Morar dois anos em Chicago parecia ser um tempo razoável, porém, ao me deparar com a riqueza arquitetônica da cidade, percebi que dois anos seriam pouco para visitar tudo o que gostaria. Para quem tem qualquer relação com arquitetura, ao se deparar com as frases “Less is more” e “God is in the details”, imediata é a associação a Ludwing Mies van der Rohe, um dos grandes mestres da arquitetura moderna. Por certo, foi em outubro de 2014 em minha visita a Residência Farnsworth que essas frases combinadas fizeram sentido para mim em sua íntegra. Localizada nos Estados Unidos, na cidade de Plano, Illinois – cerca de uma hora de carro de Chicago - e às margens de Fox River, a Farnsworth House, também conhecida como Casa de Vidro de Mies van der Rohe, é um dos edifícios mais icônicos do século XX e considerada por alguns críticos a obra máxima de Mies. Foi nela que o arquiteto conseguiu colocar em prática muitos dos conceitos nos quais trabalhou durante sua carreia, tais como: beleza, cristalinidade, rigor, ordem, regularidade e precisão.
Para chegar a casa é necessário uma caminhada de quase um quilômetro orientada pelo próprio guia do tour a partir do centro de visitantes. Conforme nos aproximávamos, ainda sem ter qualquer visibilidade da casa, era possível ver em algumas árvores as cores do outono. Sem dúvida, em climas temperados, o outono é minha estação favorita, por isso durante todo o percurso me encantei com as cores das árvores que compunham o caminho até a residência. Ao chegar na casa minha primeira impressão marcante foi a interessante integração da natureza e sua beleza com a beleza da residência, ideia também explicada por Mies: “A natureza, também, deve viver sua própria vida. Nós devemos estar conscientes em não rompê-la com a cor das nossas casas ou equipamentos internos. Ao contrário, nós deveríamos atentar a trazer natureza, casas e seres humanos a uma maior unidade.”
O tour guiado tem em média 60 minutos de duração com cerca de três pausas ao redor da casa e três pausas feitas no interior da residência. A primeira pausa é feita praticamente em frente a residência, a segunda na lateral e a terceira no acesso da residência logo após subir os degraus. No decorrer dos 60 minutos é explicado desde como Mies e Edith Farnsworth se conheceram ao projeto de mitigação de enchentes.
Mies e Edith Farnsworth se conheceram no final de 1945, provavelmente em um jantar. Especializada em nefrologia, Farnsworth possuía um terreno às margens do rio Fox e gostaria de construir uma residência de fim de semana. Ao conhecer Mies, ela perguntou ao Mies se seu escritório estaria interessado neste projeto. Com resposta positiva de Mies, o projeto da casa Farnsworth foi iniciado em 1945. Contudo, sua obra teve início apenas quatro anos depois, em 1949, sendo concluída em 1951.
No início de 1953, Farnsworth entrou com um processo judicial contra Mies. O custo real da obra, mais as despesas adicionais não previstas e até mesmo, o que muitos afirmam, o fim do romance entre Mies e Farnworth, foram os motivos que levaram Farnsworth a decisão de levar a discussão à justiça. Em meados do mesmo ano Mies e Farnsworth entraram em comum acordo perante a lei, todavia o conflito continuou além da sala do tribunal. Segundo o que consta no livro da Farnsworth House de Maritz Vandernberg, em abril de 1953, em um artigo publicado na revista House Beautiful, Elizabeth Gordon critica o projeto de Mies afirmando que a residência era “fria” e “árida”, “estéril”, “fina” e “desconfortável”. Até mesmo Frank Lloyd Wright, que na década de 1930 e início de 1940 era considerado amigo de Mies e que admirava seu trabalho, apoiou a crítica feita por Gordon afirmando que o estilo internacional de Mies era um estilo totalitário. Especulações e conflitos de interesse à parte, essa síntese histórica foi feita em nosso tour nas três primeiras pausas.
Durante o percurso entre as três pausas foi notável a constante integração entre a natureza e a residência. Essa integração é dada principalmente através da transparência da casa devido aos grandes painéis de vidro, elemento muito importante nos trabalhos de Mies, e devido a elevação da casa em relação ao chão de 1.6m. Esta elevação proporciona a ilusão da residência flutuar. Ideia proposta por Mies para que o impacto da residência fosse o menor possível no terreno e no entorno, além da ameaça de inundação na área, presente desde sua construção. Outro ponto notável foi a quantidade de detalhes pensados pelo arquiteto, os quais já são evidentes no exterior da casa. Por exemplo, o alinhamento em todo o piso do projeto do eixo do perfil metálico com a junta de piso do mármore.
Foi na terceira pausa que nossa guia nos contou um pouco sobre os relatos de inundação na residência e o projeto que visa preservar a casa. Embora Mies tenha antecipado esse problema, a elevação de 1.6m não foi suficiente para impedir que a casa fosse afetada, dado o aumento do nível de água nas inundações nas últimas décadas. A primeira enchente crítica que danificou o interior da casa foi em 1996. Ainda no acesso a residencia é possível ver as marcas deixadas por algumas inundações que a casa sofreu. Entre vários projetos visando preservar a área, três se destacam: A. Elevar a casa permanentemente; B. Recolar a residência para uma parte mais alta do terreno; C. Inserir um sistema mecânico que possibilite elevar a casa em períodos de enchentes e em períodos normais voltar ao nível original da casa. A decisão de qual alternativa será escolhida é prevista para acontecer esse ano, e assim que escolhida a opção, a casa sera fechada por cerca de dois anos.
Um detalhe do tour que achei curioso foi o fato de alguns dias antes do tour receber um email pedindo para que levasse meias, uma vez que é proibido entrar na residência de sapatos. Esta foi uma dentre muitas maneiras que encontraram para preservar a residência. Achei curioso porque em outros tours que fiz como nas casas do Frank Lloyd Wright essa medida não é tomada. Algo que não imaginei foi que ao entrar na residencia o silêncio predominaria. Fora da residência, os sons da natureza (pelo menos no outono e certamente na primavera) são preeminentes. Senti uma inversão de sentimentos interessante: estando no ambiente externo a casa, em meio a natureza, ao olhar para a residencia me sentia acolhida pela residência, e estando no ambiente interno, ao olhar para o exterior, me sentia acolhida pela natureza.
Ao entrar na casa e percorrê-la primeiramente com os olhos, já foi possivel notar, apesar da simplicidade do projeto, a riqueza dos detalhes. Riqueza pensada por Mies desde o mobiliário ao detalhamento do encontro entre materiais. Sala de jantar, estar, quarto e cozinha, todos esses ambientes integrados. Somente os dois banheiros existentes na casa são áreas mais reservadas. Ao chegar na área destinada ao quarto, nossa guia pediu para que observássemos a quantidade de armários para as roupas de Farnsworth: nenhum. A residência foi projetada respeitando o anseio de Farnsworth em ter uma casa meramente para passear nos finais de semana, por isso Mies achou desnecessário, entre outras coisas, considerar em seu projeto um closet ou um pequeno armário para roupas.
Observando a riqueza dos detalhes desse projeto de perto, é que entendi a afirmação de Mies em “God is in the detail”. Claramente ele pensou em praticamente em todos os detalhes nessa residencia. Durante o tour não havia um “cantinho” sequer da residência que nossa guia não nos apresentava uma justificativa feita pelo próprio Mies. Especulando possíveis falhas nesse projeto, para mim seria apenas uma: estimativa de custo de execução. Pois é caros colegas de trabalho, até mesmo o Mies se equivoca em estimativa de custo de obra.
notas
Para os interessados em mais informações sobre a residência, do seu projeto inicial ao projeto atual referente as enchentes, vocês podem acessar no site http://farnsworthhouse.org.
sobre o autor
Sarah Suassuna é formada arquiteta pela Pontifícia Católica de Campinas e se encontra na School of the Art Institute of Chicago.