Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architectourism ISSN 1982-9930

Canyon na represa de Xingó, situada entre os estados de Alagoas e Sergipe. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

português
O presente texto é uma narrativa sobre a arquitetura traçada na ‘construção do amor’, que Jurandir Freire aponta como possibilidade racional, procurando por sua manifestação metafórica no desenho das ‘cidades invisíveis’.

english
The Present text is a narrative on the architecture traced in love’s construction, that Jurandir Freire points as rational possibility, looking for its metaphor manifestation in the drawing of ‘invisible cities’.


how to quote

COSTA, Ana Lúcia Reis Melo Fernandes da. A construção do amor nas cidades invisíveis. Descrição sensível de uma metáfora espacial. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 117.03, Vitruvius, dez. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.117/6316>.


Cloé, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

A construção do amor n’As cidades invisíveis (1) envolve três níveis de abordagem neste texto, a primeira e imediata está voltada para a (pré) ocupação de tornar visível num espaço cultural, as cidades invisíveis, que Ítalo Calvino revela como um sistema metafórico dos movimentos concêntricos das relações sociais com as formas físicas. A segunda é a de apontar para a importância da escala individual dentro do coletivo no espaço, pois a prática cotidiana de uma cultura qualquer está diretamente ligada à memória e ao sentimento; daí a evidência da terceira questão: a escolha do amor como tema, que Jurandir Freire toma como o sentimento a partir do qual narrativas sensíveis são construídas num espaço e tempo, como elemento balizador de trajetórias racionais (2).

Raíssa, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

A descrição sensível de uma metáfora espacial, dentro destas abordagens, estará focada não tanto pela figura de linguagem que a caracteriza e classifica, mas, como um instrumental que está infiltrado na vida cotidiana, na linguagem, no pensamento e na ação; conforme promulga George Lakoff, todo nosso sistema conceitual é metafórico (3). A linguagem aqui empregada não é poética, retórica ou ornamental, é literal. E, por ela se descreverá a possibilidade da construção do espaço como o espaço das narrativas individuais, portanto histórico, onde a experiência física e cultural enraíza as metáforas de espacialização, tanto no contexto coletivo, como no particular e pessoal, responsáveis pela construção do tempo vivido. O próprio tempo pode ser uma construção solitária e metafórica do amor na medida em que liberta espacialmente e abraça as condições dos sentimentos amorosos.

Zora, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

Eis a narrativa:

O olhar atravessou-o na rua longamente, do outro lado via-se a casa vazia, lúmen de uma silhueta, lembrança daquela travessia. O homem andava de um lado para outro da calçada, cabisbaixo e com as mãos entrelaçadas para trás. Vez por outra parava e dirigia o olhar para a porta por onde saía seus últimos pertences, aqueles que lhe couberam na partilha. Sabia ser a derradeira viagem naquela dolorosa separação. Deslocava-se definitivamente de sua residência familiar para uma que lhe seria solitária. Deixava a casa apenas fisicamente, nela estava toda sua história conjugal vivida até aquele momento. Jamais imaginara que a separação chegasse àquele ponto final. Se lhe perguntassem o motivo de tal separação, talvez respondesse pequeninamente:

— Não sei de fato como aconteceu, prefiro pensar que somos domesticamente incompatíveis.

Tekla, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

Dobrou a esquina que se oferecia como barreira. Carregava o armário, a cama desmontada, uma mesa com algumas cadeiras, a espreguiçadeira companheira de seus sonhos, suas roupas e todas as suas fotografias. Não olhou mais a casa que ficava, partia em direção ao novo horizonte que se lhe abriria em trajetória dali em diante. No caminho foi reparando pelas mudanças das paisagens urbanas. Saia de um bairro nobre, bastante denso em demografia e espaços construídos e ocupados, rumo ao centro, mais esvaziado de pessoas e com edificações desabitadas e abandonadas. Percorria ao seu lado a imagem da descontinuidade da cidade, refletida no contraste do tratamento físico dos volumes compactos e agradavelmente distribuídos dos edifícios mais antigos, ao lado de torres elevadas construídas numa escala que desprezava as proporções. A beleza que via era um esfacelo das ruínas das quais era herdeiro. Falar só das formas é o mesmo que não dizer nada, pensava.

Andria, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

A rota que seguia o levava para um fluxo insuportável de veículos, afoitos nas circulações insuficientes para a demanda dos desejos de deslocamento. A urbanização recobria os espaços de uma mesma maneira, sem começo nem fim, como em Trude, uma das cidades contínuas de Ítalo Calvino. Gostaria que se fizesse o silêncio, pois aquele momento para ele era um ato solene, mas o barulho o atordoava, e a condição de ser um viajante, naquela delicada situação, aproximava-o da vontade de chegar em Irene, uma cidade em que se busca a paz, e, onde, para quem passa sem nela entrar é uma, e para quem entra e se aprisiona é outra. Levantou, então o vidro, arrependendo-se imediatamente por ter rejeitado a brisa amena que por ele entrava. O desconforto aumentou ao ser abordado por adolescentes que mendigavam, na parada dos sinais luminosos, se fazendo transparecer da invisibilidade, como na cidade de Isaura, onde uma paisagem invisível condiciona a paisagem visível, criando no cotidiano um fio delgado entre a estrutura objetiva e a subjetiva.

Borelli, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

O desenho reticulado moderno da cidade ia sendo trocado aos poucos pelo sinuoso e mais demoradamente elaborado das ruas mais antigas, as quais delimitavam o espaço central, onde estava localizada sua nova morada. Deixava uma casa patriarcal erguida quando ainda o bairro era uma extensão periférica do núcleo, por um apartamento num bloco construído para abrigar de forma socialmente justa um maior número de pessoas, paradigma de um pressuposto de arquitetura racional. Naquele desfile solitário multiplicavam-se os repertórios de imagens, ora um mangue, ora o mar, ora o rio, as pontes, ruas descascadas ao lado de avenidas equipadas, árvores frondosas e jardins rasteiros, lixo e poças d’água por toda parte, todas bem arranjadas sem se separarem umas das outras. Viam-se várias cidades remontadas, encaixadas, encadeadas. Fragmentos contraditórios remanescentes de inúmeras temporalidades, reunidos e consolidados culturalmente.

Clarisse, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

Atravessou assim, bairros, favelas, ruas, casas, jardins, telhados, antenas, postes e gambiarras, portas, janelas, varais com roupas dependuradas, igrejas, palácios, teatros, escolas, todos símbolos da representação da prática social, cada um com seu próprio caráter, erigido na permanência de sua localização, circunscritos num tapete com estrutura formal interminável, que favorecia a interpretação de oráculos na mancha do desenho amorfo.  O homem sempre por ali passara, nada do que via lhe era estranho, mas naquele momento a cidade se revelava para ele de maneira diversa, algo entre o vazio da saída e a esperança da chegada, uma lacuna. Algo, cujo conteúdo se apresentava com um novo sentido. São nesses momentos, em que o humor se altera pelo sofrimento ou por qualquer outro sentimento, que a percepção da emoção favorece a compreensão do que é visível, como fenômeno físico e químico que torna o invisível racional, e, do que é o invisível, como fenômeno psíquico e cognitivo que torna o visível ideal.

Zirma, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino"
Pintura de Luiz Carlos Toledo

Parou já na entrada do portão, desceu e empurrou-o lentamente como se não quisesse por ele passar. Pretendia se isolar do mundo todo e decidiu-se em colocar logo na entrada uma placa com os dizeres: Cuidado Cão Perigoso, exatamente como na casa do poeta trágico, que lera na narrativa de Carlos Heitor Cony (4). Provavelmente a tabuleta afastaria dali qualquer possível encontro, no momento, completamente indesejável. Depois da carga descida e armazenada encaminhou-se para a abertura que lindava a sua nova residência com a beira do rio. Sentou-se de frente ao vão do parapeito e recostou seus pensamentos no espaldar da cadeira de balanço. Ao sobrepor sua mão no alumínio da esquadria, lembrou-se do gradil em ferro batido e retorcido de sua antiga sacada. Com ele, ficou a memória das alegrias e tristezas gravadas no prazer estético de seus retorcidos desenhos, que outrora recebia seus segredos. Cada pedaço daquela casa vazia, estava preenchido por espaços saudosos no seu distanciamento.

Eudóxia, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

Olhou para o vão que agora protagonizava e comparou-o metodicamente com os que haviam sido deixados. Era grande a diferença, a casa patriarcal era marcada por ambientes esquadrinhados que se articulavam diretamente ou por circulações, cada um com a função e propriedade das atividades domesticas para os quais foram previstos e desenhados para a família que abrigava. No atual não haviam compartimentos fechados, as funções poderiam ser distribuídas impessoalmente, conforme a necessidade de quem o fosse utilizar, seguiam uma tradição modernista de integrar espaços tornando-os capazes de serem visitados indistintamente pelos olhares internos e externos. Lamentou não ter podido trazer a rede de seu antigo alpendre, não haveria como utilizá-la. Sabia então, que um novo cotidiano deveria ser construído por ele, mas não se atrevia a pensar como o faria. O costume, advindo de cuidados recebidos ao longo dos anos de convivência familiar, confundia suas necessidades vitais com as sentimentais.  Enfim estava só e sofria.

Otávia, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

A tarde terminava no ser e não ser do início da noite. A cidade já se iluminava com a moldura do crepúsculo no horizonte. Levantou e se dirigiu para o outro lado do ambiente. Na penumbra da janela percebeu a repetição dos andares, para cima e para os lados. Escutava-se o movimento da cidade, e este podia ser confundido com as suas inquietações. Abaixo de seu andar aparecia solitária, a sombra da árvore da noite, que não tomou como companheira por duvidar de suas intenções. De repente sentiu a presença de um olhar curioso, do outro lado da rua. Buscou sem chamar atenção, pela silhueta que se escondia, nas pregas da cortina, quando na mesma trajetória da procura se tocaram sutilmente. Seus olhos claros e lavados de tristeza brilharam ao encontrar a forma delgada de um olhar meigo que se insinuava. Vestia um vestido laranja, reto, seus cabelos eram curtos e seu rosto anguloso e moreno. Sorriram num abraço cortês de entrosamento. Logo se estabeleceu um diálogo silencioso de gestos, seduzindo-os mutuamente.

Perínsia, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

Esse encontro iluminou-o, fazendo com que rapidamente modificasse seus planos. Enamoram-se à distância, e mantiveram por um longo tempo a possibilidade do contato afastada. Os códigos que os faziam conviver, tinham seus sinais nos elementos que a arquitetura revelava; janela fechada, semiaberta, luz acesa ou apagada, com cada um deles aprendia lentamente a se conhecer. Um jogo antigo com elementos modernos. Aquele envolvimento levou-o a se entrosar com a topologia comunitária da sua nova rua. Começou a frequentar a caminhada no parque, a conversar com os vizinhos, e a conhecer os serviços que ali estavam disponíveis para a manutenção de sua casa. O novo sentimento ajudou-o na construção de um diferente cotidiano, do qual tivera medo. O cão da plaqueta passou a ser um fiel companheiro, e tornou-se seu aliado na tarefa de conviver com os demais. Chegou o momento em que se dispuseram a eliminar as barreiras dos sinais e perceberam que já não eram estranhos. Uma outra história se iniciava, com a possibilidade da construção de um novo amor.

Fedora, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

A casa vazia distante, seria doravante uma casa fantasma, sofrendo as ações do tempo, que para os transeuntes desavisados se converteria em mais uma vitória da especulação imobiliária. O verdadeiro motivo de seu abandono não estaria escrito na oferta das placas do incorporador, que a manteria legalmente para poder erguer ao seu lado mais uma construção prét-à-porter. Ao contrário, apesar de mantida, seus espaços serão (re) significados e deambulados por outros protagonistas. A metáfora do espaço da arquitetura, que nos revela Evaldo Coutinho (5), será renovada, e a forma não esgotará seu poder de explicação. Como prevê Bill Hillier, a lógica espacial da arquitetura está imbricada na lógica social, que perpassa do aspecto físico para o aspecto cultural e vice-versa (6). Enquanto elemento mórfico, não determina suas aspirações, indica possibilidades, por isso ela, apenas construção, por si só não revelará seus valores intrínsecos. Os frontões, beirais, entablamentos, serão alegorias de um documento como qualquer outro de arquivos e acervos, onde a leitura sofrerá as variações dos interpretes.

Esmeraldina, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

O homem que nela habitou e a construiu mnemonicamente sempre a terá como referência simbólica do amor fraterno e conjugal vivido nos seus espaços. Provavelmente sempre a descreverá de forma sensível, como o “Algo”, o “conteúdo” que tem significado, pelo qual se interessa Umberto Eco (7), e a partir do qual se poderão mesclar virtuais lembranças com experiências espaciais. Ele, o homem, sequer soube que foi observado em sua trajetória, por um narrador que pede licença para se auto titular de cronista. O narrador pode ter mentido por fidelidade às suas emoções, mas o fato continuará em movimento, pois na prática a imobilidade espacial só existe conceitualmente, tudo no mundo visível se movimenta. A casa está sitiada (8) e descrevê-la não é apenas um exercício de tentar revelar seu passado, porque esta tarefa tem limites. É fazê-la renascer da relação da forma com os acontecimentos. É procurar entendê-la como parte de um sistema urbano dinâmico, que engloba um outro sistema complexo: a individualidade do sentimento humano.

Bauci, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

Retomando a ideia inicial podemos constatar que as descrições sobre o amor são variadas e repercutem de alguma forma no agir. Jurandir Freire nos orientou na tentativa narrada neste texto,  de procurar demonstrar o fenômeno amoroso na lógica do desenho da cidade, como Algo que se organiza e desorganiza, no tempo e espaço do nosso aparelho físico, moral, e social. Embora o expliquemos de diversas naturezas: intencionais ou naturais; ou ainda sob vários adjetivos: universal, romântico, cortês, perverso; na maioria das vezes seus reflexos são desconsiderados nos espaços de ação do homem. Ressaltamos que a construção desse sentimento é individual, influi no movimento dos espaços sociais e flui de alguma maneira, das conexões visíveis para as invisíveis na (re) construção desses espaços cotidianamente. Como sistema conceitual é a verdadeira metáfora da busca da felicidade. Resta-nos perguntar se o estamos construindo racionalmente em direção a esta busca.

Eufemia, série “Cidade invisível de Ítalo Calvino”
Pintura de Luiz Carlos Toledo

sobre a autora

Ana Lúcia Reis Melo Fernandes da Costa, doutora em Desenvolvimento Urbano pelo MDU pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (2011) e mestre em História pela UFPE(2002). Arquiteta e docente (01/2014) no Instituto Federal de Educação Ciência e tecnologia do Espírito Santo – IFES.

notas

1
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

2
COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.

3
LAKOFF, George. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo, Mercado das Letras, 2002.

4
CONY, Carlos Heitor. A casa do poeta trágico. Rio de Janeiro, Objetiva, 2005.

5
COUTINHO, Evaldo. O Espaço da Arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 1977.

6
HILLIER, Bill; HANSON, Julienne. The social logic of space. Cambridge University Press, 1984.

7
ECO, Umberto. Kant e o ornitorrinco. Rio de Janeiro, Record, 1998.

8
Referência ao texto: LISPECTOR, Clarisse. A cidade sitiada. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.

comments

117.03 viagem literária
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

117

117.01 paisagem construída

Praça do Boqueirão: sessenta anos

Adilson Costa Macedo

117.02 arquiteturismo em questão

Dubai, Macau e a (quase) morte dos espaços públicos

Sérgio Jatobá

117.04 ministério do arquiteturismo

Ministério do Arquiteturismo adverte...

Abilio Guerra and Michel Gorski

117.05 editorial

O assassinato dos Paus Brasil do Largo da Batata

Michel Gorski

117.06 literatura

O Papai Noel

Luís Antônio Jorge

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided