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architectourism ISSN 1982-9930

São Paulo. Foto Abilio Guerra

abstracts

português
O artigo descreve as funções econômica, social e cultural do rio Lençóis, na cidade baiana de mesmo nome, revelando nas entrelinhas a história da ocupação da região.

english
The article describes the economic, social and cultural uses of Lençóis River, situated in a city of Bahia (Brazil) that has the same name. The history of the region’s occupation is implied from the text, which has an almost poetic language.

español
El artículo describe las funciones económica, social y cultural del Rio Lençóis, en la ciudad de mismo nombre ubicaba en Bahia (Brasil). Revela, en las entrelíneas, la historia de la ocupación de la región.


how to quote

MANGILI, Liziane Peres; ALVES, Tom. Lençóis, o rio mais generoso do mundo. Arquiteturismo, São Paulo, ano 09, n. 098.02, Vitruvius, maio 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/09.098/5578>.


Chego pela enésima vez a Lençóis, dessa vez para a pesquisa de campo do meu doutorado. Mas, antes de tomar um banho no Serrano, é como se não tivesse aterrissado na cidade.

Rio Lençóis descendo a Serra do Grisante
Foto Tom Alves

O Serrano é o nome da porção do Rio Lençóis onde se situam os “caldeirões”, poços de tamanhos variados, em média de três metros de largura por um e meio a três ou mais de profundidade.

Atravessando a cidade, o Rio Lençóis é margeado pela Avenida Senhor dos Passos
Foto Tom Alves

Ponte sobre o Rio Lençóis e Mercado ao fundo
Foto Tom Alves

O Rio Lençóis nasce na Serra do Grisante, ao norte da cidade, corta-a, cruza a ponte de arcos romanos, margeia o mercado, segue ao encontro do calmo Rio São José que banha a comunidade quilombola do Remanso e deságua, junto com o Rio Santo Antônio, no Paraguaçu, no município vizinho de Andaraí, para encontrar o mar junto às cidades de Cachoeira e São Félix, no recôncavo baiano.

Amanhecer em Lençóis. Avenida Senhor dos Passos, Rio Lençóis e Mercado
Foto Tom Alves

O calmo São José no Remanso
Foto Tom Alves

Suas águas escuras e fervilhantes descem a serra com força, derramando-se pelo leito de seixos coloridos solidificados por rocha rósea, provocando redemoinhos e borbulhas nos caldeirões, causando a aparência de grandes e sucessivas banheiras de hidromassagem, das quais se avista a cidade de Lençóis, mais abaixo. Após a dança pelo Serrano, seguem se espalhando pelos lajedos, formando pequenas cascatas ali e acolá.

Do Serrano se avista a cidade de Lençóis, ao fundo
Foto Tom Alves

Garimpo no Rio Lençóis, cartão Postal
Imagem divulgação [Coleção particular de Mestre Osvaldo, Lençóis]

Lençóis é um rio que serve.

Serviu, a partir de meados do século 19, ao garimpeiro que lavou o seu cascalho. Suas águas suavemente enlaçaram as pedras nas bateias, levando a areia e acomodando as pedras de diferentes densidades, a mais preciosa no fundo do instrumento de madeira. Retornaram ao leito, ou pelo canal que o garimpeiro rusticamente construiu: veios artificiais por onde as águas percorreram outros caminhos.

Captação de água pela Embasa no Rio Lençóis. Os canos atravessam o rio e após se debruçam sobre o antigo rego construído pelas mãos dos garimpeiros
Foto Liziane Mangili

Serviu, e ainda serve, ao abastecimento da cidade: sobre os antigos regos, edificados pelos garimpeiros, a companhia de águas coleta, com fortes canos de ferro, as águas que distribui pelas torneiras para os moradores e visitantes da cidade.

Caldeirões do Serrano, lugar preferido dos banhistas
Foto Tom Alves

Serve ao lazer do povo. Banha turistas e nativos. Banha velhos e crianças. Banha negros, brancos, baianos, paulistas, brasileiros, europeus, asiáticos. Suas águas roçam os corpos, massageiam nos caldeirões do Serrano os músculos e seguem, depois da brincadeira, seu curso.

Banhista em um dos poços – e das cascatas – do Serrano
Foto Tom Alves

Serve, mais adiante, às lavadeiras da cidade com seus meninos. Seus lajedos tornam-se o leito das roupas, primeiro para quarar, depois para secar. Suas águas emulsionam o sabão, que depois é levado, junto com o suor das moças e mulheres de saias de barras molhadas e costas arqueadas, como uma constante reverência às águas. Águas que brincam e entretém as crianças enquanto suas mães realizam seu ofício.

Pedras, roupas, lavadeiras e crianças no Rio Lençóis
Foto Liziane Mangili

Após a ponte, o Rio Lençóis dá mais um espetáculo de som e força, lembrando que serviu também, ali, para o girar sem fim de uma roda d’água, cuja energia produzida moveu as máquinas de lapidar diamantes, gemas que foram para os pescoços e mãos das madames, e que também perfuraram túneis e canais mundo afora.

Após a ponte, as águas tomam força devido ao desnível do leito
Foto Tom Alves

Um par de quilômetros à frente, o curto rio deságua no São José, fazendo parte da paisagem, da vida e do sustento da comunidade quilombola Remanso. Ali, fornece o Molé, o Jundiá e outros peixes que os habitantes vão vender no mercado de Lençóis às segundas-feiras. Conforma, também, o “pantanal da Chapada Diamantina”, com suas águas escuras e calmas, e sua vegetação fluvial exuberante.

Na comunidade do Remanso, o rio provém o sustento, como para essas lavadeiras
Foto Tom Alves

Rio Lençóis... por quantas mãos e corpos do mundo todo suas águas já não terão passado? Quanta alegria e quanta riqueza já não terão gerado? Quanto da história da cidade – e da própria humanidade – é possível entender conhecendo sua história, seus usos e seus caminhos?

Lençóis é só um rio da minha aldeia, mas o rio da minha aldeia mais generoso do mundo.

As águas calmas do Marimbus, o pantanal da Chapada Diamantina
Foto Tom Alves

sobre os autores

Liziane Peres Mangili (autora do texto) é arquiteta e mestre pelo IAU-USP, e doutoranda pela FAU-USP. Há dez anos foi moradora de Lençóis (BA), e desde então desenvolve trabalhos na região, dos quais se destacam o “Projeto de Consolidação das Ruínas de Luís dos Santos, Igatu (Andaraí/BA)”, e a tese de doutorado “Anseios, dissonâncias, enfrentamentos: o lugar e a trajetória da preservação em Lençóis (Bahia)”.

Tom Alves (autor das fotos) é fotógrafo viajante. O mineiro de Belo Horizonte dedica-se a percorrer os mais variados destinos de riquezas naturais e culturais, documentando através de suas lentes paisagens e a natureza humana inserida nesses locais. Suas imagens já ilustraram inúmeros de veículos de comunicação editorial ou publicitária, como revistas de cultura e viagens, livros e guias turísticos.

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