Chego pela enésima vez a Lençóis, dessa vez para a pesquisa de campo do meu doutorado. Mas, antes de tomar um banho no Serrano, é como se não tivesse aterrissado na cidade.
O Serrano é o nome da porção do Rio Lençóis onde se situam os “caldeirões”, poços de tamanhos variados, em média de três metros de largura por um e meio a três ou mais de profundidade.
O Rio Lençóis nasce na Serra do Grisante, ao norte da cidade, corta-a, cruza a ponte de arcos romanos, margeia o mercado, segue ao encontro do calmo Rio São José que banha a comunidade quilombola do Remanso e deságua, junto com o Rio Santo Antônio, no Paraguaçu, no município vizinho de Andaraí, para encontrar o mar junto às cidades de Cachoeira e São Félix, no recôncavo baiano.
Suas águas escuras e fervilhantes descem a serra com força, derramando-se pelo leito de seixos coloridos solidificados por rocha rósea, provocando redemoinhos e borbulhas nos caldeirões, causando a aparência de grandes e sucessivas banheiras de hidromassagem, das quais se avista a cidade de Lençóis, mais abaixo. Após a dança pelo Serrano, seguem se espalhando pelos lajedos, formando pequenas cascatas ali e acolá.
Lençóis é um rio que serve.
Serviu, a partir de meados do século 19, ao garimpeiro que lavou o seu cascalho. Suas águas suavemente enlaçaram as pedras nas bateias, levando a areia e acomodando as pedras de diferentes densidades, a mais preciosa no fundo do instrumento de madeira. Retornaram ao leito, ou pelo canal que o garimpeiro rusticamente construiu: veios artificiais por onde as águas percorreram outros caminhos.
Serviu, e ainda serve, ao abastecimento da cidade: sobre os antigos regos, edificados pelos garimpeiros, a companhia de águas coleta, com fortes canos de ferro, as águas que distribui pelas torneiras para os moradores e visitantes da cidade.
Serve ao lazer do povo. Banha turistas e nativos. Banha velhos e crianças. Banha negros, brancos, baianos, paulistas, brasileiros, europeus, asiáticos. Suas águas roçam os corpos, massageiam nos caldeirões do Serrano os músculos e seguem, depois da brincadeira, seu curso.
Serve, mais adiante, às lavadeiras da cidade com seus meninos. Seus lajedos tornam-se o leito das roupas, primeiro para quarar, depois para secar. Suas águas emulsionam o sabão, que depois é levado, junto com o suor das moças e mulheres de saias de barras molhadas e costas arqueadas, como uma constante reverência às águas. Águas que brincam e entretém as crianças enquanto suas mães realizam seu ofício.
Após a ponte, o Rio Lençóis dá mais um espetáculo de som e força, lembrando que serviu também, ali, para o girar sem fim de uma roda d’água, cuja energia produzida moveu as máquinas de lapidar diamantes, gemas que foram para os pescoços e mãos das madames, e que também perfuraram túneis e canais mundo afora.
Um par de quilômetros à frente, o curto rio deságua no São José, fazendo parte da paisagem, da vida e do sustento da comunidade quilombola Remanso. Ali, fornece o Molé, o Jundiá e outros peixes que os habitantes vão vender no mercado de Lençóis às segundas-feiras. Conforma, também, o “pantanal da Chapada Diamantina”, com suas águas escuras e calmas, e sua vegetação fluvial exuberante.
Rio Lençóis... por quantas mãos e corpos do mundo todo suas águas já não terão passado? Quanta alegria e quanta riqueza já não terão gerado? Quanto da história da cidade – e da própria humanidade – é possível entender conhecendo sua história, seus usos e seus caminhos?
Lençóis é só um rio da minha aldeia, mas o rio da minha aldeia mais generoso do mundo.
sobre os autores
Liziane Peres Mangili (autora do texto) é arquiteta e mestre pelo IAU-USP, e doutoranda pela FAU-USP. Há dez anos foi moradora de Lençóis (BA), e desde então desenvolve trabalhos na região, dos quais se destacam o “Projeto de Consolidação das Ruínas de Luís dos Santos, Igatu (Andaraí/BA)”, e a tese de doutorado “Anseios, dissonâncias, enfrentamentos: o lugar e a trajetória da preservação em Lençóis (Bahia)”.
Tom Alves (autor das fotos) é fotógrafo viajante. O mineiro de Belo Horizonte dedica-se a percorrer os mais variados destinos de riquezas naturais e culturais, documentando através de suas lentes paisagens e a natureza humana inserida nesses locais. Suas imagens já ilustraram inúmeros de veículos de comunicação editorial ou publicitária, como revistas de cultura e viagens, livros e guias turísticos.