“concluí que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
Grande Sertão: veredas, João Guimarães Rosa
O pisca-pisca das ruas cheias, o corre-corre das compras natalinas, a euforia do comércio, sempre me ofereceram um bico, um trabalho provisório quando todos estão em festa. Vou como um penetra nesta festa. Não me sinto convidado. Será que é assim que o garçom se sente na festa de casamento? Gosto de observar de dentro, mas sem cumplicidade. O que me aquieta? O que me serena? O que me adoça e me suspende? A minha fantasia – visto e me transformo. Nem parece trabalho. É saída! É fim-de-semana! É sexta à noite! Só que é pago. Pouco, mas pago. E ninguém me figura. Nem me adivinha! Sou tão outro. Tão doce. Calmo. Canto de grilinho em noite de estrelas. Sou tão silêncio no turbilhão. Me escuto. Fico surdo. Faço tudo com afeição. No capricho. A vida é peleja. Mas a roupa vermelha de cetim é tão macia. Faz calor e nem ligo. O cetim é tão liso. Lembro da palavra viscosa escorregando pela boca. Gosto do brilho. Gosto das cores falsas das luzinhas. Emagreci e quase perco o bico. A fantasia sobra e eu procuro preenchê-la a todo custo. Já perdi meu travesseiro. A barba postiça – um pouco encardida – excede uns dois dedos o rosto que preciso esconder. As luvas estavam descosturadas. Dei um jeito no desarranjo geral e investi num sapato novo para receber o falso cano da bota. Tudo para não denunciar a farsa, a fantasia imprópria aos trópicos, o personagem fora de lugar, a descompostura do personagem. Percebo que sou aceito e ninguém olha para os detalhes. Nunca ninguém olhou para mim. Eu aqui, sentadão, sou capaz de esperar a vida inteira. As crianças fazem fila. Os pais tiram retrato. Sou tão bom aqui que até acredito. Mansidão. Podia durar para sempre.
nota
NE – Primeiro texto da série Homens Provisórios, que conta com os seguintes artigos publicados:
JORGE, Luís Antônio. O Papai Noel. Homens provisórios 1. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 117.06, Vitruvius, dez. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.117/6337>.
JORGE, Luís Antônio. O vendedor de doçura. Homens provisórios 2. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 118.04, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.118/6362>.
JORGE, Luís Antônio. O vigia acidental. Homens provisórios 3. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.05, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6382>.
JORGE, Luís Antônio. Rosalina, a florista ambulante. Homens provisórios 4. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.119/6414>.
JORGE, Luís Antônio. O poeta da Paulista. Homens provisórios 5. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 120.04, Vitruvius, mar. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.120/6451>.
JORGE, Luís Antônio. Cassandoca, a catadora da Mooca. Homens provisórios 6. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 122.02, Vitruvius, maio 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.122/6533>.
JORGE, Luís Antônio. O marceneiro Messias. Homens provisórios 7. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 127.03, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.127/6725>.
JORGE, Luís Antônio. Estela, a escova, os sons e os sapatos. Homens provisórios 8. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 131.08, Vitruvius, fev. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.131/6887>.
JORGE, Luís Antônio. Cida e a cidade desaparecida. Homens provisórios 9. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 136.06, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.136/7061>.
sobre o autor
Luís Antônio Jorge, homem que fez da fronteira seu lugar de residência – meio paulista, meio mineiro – gosta do Brasil, de arquitetura e de literatura.