Leio no jornal a notícia non sense, onde um sujeito que deveria estar preso detona o processo de impedimento da presidente da República. O ônibus estanca, emperra. Uma manifestação logo à frente. "Motorista, vou descer!" Comigo, duas ou três pessoas saltam do coletivo; ao atravessar a faixa de pedestre, noto que o motorista é uma mulher, a quem agradeço. Na frente do Masp, o motivo: uma centena de negros protestam. Sem histeria, apenas convictos, gritam: "Sem hipocrisia, abaixo Alckmin e a polícia fascista! Sem hipocrisia..." Pergunto para uma negra, baixinho, qual é a questão; a resposta vem rápida e sem novidade: as mortes constantes nas favelas e periferia. Continuo minha caminhada, na minha frente, de mãos dadas, dois garotos gordinhos, bem vestidos num estilo que não sei o nome. Na frente do shopping, um rapaz negro de cabelo encarapitado chega deslumbrante sobre patins de oito rodas fosforescentes; atrás dele, uma morena magérrima e linda, de cabelo esvoaçante, talvez a namorada, com patins mais discretos. Da banca de jornal escapa uma moça muito bonita, cabelos negros e enrolados, sorridente, segura de sua negritude. Desvio dela e continuo minha caminhada. Ao virar a esquina, noto que os dois ursos continuam na minha frente, as mãos ainda entrelaçadas. Estão mudos, talvez fazendo as pazes. O celular está sem bateria. Hoje não tem foto.
nota
NA – texto originalmente publicado no Facebook, no álbum “Crônica de andarilho”, texto 40.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora. Com Michel Gorski, é editor da revista Arquiteturismo.