Grandes mercados e centros de compra já existiam no Oriente e Império Romano, mas os modernos shopping centers só florescem com o advento dos subúrbios e do automóvel como objeto de consumo. Nos Estados Unidos esta tendência se fortalece no século 20 e se difunde mundo afora junto com expansão difusa das cidades e o urbanismo moderno rodoviarista.
Localizados em áreas mais afastadas da região central das cidades, os shoppings eram perfeitos para a ascendente classe média motorizada que não se importava em se deslocar um pouco mais em busca de um lugar com facilidade de estacionamento e segurança para ir às compras sem ter que enfrentar o caos urbano do centro, áreas tradicionais de comércio. Eles se espalharam pelo mundo e hoje não há cidade, grande ou pequena que não tenha o seu. Os shoppings cresceram em dimensão e se transformaram em cidades fechadas dentro das cidades com suas fachadas cegas usadas como gigantescos outdoors.
Dubai, nos Emirados Árabes, tem o maior shopping do mundo até o momento: o Dubai Mall. Diferente dos primeiros shoppings, ele já não se situa na periferia e sim no “novo centro urbano” da metrópole. Por conta do solo valorizado, os estacionamentos não estão mais nas fartas áreas externas e sim nos vários níveis de subsolo. Até aí nenhuma diferença de outros shoppings contemporâneos. O que distingue o Dubai Mall é o gigantismo dos espaços e a cenarização do seu interior. Com um milhão de metros quadrados, 1400 lojas e 14000 vagas de estacionamento, ele faz parte do Downtown Burf Dubai, um supercomplexo comercial e residencial que ocupa 2 km2 de superfície construída em torno do prédio mais alto do mundo, o Burf Khalifa, com 828 metros de altura e 160 andares. No seu interior há um dos maiores aquários já construídos e quedas d'água artificiais, entre centenas de restaurantes, pista de patinação e outras "maravilhas" recriadas artificialmente pelo homem.
Em um deserto no qual as temperaturas podem chegar a quase 50ºC, com sensação térmica de 60ºC, em metade dos meses do ano, é natural que as pessoas prefiram viver em ambientes climatizados que reproduzem os espaços públicos e mesmo a própria natureza. Em Dubai a vida está “protegida” dentro dos shoppings e dos carros que lotam suas avenidas com várias faixas de rolamento e complexos sistemas de vias elevadas. O espaço público, que não seja este das “ruas” interiores dos shoppings, é cada vez menos utilizado e valorizado pelas pessoas. E mesmo que não haja a insegurança comum nas ruas das cidades latino-americanas, a tendência é o abandono dos espaços públicos exteriores, ao contrário do que se vê nas revitalizadas cidades europeias, onde eles têm sido recuperados e cada vez mais usados pela população (1).
Em Macau, ambiente urbano morfologicamente distinto de Dubai e distante aproximadamente 6000 km desta, se passa algo parecido e ainda mais estarrecedor quanto à artificialização dos espaços públicos urbanos. Macau não tem o maior shopping do mundo, mas uma sucessão de shoppings associados a cassinos e hotéis que, se somadas suas áreas, ultrapassa a do Dubai Mall. A cenarização dos interiores dos shoppings, contudo, beira o surreal, mas é somente uma reprodução kitsch de paisagens urbanas como as vielas e canais de Veneza, as ruas e praças de Paris e os estúdios de Holywood, como uma Las Vegas oriental.
Os shoppings recriam os lugares urbanos mais cobiçados e valorizados do mundo, com as suas “vantagens” consumistas (as grifes famosas todas juntas, lado a lado, no conforto dos seus corredores climatizados), mas sem as “desvantagens” da, cada vez mais ameaçadora, insegurança da cidade real.
Assim são as novas cidades artificiais que renegam o espaço público exterior e o recriam de forma controlada e orientada ao consumo pretensamente elitizado, mas acessível às ascendentes classes médias de países emergentes, como o Brasil que vai a Dubai para fazer compras ou a China que vai a Macau para jogar e comprar.
Contudo, em Macau, um autêntico comércio de rua ainda resiste e consegue competir com os shoppings, mais dirigidos aos turistas que se hospedam nos hotéis e jogam nos cassinos a eles acoplados. Nestas ruas de bairro pode se encontrar comida de rua, lojas populares e não só turistas, mas gente comum do local. Além disso, Macau ainda tem praças, jardins, parques e lugares como o Largo do Senado, o Largo de Santo Agostinho e o Largo de Camões, que lembram o centro de cidades portuguesas como Lisboa ou de brasileiras, como Rio de Janeiro ou São Luiz no Maranhão com suas edificações coloniais e calçamento em pedras portuguesas. Também é possível relaxar em um típico jardim chinês, o Lou Lim Ioc, um oásis urbano ou meditar nos vários templos budistas que se misturam aos edifícios comerciais e residenciais na malha urbana.
Pode se dizer, então, que em Macau convivem o espaço público tradicional e o espaço público interiorizado dos shoppings. Em Vila de Taipa, um dos seus bairros , passeia-se em ruas que parecem ser as de uma cidade histórica de Minas e visita-se um museu instalado em casas coloniais portuguesas (Casas de Taipa), de onde se vislumbra os vários cassinos na parte de urbanização recente do bairro. Um contraste urbano que também demonstra que tanto o shopping quanto o espaço da rua ali subsistem simultaneamente. Se há um movimento de progressiva interiorização dos espaços públicos, que no Brasil também parece ter ressonância, há, por outro lado um movimento contrário, que busca revalorizar ruas de pedestres, praças, largos e parques e torná-los atrativos ao convívio no espaço urbano exterior. E se não pode negar que a primeira hipótese parece ter a aprovação de parte das habitantes urbanos, não se pode também deixar de reconhecer que a revitalização dos espaços públicos ainda é a melhor opção para a qualificação e humanização das cidades.
nota
1
Um bom exemplo de experiências interessantes é o website Public Space <www.publicspace.org/es/premio/2016>.
sobre o autor
Sérgio Jatobá é arquiteto e urbanista (UnB, 1981), doutor em Desenvolvimento Sustentável (UnB/Universidad de Valladolid, 2006). Gerente de Estudos Urbanos da Codeplan/GDF. Pesquisador do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais – NEUR e do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. Foi pesquisador bolsista do IPEA.