânica, quase de cinema mudo, quem atravessa com passo apertado o salão infinito o faz por fazer; se entra por uma porta, sai por outra, não a correspondente, mas a do lado oposto. Todo movimento inaugurado nessa oficina tem um destino circular, coincide montagens e desmontagens de feiras sem fim e exposições de tudo, de tratores a livros, de modelos a peças de aviões, de computadores a fertilizantes, de piscinas de plástico a ferramentas de solda, de aves a obras de arte. Um mundo próprio, ainda mais destacado do verde do parque: é esse seu ponto neutro no tempo, que liga o preexistente ao que vem.
Adentrar o edifício durante esse período desencanta esta imaginária visão distanciada, ao ponto em que os mesmos elementos de antes estão concatenados agora em uma orquestração de acasos e iminências – o próximo estrondo sempre à espreita. A dimensão do espaço é dada pela profundidade em que sucede o som e cada um revela a qualidade física que algum gesto, fortuito ou intencional, encontrou. As ações recobram suas finalidades, no convívio, olhando, discutindo, atendendo ao telefone, carregando biombos. O oposto exato do abatimento fim-de-festa, mas não exatamente a festa. Ruídos acidentais e ruídos perseverantes. Atmosfera onde é iminente uma conflagração entre os ecos perdidos e o alarme. O tempo ganha caráter de contingência: faltam poucos dias para abrir a exposição.
Escolhido como curador da 31ª Bienal de São Paulo, o escocês Charles Esche convidou os espanhóis Nuria Enguita Mayo e Pablo Lafuente e os israelenses Galit Eilat e Oren Sagiv para dividirem consigo as tarefas envolvidas na realização desta que conta entre as mais significativas mostras periódicas de arte, ao lado da Bienal de Veneza e da Documenta de Kassel. Sua abordagem da prática da curadoria – que determina sua atividade junto ao público e os processos institucionais que integra, por exemplo, como responsável pela editora Afterall e diretor do Van Abbemuseum, em Eindhoven, Holanda – tem um sentido de mudança social através da arte. Dividindo uma casa em São Paulo, a equipe estrangeira somou as presenças de Luiza Proença e Benjamin Seroussi, que passaram a integrar o grupo, e das equipes permanentes da Fundação – educativo, comunicação e Arquivo Bienal –, atentos à expectativa da cidade quanto ao acontecimento, que costuma trazer um sumário amplo e atual da produção e, não raro, uma querela ou outra. Buscaram desenhar um quadro conceitual generoso para acolher a pluralidade do público incentivando modos flexíveis de interação e se colocaram em contato com as configurações socioculturais específicas de diferentes cidades do Brasil organizando conversas e encontros abertos nesses lugares. “A intenção desses encontros é perguntar sobre as demandas locais, ao invés de levar um discurso da Bienal ou da curadoria”, disse Pablo Lafuente em um dos encontros do denominado Laboratório de Gestão – Processos e Ferramentas (1).
A curadoria é sensível às transformações em curso no mundo – nos campos do trabalho, do comportamento, da arte etc. – e constata não estarem claras ainda as novas formas de participação, de produção e de organização, afirmando o poder de investigação da arte e, assim, o seu papel de intervenção na realidade (2). Coloca em evidência o desejo dos indivíduos por compartilharem dos processos de gestão, dos processos políticos, tendo acompanhado de perto as particularidades e insuficiências da esfera pública em São Paulo, o bloqueio territorial à periferia da cidade, a exclusão de grande parte da população dos benefícios da infraestrutura, dos serviços e bens culturais, e o isolamento do próprio Parque do Ibirapuera (3). O problema da representação é visto em sentido amplo: “A 31ª Bienal está sendo gestada em tempos marcados pela crise de representação política. Os protestos e os rolezinhos, por exemplo, demandam novas relações políticas e novas estruturas na produção cultural” (4). A respeito das manifestações populares, cujo ápice foi em junho de 2013, Charles Esche diz: “como mantermos essa pluralidade, essas demandas, que na verdade sempre fluem, como não organizá-las em um partido ou movimento únicos? (...) Não que precise ser articulado dessa maneira, mas é mais uma pergunta, e menos uma resposta ou uma reivindicação, o que está presente nesses protestos” (5). Arte e política compartilham hoje mais intensamente da mesma semiosfera, da mesma rede de informação passível de contaminações e atravessamentos imprevistos. A Bienal de São Paulo sempre sofreu pressões, seja por questões pontuais, seja por sua surpreendente permanência em uma cultura marcada pela descontinuidade. É possível que seu discurso nunca tenha se colocado tão distante dos quadros teóricos próprios da história de arte. A ampliação de seu espaço de legitimação para um campo simbólico mais flutuante coloca os problemas do engajamento social e da prática artística em uma perspectiva compartilhada que requer a reformulação de arranjos e papéis institucionais.
Desde a 29ª, o projeto permanente do Educativo Bienal organiza atividades relacionadas às exposições, mas que extrapolam os seus períodos de duração e suas localidades, tendo construído vínculos com escolas e comunidades pelo país. Em atividade contínua, pôde adquirir um papel preponderante muito próximo da curadoria, influenciando tanto na lista de artistas convidados quanto em seu discurso geral. O material distribuído a escolas, comunidades e à imprensa pelo educativo demonstra bem essa proximidade dos pontos de vista da abertura para compreensão do outro e da experimentação. Para esta edição, foi desenvolvida uma Caixa de Ferramentas composta por dispositivos materiais e/ou conceituais de estímulo à interação com as obras ou projetos e de desdobramento de seus sentidos para o mundo. Essas atividades têm como parâmetro a abordagem pedagógica da Escola sem muros, que propõe a ética da coletividade através da discussão a partir de pequenos grupos, o que auxiliará a equipe a enfrentar o problema prático da preparação das visitas guiadas a um sem-número de turmas escolares, de lidar com o público infantil e adolescente e de construir modalidades de fruição junto àqueles cujo repertório não é o da arte institucional. A sinergia entre a curadoria e o educativo amplia a ênfase nos chamados usuários ativos em detrimento do preciosismo e da elitização que permeiam o campo artístico. Como (...) coisas que não existem, reticências permutáveis por falar de, lutar por, aprender com, imaginar, pensar em, e assim por diante, é o título da Bienal, e as lentes elaboradas para se aproximar dela marcam claras diferenças em relação aos encaminhamentos de Bienais anteriores.
Os princípios mais importantes colocados pela curadoria, ao mesmo tempo abertos e concatenados, revelam porosidade. É deslocado o lugar do artista enquanto unidade de concepção e privilegiada a sua inserção junto a outros criadores – daí a noção de projetos e não de obras –, frequentemente em posições de resistência às disparidades sociais e à opressão. O que conta são as formas de operar, as estratégias, as ações, a maneira de materializar e de comunicar os seus processos permanentes: “[São] pessoas que trabalham com pessoas que, por sua vez, trabalham em projetos colaborativos com outros indivíduos e grupos, em relações que devem continuar e se desenvolver ao longo de sua duração e talvez mesmo depois de seu encerramento” (7). O programa também liga a imaginação às noções de conflito e de transformação, compreendendo a arte como “força disruptiva”, criadora de “[s]ituações em que o rejeitado pode se tornar aceito e valorizado. A transformação pode ser entendida como transgressão, transmutação, transcendência, transgênero e outras ideias transitórias que agem contra a imposição de uma única e absoluta verdade (...). Ela [a virada] parece estar tentando sair dos parâmetros estabelecidos a fim de dar espaço à complexidade e à flexibilidade, sem receio de conflitos e enfrentamentos (...). As dinâmicas geradas por esses conflitos apontam para a necessidade de pensar e agir coletivamente, modo mais poderoso e enriquecedor do que a lógica individualista que nos é geralmente imposta” (8).
Tal ponto de virada, como chamado pelos curadores, estará manifesto nos próprios projetos escolhidos, que envolvem questões existenciais, espirituais, como mudanças de gênero, conversões religiosas ou confrontações da manipulação ideológica pelos meios de comunicação, utilizando-se de outras mídias como modo de inversão desse paradigma. A maior parte dos trabalhos não busca ser autossuficiente ou aparentar resolução; trazem tópicos de seus contextos originários e das pesquisas envolvidas, que passam pelas ciências (antropologia, sociologia, biologia, etnografia), por arquivos, pelo que traz a evidência de sua historicidade. A Bienal proporcionará uma dinâmica social baseada na imaginação compartilhada para a transformação do estado de coisas. De modo particular, recolocará um problema já muito visitado, também em algumas edições anteriores, e caro tanto a artistas quanto ao público: o dos limites entre arte e não-arte, sem deixar de demonstrar certo desprezo pela dicotomia em si. A ênfase na aproximação dos itens e assuntos da cultura e de seus modos de circulação em nome dos predicados do processo e da coletividade traz expectativa quanto aos paradeiros da resistência da forma, que continua a solicitar reflexividade crítica. Analogamente, dado o caráter discursivo, muitas vezes documental de alguns dos trabalhos, não deixa de provocar inquietude como ficará a disposição das noções sugeridas – coletividade, processo, conflito, imaginação, ação e indeterminação, por exemplo –, enquanto atributos sensíveis e ativos nos espaços do edifício, ou representações deles. O piso térreo ficará aberto, e certamente irá reverberar o vazio, as carências, o imprevisível, e as tensões entre as diversas escalas em que consiste o nosso público.
[translation: Caio Guerra]
notas
NE – Este texto faz parte da cobertura da 31aBienal de São Paulo por Vitruvius e Irmãos Guerra. Agradeço às contribuições de Nuria Enguita Mayo, Julia Bolliger Murari, Benjamin Seroussi e Charles Esche.
1
LAFUENTE, Pablo. Apud EDUCATIVO BIENAL. Seminário Laboratório de Gestão: processos e ferramentas. São Paulo, Blog Educativo, 30 jun. 2014 <http://www.bienal.org.br/post.php?i=1002>. Acessado em 22 de agosto de 2014.
2
SEROUSSI, Benjamin; ESCHE, Charles; EILAT, Galit; PROENÇA, Luiza; ENGUITA MAYO, Nuria; SAGIV, Oren; LAFUENTE, Pablo. Trabalhando com coisas que não existem. In Catálogo da 31ª Bienal de São Paulo (“Livro”), São Paulo, Fundação Bienal, p. 52-57.
3
NOBRE, Ligia. A cidade e seus espaços: múltiplas mediações. São Paulo, Website Oficial 31a Bienal de São Paulo, 28 maio 2014 <http://www.31bienal.org.br/pt/post/737>. Acessado em 22 de agosto de 2014.
4
LAFUENTE, Pablo. Op. cit.
5
MENEZES, Caroline; ESCHE, Charles. How to be Contemporary? An interview with curator Charles Esche. Nova York, Studio International – Visual Arts, Design and Architecture, 05 set. 2013 <http://www.studiointernational.com/index.php/charles-esche>. Acessado em 22 de agosto de 2014.
6
SEROUSSI, Benjamin; ESCHE, Charles; EILAT, Galit; PROENÇA, Luiza; ENGUITA MAYO, Nuria; SAGIV, Oren; LAFUENTE, Pablo. Introdução. São Paulo, Website Oficial 31a Bienal de São Paulo, s/d <http://www.31bienal.org.br/pt/information/754>. Acessado em 22 de agosto de 2014.
7
Idem, ibidem.
8
Idem, ibidem.
sobre o autor
Bruno Schiavo é arquiteto e mestrando pela FAU USP, editor-assistente do portal Vitruvius.