Visito uma ala desativada do Complexo Hospitalar do Juquery, popularmente conhecido como “Manicômio do Juquery”, em uma situação muito especial. As dependências servem de locação para a gravação do clipe Dr. Herman, música da banda Mel Azul, com direção dos meus filhos Helena e Caio, os Irmãos Guerra (1).
Enquanto a equipe de filmagem prepara a iluminação, a arte da locação e a indumentária de atores e figurantes, adentro às dependências, percorro corredores sombrios e gelados. Conforme penetro em locais mais longínquos, as paredes e coberturas ficam cada vez mais emboloradas e a pintura mais descascada. A cada porta que abro, uma surpresa: espaços vazios ou abarrotados de objetos arruinados, papéis, pastas e arquivos de papelão empilhados, móveis decrépitos e quebrados, o chão com sujeira de todo tipo, tamanho e odor... Alguns objetos utilitários – máquinas de escrever, poltronas e cadeiras, fichários, macas e camas articuladas etc. – parecem aguardar quem os use, dispostos que estão em situação corriqueira, banal, cotidiana. Em outros lugares, orifícios de instalações diversas sugerem que equipamentos foram arrancados e transferidos de forma abrupta.
As portas são em si de um encanto especial. Algumas estão obstaculizadas por sarrafos de madeira e lançam a dúvida sobre misteriosas presenças ou ausências por detrás delas, e convocam histórias de silêncios pungentes e gritos estridentes. Outras, com visores de vidros quebrados ou desaparecidos, permitem o enquadramento de salas enormes ou saletas diminutas, cada uma com iluminação própria, diferenciada. Nenhum cômodo está no breu, há sempre uma luz que se infiltra pelas janelas obstaculizadas por fechamentos improvisados ou pelos vidros com camadas de poeira. Também pelas frestas das portas fechadas escoa a luz do dia enfraquecida pelos múltiplos rebatimentos em paredes e divisórias.
Os sinais da presença de vida surgem indiretamente, sugerem um apressado abandono recente: as luzes de holofotes de sala cirúrgica ainda acendem, a água corre quando de aciona a descarga dos vasos sanitários ou se abre as torneiras das pias, ao menos uma prateleira contém frascos e embalagens de remédios... Inscrições manuais nas paredes revelam não só a vida de pessoas hoje ausentes, mas igualmente o improviso da instituição: “Favor preservar nossas poucas ferramentas. Grato”; “respeitar o seu próximo qdo o mesmo estiver próximo obrigado”. Palavras da ordem que sobreviveram, nada das palavras dos que ali sofreram. Está ausente dentre outras tantas a frase “Eu estive aqui, sofrendo”.
nota
1
Mel Azul - Dr Herman. Clipe oficial. Banda Mel Azul. Direção Irmãos Guerra. Roteiro e produção: Irmãos Guerra Filmes. Co-produção: Fulano Filmes. Direção de produção: Silvana Romano Santos e Nayara Garbelotti<www.youtube.com/watch?v=Sh8dCkZ-H5s>.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.