Cinco anos atrás visitei a Texas A&M University, campus de Bryan a procura do arquiteto Phillip Tabb, professor e responsável pelo Center of Housing and Urban Development (doutor, Architectural Association, London, 1990). Foi indicação de um colega em Houston, sabedor de meu interesse pelo Smart Growth, na linha do Novo Urbanismo Norte Americano. Como despreocupado “arquiteturista” ir a Bryan, distante cento e cinquenta quilômetros, seria um bom passeio de automóvel, conhecer a Universidade, a cidade e pernoitar. Sem marcar antes fui para aquela universidade, onde a secretaria informou-me que o professor estava no sudoeste de Atlanta, acompanhando a implantação do plano da Comunidade Serenbe. Como de Houston eu ia para Atlanta, Serenbe passou a ser o próximo destino, desta vez tudo acertado com o professor. O encontro foi no Blue Eyed Daisy BakedShop, que é padaria, restaurante e loja de conveniência.
Os fundadores de Serenbe foram Steve e Marie Nygren. O nome da nova comunidade foi sugerido por Marie, juntando as palavras serenety e be, ou seja, estar sereno, tranquilo. A história ou a estória conta que o casal, dono de restaurantes no Estado da Georgia, comprou uma casa de fazenda em uma gleba de 36ha, para ser usada nos seus fins de semana fora de Atlanta. Três anos depois eles venderam os restaurantes e a casa da cidade para residir definitivamente em Serenbe. Adotaram a crença de que para melhorar o mundo seria preciso começar pela qualidade ambiental do próprio espaço em que se vive. Com a venda dos restaurantes, junto com parceiros, compraram terras vizinhas completando 16.000ha (160km²), onde foi elaborado o plano para Serenbe. Na gleba inicial ficou a residência dos Nygren, que ali também montaram um hotel-fazenda, o Inn at Serenbe. Segundo sua visão humanista, viver em comunidade seria o passo inicial para melhorar o mundo. Para eles a casa situada nos 36ha da gleba inicial viraria residência permanente e local de trabalho. Ai residindo puderam ter participação ativa no empreendimento maior – Comunidade Serenbe – associados a terceiros.
Formar a comunidade, do ponto de vista físico na nomenclatura inglesa seria formar um Village, no Brasil um bairro. O objetivo maior era o de proteger a área de Chattahoochee Hills junto à cidade de Atlanta, como parte do esforço da sociedade para preservar a belíssima área rural existente e servir de exemplo para o desenvolvimento de outras localidades. Nos Estados Unidos acontece com certa frequência uma iniciativa como esta, do cidadão abastado entrar no ramo de desenvolvimento urbano tendo preocupações sociais e de preservação ambiental (além de ganhar dinheiro!). Referencia semelhante é o caso da pequena cidade de Seaside, Florida, que se tornou ícone do Movimento Novo Urbanismo. No Brasil isto tem certa semelhança com o empreendimento Bairro Pedra Branca, em Palhoça, Santa Catarina.
O “Daisy” foi o primeiro ponto comercial de Serenbe, construído na Selborne Lane, via que atravessa e confere nome a este hamlet (vila pequena, vizinhança). O Selborne Hamlet foi a primeira área urbanizada em Serenbe. O restaurante estando bem situado e reconhecido pelo sistema de alimentação “da fazenda para mesa”, desde sua inauguração em 2005 passou a ser ponto de encontro, inclusive para as decisões sobre o plano do Village.
Hoje em dia há três restaurantes usando o sistema “da fazenda para mesa”, que se estende para as residências, pois Serenbe é autossuficiente quanto ao fornecimento de produtos agrícolas. Selborne Lane é o corredor comercial desta área de vizinhança e elo de ligação com o restante do empreendimento.
As residências de Selborne são do tipo casas unifamiliares e casas em fila. Em geral têm varandas na frente da rua, com a parte posterior voltada para trilhas ou espaços comuns. A proximidade com lojas e serviços incentiva a caminhada. Os tipos arquitetônicos são os da preferencia dos proprietários com seus arquitetos, opção desejada para produzir diversidade nas fachadas, particularmente dos imóveis emfileira. Figura 5.
A arquitetura de modo geral tem caráter regional, dividindo espaço com expressões da arquitetura moderna e da contemporânea. Existem princípios para serem seguidas no projeto, diretrizes provenientes do plano urbanístico que comumente ocorrem nos empreendimentos deste porte.
No Daisy tomei suco de laranja junto com o Phil (professor), sujeito informal, alegre, feliz pela oportunidade de explicar e poder mostrar in loco seu projeto, em fase avançada de implantação. Primeiro falou do plano diretor e comentou sobre o paper que apresentou no encontro Third Annual ACS (Architecture, Culture and Spirituality) Symposium 2011; realizado em Serenbe. O título é Serenbe and the Serenity Place. Como não havia uma publicação oficial mostrando o projeto, o arquiteto explicou no paper as premissas conceituais do plano e um desenho ilustrativo. Para mim sobrou a expectativa de poder encontrar boas informações no texto postado na internet. Logo depois, esvaziada a jarra de suco, saímos para um passeio pelo Village.
O desenvolvimento inteligente (smarth growth) trouxe uma maneira de classificar os espaços da região, desde o rural para o urbano, segundo um diagrama que mostra gradativamente a sequencia de espaços, por seis tipos de faixas ou transects, variando dos espaços vazios da região até o aglomerado dos centros urbanos. Segundo este critério para Serenbe, situado em um transecto de transição urbano-rural cabe bem a nomenclatura de village e hamlet. Assim, Serenbe pode é classificado como uma village tendo quatro hamlets, da forma prevista por seu plano diretor. Trabalhar na escala da pequena área de vizinhança, o hamlet formando com outros um village foi um princípio de organização dos espaços inspirada em conceitos do urbanismo tradicional inglês.
Os quatro hamlets projetados pela equipe do projeto estão assim distribuidos: ao Sul, Mado e Grange; logo acima de Grange localiza-se Swann Ridge e bem ao norte fica Selborne. Destacam-se no plano geral de Serenbe as áreas para equipamentos complementares, localizadas junto aos entroncamentos do sistema de vias públicas, a quantidade de áreas verdes e o Inn dos Nygrens localizado no extremo noroeste da gleba.
Phillip Tabb destaca logo no início do texto a áurea associada ao nome Serenbe e o desejo de dotar os moradores com espaços que se transformem no lugar das pessoas: algo de sagrado, mágico, tomando por representação até a forma de ômega dos hamlets. Depois expõe o plano geral (master plan), apontando a procura de qualidade ambiental e interação social como fator preponderante de todo o empreendimento. Daí se estruturou o conceito e nasceram as diretrizes principais, resumidas a seguir:
- Acomodar a parte construída do projeto de forma relativamente compacta visando preservar a terra. Isto resultou em 30% de terrenos comprometidos com a construção em oposição a 70% de áreas livres. A área mais adequada para urbanização foi determinada através de um mapeamento permitindo acuidade dos detalhes, pelo processo sieve mapping. Este método introduzido pelo arquiteto paisagista Ian McHarg no início da década de 1970, baseia-se na articulação de layers relativos ao ambiente natural, organizado em diferentes camadas para serem analisados visando a determinação das zonas ecológicas. Acompanhando o relevo do terreno resultaram os desenhos em forma de ômega dos hamlets. Observe-se a distribuição alternada de lotes com tamanhos diferentes, visando a diversidade de tipos e dimensões das residenciais e também a previsão de equipamentos comunitários;
- Configurar os quatro hamlets e a ocupação por pequenos núcleos (clusters) junto aos principais entroncamentos viários caracterizando a área urbanizada de Serenbe. Por esta diretriz, torna-se presente a intenção de formar literal e simbolicamente uma constelação de vizinhos. Com sutileza fazer a transição entre o rural e urbano, que se faz naturalmente em Serenbe;
- Facilitar a transição rural urbano e explorar aspectos cênicos, valorizando a paisagem natural, fazer sentir aos poucos o sentido mágico do lugar. O arquiteto Tabb diz que os “momentos sagrados” existem, mas, necessariamente não precisam ser logo revelados;
- Permitir liberdade para o contato com a natureza, em particular pelas crianças. Na figura observam-se, as bicicletas deixadas na calçada por um grupo de crianças que entraram no parque para brincar;
- Implantar pontos e interesse, seja para serviços que favoreçam o encontro das pessoas ou simples contemplação. Como exemplo, a figura mostra o local determinado para o mercado do produtor, que além dos produtos agrícolas serve para outros eventos da comunidade.
Concluindo, ou voltando à estória do início: de manhã depois do suco de laranja saímos do Daisy, para o passeio matinal. Na hora do almoço voltamos e comprovei que a gastronomia da “fazenda para a mesa” realmente é boa, dependendo do cozinheiro! A conversa com o Tabb continuou agradável. Ele, o arquiteto, cidadão local, parece ser pessoa querida no lugar, conhece todo mundo. Saímos para mais uma volta e agora ele mais descontraído levou-me para conhecer a via que ganhou seu nome.
Neste artigo procurei destacar as diretrizes relativas à interação das pessoas com o lugar. Considerei que os aspectos técnicos de infraestrutura, formadores do arcabouço da sustentabilidade do empreendimento foram bem resolvidos. Serenbe recebeu o selo EarthCraft Building Standards de Atlanta (similar ao Leeds) e láurea do ULI, Urban Land Institute.
Após cinco anos de ter conhecido a área por gentileza do Phil Tabb, ter lido seu paper e ano passado ter voltado a Serenbe, sem o Phil e com olhar mais crítico, é que produzi este texto. Trata-se de outra realidade, que nos faz como profissional ter que se isolar da realidade atroz do Brasil e estudar coisas de país rico, onde se viabiliza um projeto como este: mil unidades residenciais em 160km² (18,75 pessoas por quilometro quadrado). Quando o Phil fala da possibilidade de oferecer imóveis para diferentes classes de renda, eventualmente subsidiados, dá um aperto no coração pois logo penso em nossos níveis de renda, onde mesmo a classe media teria dificuldade para morar em um espaço como Serenbe.
sobre o autor
Adilson Costa Macedo é arquiteto (FAU USP); Master of Architecture in Urban Design, Graduate School of Design, Harvard University; Doutor, Universidade de São Paulo. Professor da FAUUSP e Universidade São Judas Tadeu, USJT. Lider do Grupo de Pesquisa Arquitetura da Cidade, GPAC/USJT.