Topônimo Lina Bo Bardi
A relação entre Lina Bo Bardi e Milão é longeva e estratificada. Em Milão Lina viveu e trabalhou, fazendo ali seu próprio aprendizado profissional, adquirindo experiências e uma sensibilidade gráfica e arquitetônica que a acompanhariam durante todo o seu percurso de arquiteta.
Uma correlação já reconhecida pela cidade em 1994, quando na Trienal – onde uma década antes havia chegado, à espera de sua reorganização e preparação para uma exposição ambiciosa, o fundo arquivístico do marido Pietro Maria Bardi, hoje conservado no Archivio Storico Civico e Biblioteca Trivulziana – foi apresentada a mostra pioneira Lina Bo Bardi. Essa exposição constituiu uma abertura fundamental para sua personalidade, até aquele momento praticamente desconhecida na Europa, trazendo à luz pela primeira vez sua importância, também através da publicação de um livro (1) que foi, por anos, o único documento exaustivo sobre seu trabalho e continua sendo hoje um instrumento de referência imprescindível, mesmo na recente fortuna historiográfica de Lina.
Um outro acontecimento importante ocorreu no ano passado quando, entre os vários eventos realizados em todo o mundo para celebrar o centenário de seu nascimento – exposições, livros, filmes, seminários – Milão decidiu lhe dedicar um lugar público, um espaço da cidade: a Piazza Lina Bo Bardi.
Ao percorrer a vida e a obra, não parece despropositado refletir como a chave para abordar a figura de Lina, arquiteta que viveu entre o velho e o novo mundo, possa ser, em primeiro lugar, uma chave geográfica.
Nascida na Itália, chegando ao Brasil poucas semanas antes de completar trinta e dois anos, em outubro de 1946, Lina se torna cidadã brasileira em 1951, ano em que completa seu primeiro projeto construído, a icônica Casa de Vidro.
A questão da nacionalidade de Lina, italiana naturalizada brasileira, é conhecida e amplamente citada. A ela se retorna constantemente, legitimados por ela própria que, no célebre Curriculum letterario, no qual confia a construção e transmissão de sua própria memória, define o Brasil como “meu país duas vezes, minha Pátria de Escolha” (2). Mas qual é o peso desta identidade complexa, desenvolvida em dois continentes?
Hoje que a imagem de Lina está sob os refletores e que o seu trabalho se encontra no centro das reflexões da arquitetura contemporânea internacional, parece necessário tentar ler o seu percurso fora dos filtros interpretativos e dos testemunhos, às vezes contraditórios, que muitas vezes caracterizam as narrativas sobre sua vida, para colher, sobretudo, os vínculos reais entre sua biografia e a elaboração de uma concepção pessoal da arquitetura. O centenário constituiu um convite nesse sentido e, na Itália, foram várias as contribuições – antes de tudo a bela exposição Lina Bo Bardi in Italia organizada no Maxxi em Roma – relativas à história italiana de Lina, na tentativa de dar maior ênfase ao período de sua formação e de suas primeiras atividades.
Uma história significativa a de sua juventude, que se desenvolve ao longo do eixo Roma – Milão nos difíceis anos do fascismo, da guerra e da reconstrução, marcados pela polêmica em torno da arquitetura racional e em direção a uma cultura do projeto, através dos quais Lina acumula uma bagagem de experiências, humanas e profissionais, da qual deve ser considerado todo o impacto exercido na segunda parte de sua vida.
Deve-se logo dizer que Milão teve um papel importante nestes eventos. É ali que, sob a égide de Gio Ponti, Lina recebe a sua segunda e decisiva formação, depois dos anos romanos da infância e da Regia Scuola di Architettura, onde se diploma em 1939 com Marcello Piacentini.
Como se sabe, Lina chega a Milão no ano seguinte, 1940, apresentada pelo colega Carlo Pagani, com o qual, em Via Gesù, no centro histórico da cidade, abre seu primeiro estúdio, depois destruído em plena guerra pelos bombardeamentos de 1943. Em seguida, entra na entourage de Ponti e trabalha principalmente no campo editorial, publicando projetos em revistas e colaborando como redatora e ilustradora. Junto com Pagani contribui assiduamente para Domus, depois colabora, sempre seguindo Ponti que deixa a direção e em 1941 funda Lo Stile nella casa e nell’arredamento, nesse novo título. Ao mesmo tempo, publica em outros periódicos, como no refinado trimestral Aria d’ Itália, na revista de moda Bellezza, na revista feminina Grazia, na qual tem uma coluna fixa dedicada à casa e às soluções de decoração, e além disso também na L’Illustrazione Italiana, Tempo e Milano Sera.
A situação das revistas especializadas nesses primeiros anos de 1940 é muito móvel e, ao lado da afirmação de novas concepções estéticas e de projeto, nas redações se observa um remanejamento das assinaturas e das figuras responsáveis. É o caso, já mencionado, de Giò Ponti, mas também de Lina e Pagani que, em 1944, convidados pelo editor Gianni Mazzocchi, se vêem na função de vice-diretores de Domus, a publicação mais conceituada para a arquitetura italiana. Para esta, os dois criam e dirigem no ano seguinte a coleção Quaderni di Domus, composta de pequenos volumes monográficos dedicados aos equipamentos para a casa moderna. Justamente o discurso sobre a habitação e sua decoração, sobre o projeto e o gosto nos interiores está, no início da década, no centro de interesse dos arquitetos, e logo a reconstrução colocará com uma urgência inédita (e diferentes variações) o problema da casa no debate arquitetônico.
Sabemos então da adesão de Lina ao Movimento Studi Architettura, num país devastado pela guerra e pelos bombardeamentos, sua militância e a participação, com um relatório sobre La propaganda per la ricostruzione [A propaganda para a reconstrução], no Convegno nazionale per la ricostruzione edilizia, realizado em Milão, em dezembro de 1945. A isso se seguirá a reaproximação com o ambiente romano, o encontro com Bruno Zevi e a fundação, em 1946, da revista "A"; e ainda o casamento com a influente figura de Pietro Maria Bardi, homem de referência na guinada para o moderno da cultura artística e arquitetônica italiana, e a partida com ele para a América do Sul.
Poucos anos depois, no retorno de uma importante viagem ao Brasil, seu mentor e mestre Gio Ponti não deixará de apresentá-la ao público italiano, agora distante, como: “Lina Bo, donna intelligentissima che lavorò a Milano” (“Lina Bo, mulher inteligentíssima que trabalhou em Milão”) (3). E é também isso que queremos pensar, hoje, passando pela praça a ela dedicada no novo bairro de Porta Nuova Varesine.
A iniciativa da administração municipal de dedicar uma praça à “architetto-designer” – tal como consta na placa – surgiu da oportunidade de definir a toponomástica relacionada as intervenções de urbanização de uma vasta área recentemente reformada para se tornar o novo centro diretivo da região metropolitana que, graças ao caráter arquitetônico das construções, confiadas a archistar internacionais, mudou a skyline de Milão.
O projeto de Porta Nuova (2007-2014), que é composto por edifícios residenciais e terciários e 160.000 metros quadrados de áreas verdes e passagens de pedestres, chamados a costurar bairros históricos da cidade, inclui os três distritos de Garibaldi, Isola e Varesine – cujos masterplan foram desenvolvidos respectivamente pelos escritórios Pelli Clarke Pelli Architects, Boeri Studio e Kohn Pedersen Fox Associates – articulados em torno de um baricentro constituído pelas áreas dos Giardini, no qual está previsto uma intervenção paisagística de Petra Blaisse.
No final dos trabalhos relativos a Varesine, em 16 de maio de 2014 se procedeu, por deliberação da Junta número 1018, à denominação de duas novas praças e uma nova rua, para as quais foram escolhidos os nomes de Lina Bo Bardi, Alvar Aalto e Joe Colombo. Estes nomes foram acrescentados aos de outros renomados projetistas, como Gae Aulenti e os Irmãos Castiglioni, anteriormente já escolhidos para outras áreas de Porta Nuova, criando uma espécie de Olimpo dos arquitetos.
Inaugurada poucos dias depois, em 22 de maio, a praça de pedestres Lina Bo Bardi coroa o business district Varesine conectando-se ao tecido urbano histórico em direção à Piazza della Repubblica. Abre-se sob um dos arranha-céus mais relevantes do projeto, a Diamond Tower assinada por KPF Associates, que completa o eixo no qual surge, central, o pódio da Piazza Gae Aulenti, culminando com a agulha da Torre Unicredit. Ao lado está o Bosco Verticale de Boeri, que recentemente recebeu, em Chicago, o título de arranha-céu mais bonito e inovador do mundo.
É claro que a nova paisagem urbana de Porta Nuova está tendo grande sucesso de público, mesmo se alguns dos seus espaços, ainda que acessíveis e abertos, se conotem principalmente como áreas pertencentes ao complexo de edifícios, acabando por parecer destinados a dar à cidade mais um lugar de entertainment do que de socialização. Não é este o espaço para discutir sobre a qualidade e os problemas dessa intervenção urbana, marcada além disso por tensões as mais diversas, nem sobre a possível ideia de cidade que a mesma veicula. O que é inegável é que transformou radicalmente o perfil de Milão, oferecendo-lhe uma renovação há muito tempo desejada e dando-lhe um sinal correto de marca internacional.
A escolha do nome de Lina para o local foi fortemente apoiada pelo próprio Secretário da Cultura, Filippo Del Corno, não só por questões de gênero – Lina é arquiteta mulher, e isto contribui positivamente no legado histórico de uma toponomástica tendente ao masculino – mas, especialmente, pelas razões ligadas à sua experiência humana e profissional. Por um lado, seu vínculo com a cidade e a sua história em Milão; por outro lado, sua capacidade de ter dado vida a um diálogo frutífero entre experiências, valores e civilizações distantes e de representar exemplarmente uma ponte entre culturas.
Em uma perspectiva que se relaciona a esta visão, no próximo ano Lina retornará a Milão para o projeto Italiani sull’oceano. Relazioni artistiche tra Italia e Brasile nel ‘900 (Italianos sobre o Oceano. As relações artísticas entre Itália e Brasil em 1900), a ser realizada na primavera no MUDEC, o novo Museu das Culturas. Sua figura será apresentada, pela primeira vez, ao lado de Pietro Maria Bardi, juntos na viagem para o novo mundo e na exploração da cultura urbana e nativa do Brasil, em um curto-circuito de sugestões que seriam a base de todo o trabalho posterior de ambos.
notas
NE – Tradução para o português de Eugênia Gorini Esmeraldo.
1
FERRAZ, Marcelo Carvalho (org). Lina Bo Bardi. Milão/São Paulo, Charta/Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1994.
2
BO BARDI, Lina. Curriculum letterario. In: FERRAZ, Marcelo Carvalho (org). Op. cit., p. 12.
3
PONTI, Gio. La ‘Casa de Vidro’. Domus, n. 279, Milão, fev. 1953, p. 24.
sobre a autora
Viviana Pozzoli é historiadora da arte formada pela Università degli Studi di Milano, onde atualmente faz doutorado em História da Arte Contemporânea. Em 2011 foi visiting student no MAC USP de São Paulo.