Esse breve texto me ocorreu durante a edição que fiz do breve artigo “Vida e morte em um cemitério israelita”, de Michel Gorski, publicado nesse mesmo número da revista Arquiteturismo (1). Michel se fixou na vida comunidade que se estabelece no terreno invadido ao lado de um cemitério israelita. Eu tentei entender minha inclinação em fazer turismo em cemitérios católicos, onde gosto muito de andar, observar, refletir e fotografar com meu celular sempre a postos.
Tempus edax rerum, nos alerta Ovídio no ano 8 d.C. “O tempo devorador das coisas” (2), adágio que se tornou potente alegoria com Hermannus Posthumus, que 1538 coloca em sua pintura um amontoado de peças quebradas de arquitetura e de esculturas; uma delas traz esculpida na face o verso ovidiano. A ruína de Posthumus começa a ser assolada pela vegetação, que se enraíza nas frestas das pedras outrora lavradas por mãos humanas, anunciando a vitória da natureza, que – com o tempo a seu favor – reconquistará inevitavelmente o que lhe é de direito.
Em outra ocasião, comentei a formação da tradição ocidental que se apoia no antagonismo entre as associações morte/ruína e natureza/eternidade, redescoberta pelo renascimento, desenvolvida pelo barroco, enaltecida pelo romantismo (o jardim inglês é um dos seus expoentes). “As mais variadas formas artísticas da estética romântica – analisadas, dentre outros, por Sigmund Freud em seus escritos sobre a melancolia – nas apresenta constantemente a imagem da ruína como metáfora da morte. No conto A queda da casa de Usher, de Edgar Allan Poe, tempestade, morte e loucura expandem o significado alegórico das ruínas, reunindo fragmentos trágicos das histórias do homem e da natureza” (3).
Se Freud revigora a imagem da ruína que habita o corpus romântico, caberá a Walter Benjamin – com sua notável alegoria que ilustra a nona de suas Teses sobre o conceito da história, texto escrito nos tumultuados anos 1940, quando o nazismo parecia estar vencendo a guerra – revigorar sua vigência no âmbito do modernismo. Citação que só vale se completa, pois mutilar seu texto implica em borrar sua potência explicativa:
“Minhas asas estão prontas para voar,
eu gostaria de voltar;
eu viveria bem a mesma idade,
vivendo longe da felicidade”.
Gerhard Scholem, Gruss vom Angelus
Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele está representado um anjo, que parece querer afastar-se de algo a que ele contempla. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão prontas para voar. O Anjo da História deve parecer assim. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde diante de nós aparece uma série de eventos, ele vê uma catástrofe única, que sem cessar acumula escombros sobre escombros, arremessando-os diante dos seus pés. Ele bem que gostaria de poder parar, de acordar com os mortos e de reconstruir o destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso, aninhando-se em suas asas, e ela é tão forte que ele não consegue mais cerrá-las. Essa tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce ante ele até o céu. Aquilo que chamamos de Progresso é essa tempestade” (4).
A aliança promovida por Benjamin entre materialismo histórico e salvação divina contém o propósito de manter a condição humana lastreada em sua elevação ética, moral e existencial. No mundo reificado pelas forças da produção industrial e legitimado pela circulação das mercadorias que recalca a exploração do trabalho, ainda há lugar para o humano e para a transcendência, lugar conquistado pelo conhecimento – a filosofia, as artes e as ciências. Contudo, a fórmula de Walter Benjamin hiberna em sono profundo em algum recanto do mundo contemporâneo dessacralizado até o último fio de cabelo, pois até credos religiosos são movidos pela lógica da fruição imediata das pulsões mais baixas. O Capitalismo, nova divindade, sacrificou o simbólico, substituindo-o por bens de consumo.
É possível arriscar algumas considerações sobre a cidade dos mortos, tradição arcaica adotada e transformada pelas igrejas da tradição judaico-cristã. No cemitério, com seu arruamento e túmulos semelhantes à cidade dos vivos, se pretende uma suspensão da corrosão do tempo, onde gerações de corpos inertes depositados em tumbas individuais ou familiares aguardam o retorno das almas que a promessa divina garante para o final dos tempos. Contudo, o prosaico e o profano macularam esse reduto de espiritualidade, que passa a ser habitado por corpos desalmados, cujos familiares e amigos os abandonam e os esquecem tão logo viram as costas em direção à cidade dos vivos após cerimônias apressadas. O cemitério faz parte hoje da “catástrofe única, que sem cessar acumula escombros sobre escombros”.
O cemitério como destino do turismo cultural – local de passeio, reflexão intelectual, fruição sensual, prazer estético, busca da suspensão da angústia gerada pela necessidade de se ocupar produtivamente cada minuto ou cada segundo – é mais uma celebração da vida do que um namoro encantado com a morte. A cidade dos mortos, ao ser visitada sem o compromisso social da consternação obrigatória, pode se transformar em privilegiado posto de observação da cidade dos vivos e seus hábitos degradados (5). Assim, é um ato subversivo e petulante ao abrir as possibilidades de epifania, de poesia, de beleza, do sublime e até mesmo da tensão social em um lugar que hoje não passa de um espaço desperdiçado, um empecilho ao desenvolvimento urbano (6).
Estamos tratando de um espaço público ou ao menos de acesso coletivo liberado, que pode ser ocupado e experimentado com diversidade; ao expandir seu caráter restrito de lugar religioso, transformando-o em posto de reflexão crítica, é aproveitar-se de suas características únicas que combinam silêncio respeitoso e baixa pressão social em relação à sua posse. É possível arriscar a afirmação que o mercado sequioso de territórios para novos empreendimentos imobiliários e seus representantes no establishment político-administrativo só não avançam sobre esses terrenos em geral bem localizados nas mais diversas cidades por receio de enfrentar poderosas forças atávicas residuais no âmbito da psicologia coletiva, que imaginam esses lugares como campos santos amaldiçoados. Não me parece que haja qualquer resistência significativa no âmbito da teologia ou da metafísica à conversão desses espaços em outros usos.
Lidar com a cidade dos mortos de forma filosófica ou artística, objetivando a domesticação do terror diante da morte irrecorrível (estou falando, é bom que se diga, do mundo ocidental), pode ser bem frustrante, mas pode igualmente ser um ato imantado de simbolismo prenhe de vida. O entendimento da submissão do tempo humano ao infinitamente maior e mais poderoso tempo da natureza, partes desiguais do tempus edax rerum que nos legou a criação, não é necessariamente paralisante, como bem propôs Albert Camus com sua metamorfose da história trágica de Sísifo em alegoria da opção pela vida, onde a experiência humana sem sentido converte-se em vivência radical e comprometida (7). Um projeto de construção da vida individual e coletiva em um mundo abandonado pelas divindades, um sucedâneo para a renuncia suicida ou o arrivismo hipócrita, faces da moeda moderna e contemporânea.
Para apaziguar a inclemência das forças da destruição, Ovídio apresentou em seu tempo, igualmente na forma de adágio, a força contrária criativa: veritas filia temporis ou, em português castiço, “a verdade é filha do tempo”. Com tais forças opostas, dinâmicas, surpreendentemente dialéticas, o poeta controlou a fúria divina e pôde nos dar um conselho que se mantém válido apesar dos séculos que nos apartam: “nada morre, acreditai-me, no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados” (8).
notas
1
GORSKI, Michel. Vida e morte em um cemitério israelita. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 115.06, Vitruvius, out. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.115/6234>.
2
OVÍDIO. As metamorfoses. Coleção Universidade. Tradução David Gomes Jardim Junior. Rio de Janeiro, Ediouro, 1983.
3
GUERRA, Abilio. A fotografia de Nelson Kon. Arquitextos, São Paulo, ano 06, n. 068.03, Vitruvius, jan. 2006 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.068/389>.
4
BENJAMIN, Walter. Teses sobre a filosofia da história. In Walter Benjamin – sociologia. Tradução e apresentação de Flávio R. Khote. São Paulo, Ática, 1991, p. 157-159.
5
Até mesmo quando estamos em cerimônias fúnebres, quando há a possibilidade do recolhimento espiritual, estamos propensos ao devaneio e às reflexões. Certa vez, sentado diante do caixão de um amigo, fui tomado por estranha compulsão de escrever. No texto, posteriormente publicado, digo o seguinte: “David Libeskind será em breve mais um nome hebraico gravado na pedra. [...] O cômodo está ainda vazio e me sento em um dos cantos, onde posso admirar o maravilhoso caixão de papelão. Como vou dar aulas a seguir, estou com mochila, onde pego papel e lapiseira e começo a escrever este texto. O que vou dizer do arquiteto? [...] Olho pela última vez o caixão de papelão. Meu amigo está lá dentro. Não, ele não está mais lá; o corpo, a primeira casa do homem, está agora desabitado. David foi um brilhante artífice das outras duas casas do homem, a residência e a cidade. [...] Antes de ir embora para sempre, David Libeskind legou para a posteridade um projeto adequado a uma cidade mais humana, mais gentil, mais democrática, o Conjunto Nacional. Contudo, antes que ela seja viável para a maioria, uma agenda hercúlea de necessidades precisa ser cumprida. Mas David contribuiu para mostrar que ela é possível”. GUERRA, Abilio. David Libeskind, 1928-2014. A casa do homem e a utopia do Conjunto Nacional. Drops, São Paulo, ano 14, n. 079.07, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.079/5140>.
6
Apresentada no Cemitério do Araçá no final de 2013 dentro da programação da 10a Bienal de Arquitetura de São Paulo, a instalação artística “Penetrável Genet”, de Celso Sim e Anna Ferrari, propunha aos visitantes um percurso que culminava no Ossário Geral, onde estão depositados os ossos dos desaparecidos políticos do período da ditadura militar. Obra que convoca à reflexão a partir de textos sobre a violência de Jean Genet e Hélio Oiticica, a instalação foi vandalizada na noite anterior à abertura em uma manifestação de ódio e intolerância, mas que paradoxalmente potencializou a discussão que propunha. Guilherme Wisnik, curador daquela edição da Bienal, comentou as reverberações no tecido social via mídia televisionada e escrita da “obra-experiência” pichada e quebrada: “Sublime e sagrado, o trabalho se tornou um feixe de significações políticas de alta voltagem, num país em que casos como o de Amarildo não nos deixam esquecer que o desaparecimento de pessoas não é uma prática que ficou perdida nos tempos da ditadura”. Alcança assim, de forma enviesada, a condição de obra de arte urbana almejada, que nos coloca diante do desafio que é viver a vida real, que entrelaça individualidade e coletividade, aspecto capturado por Wisnik em sua frase final: “A cidade não é neutra nem amorfa. O ‘museu é o mundo’, como queria Hélio. A vida é osso, e temos que abrir espaços de luta para sobreviver. Luta santa, cuja força é a consciência da fragilidade. A fragilidade da morte. A fragilidade da arte”. WISNIK, Guilherme. A vida é osso. Folha de S.Paulo, caderno Ilustrada, 10 nov. 2013 <www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/138210-a-vida-e-osso.shtml>. Uma descrição minuciosa dos fatos pode ser vista em arquivo disponível no blog de João Camillo Penna <https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2015/03/sim-celso-penetrc3a1vel-genet-histc3b3rico-da-obra.pdf>. Mais informações sobre a instalação podem ser encontradas nos endereços na web: NOTÍCIAS. Penetrável Genet. X Bienal de arquitetura de São Paulo apresenta ‘Penetrável Genet’, uma obra de Celso Sim que ocupa o cemitério do Araçá. São Paulo, Vitruvius, 18 nov. 2013 <www.vitruvius.com.br/jornal/agenda/read/4755>; Penetrável Genet, página no facebook <www.facebook.com/events/251434555005858>.
7
O subtítulo do livro de Camus é “ensaio sobre o absurdo”, condição existencial que devemos enfrentar para acreditar em uma vida sem valor transcendente: “tiro assim do absurdo três consequências que são a minha revolta, a minha liberdade e a minha paixão. Pelo jogo da consciência, transformo em regra da vida o que era convite à morte – e recuso o suicídio”. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo. Lisboa, Edição Livros do Brasil, s/d, p. 80.
8
OVÍDIO. Op. cit., p. 381.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.