Quem vive Porto Alegre sabe o quanto a relação da cidade com o Guaíba é contraditória. Apesar de seus habitantes amarem ver o Sol se pondo em suas águas existem dois fatos que chamam a atenção: o primeiro e mais curioso é a discussão entre os porto-alegrenses sobre o Guaíba ser um rio ou um lago (1). O segundo é o fato de que a região central da cidade dá as costas para a linda paisagem. O fenômeno começou na década de 1970, com a construção do muro da Avenida Mauá, que faz parte do Sistema de Proteção Contra Cheias (2) do município e a progressiva desativação de seu Porto Fluvial, que, no momento que este texto está sendo escrito, encontra-se interditado aos seus cidadãos.
A implantação da estratégia de ocupação e o projeto de paisagismo da Orla do Guaíba proposto pelo arquiteto e urbanista Jaime Lerner tem como objetivo mudar esta realidade ao buscar incentivar a coexistência entre a cidade e suas águas: o desejo de acolhimento recíproco e incondicional entre o Lago e a cidade banhada por suas águas, onde habitam os corações daqueles que amam a sua linda paisagem será incentivado pela recuperação do contato físico e visual com o Guaíba, nos 7 km de Orla que vai do seu Porto Fluvial ao estádio do Esporte Clube Internacional.
O primeiro trecho está sendo executado nos 1,3 km entre a Usina do Gasômetro e a Rótula das Cuias, desde Outubro de 2015(3). Segundo o site do escritório do arquiteto e urbanista, dois elementos principais definem o novo Parque: o nível do calçadão que corre sobre o dique que integra o sistema de proteção de cheias da cidade e os novos passeios e ciclovia, no nível da Av. Edvaldo Pereira Paiva. Entre o calçadão e o passeio estão previstas as atividades de lazer e comércio. Os espaços contemplativos dos decks e as passarelas de passeio debruçam-se sobre as águas enquanto a vegetação nativa ribeirinha reconquista seu espaço nos entremeios(4). As formas curvilíneas dos elementos propostos por Lerner lembram os morros da paisagem que cerca o lago e as águas que beijam a margem do parque, sugerindo o tão necessário movimento de acolhimento entre a natureza existente e a paisagem em construção.
A visita à obra teve o objetivo de conhecer e fotografar o seu andamento para um futuro trabalho acadêmico coletivo em nosso programa de mestrado. Com a vontade de compartilhar a experiência, o coletivo composto por sete arquitetas e urbanistas – três professoras e quatro mestrandas – realizaram em uma tarde fria e ensolarada de Julho, a excursão-visita que será descrita a seguir, em imagens (5) e palavras.
Junto com o Arq. Oscar Coelho e pelo Eng. Gerson Hoffelder percorremos o caminho ilustrado neste primeiro mapa, o qual servirá de guia para as descrições que acompanham o texto.
A cartografia criada pela autora utilizando como base a imagem da implantação do projeto da Orla encontrada no site da Prefeitura de Porto Alegre tem a o percurso representado por uma linha vermelha. Os principais pontos de atração encontrados durante o passeio estão assinalados com um traço azul que os liga as suas fotografias, estas de autoria coletiva. A cartografia está dividida em três janelas-retângulos numeradas que obedecem a seguinte ordem:
Janela 1 (verde): partida dos galpões da obra até o passeio e a ciclovia que margeiam a Av. Edvaldo Pereira Paiva;
Janela 2 (amarelo): entorno da Usina do Gasômetro até o Quase Meia-Noite;
Janela 3 (rosa): percurso de volta entre o Quase Meia-Noite e os galpões.
Partindo dos galpões da obra – espaço assinalado em vermelho – caminhamos pelo espaço onde serão construídas as futuras quadras de esportes, nos dirigindo a margem do lago, onde encontramos o primeiro dos três decks. Construído em Itaúba maciça sobre estrutura em aço, os decks formam uma enseada em relação ao passeio e uma suave península que se debruça sobre as águas. Este espaço de estar convida a sentar e contemplar a paisagem seja sentando nos grandes bancos curvilíneos da mesma madeira com acabamento metálico na lateral ou se debruçando sobre o guarda-corpo em aço. Ainda a larga dimensão do deck trouxe ao grupo a memória do uso cotidiano da Orla, com pessoas fazendo piqueniques assentadas à beira do rio e tomando o chimarrão ao observar a paisagem e o pôr-do-sol.
Conforme podemos observar na cortografia-janela 2 (imagem7) caminhando pelo passeio em direção à Usina do Gasômetro chegamos à península configurada pelo deck com grandes dimensões que abrigará as atividade do atracadouro público.
Observamos sobre o deck um pequeno edifício em aço e concreto com panos de vidro, que recebe uma cobertura de vidro e metal inclinada com acabamento em aço corten trabalhado nas laterais. O conjunto chama a atenção por ser o único em linhas retas de todo o parque. Segundo a equipe da obra ali se localizará bilheteria dos barcos de passeio que partirão do local.
Do ponto de vista do deck do atracadouro podemos vislumbrar a paisagem do parque em sua totalidade. O elemento arquitetônico que chama mais a atenção na paisagem construída vizinha à Usina é o edifício de forma circular chamado Quase Meia-Noite, que está localizado na península seguinte.
O edifício construído em vidro, aço e concreto é acessado por uma passarela metálica e terá o piso da varanda circular em vidro sobre as águas. A ousada proposta para um local historicamente popular tem estrutura prevista para acolher um restaurante que funcionará até quase meia-noite. A possibilidade de visualização da paisagem a 360° ofertada pelas esquadrias retráteis e transparência com partes do piso e da cobertura em estrutura metálica e preenchimentos em vidro trouxe a sensação de estar dentro da água, saindo da margem e colocando-se a observar a orla desde o ponto de vista da água.
A terceira e última parte da caminhada foi de contemplação. Caminhando por decks, caminhos ribeirinhos e passarelas sobre as águas, concluímos que a paisagem construída do novo parque fará o futuro convívio com o Guaíba ser mais intimista e lúdico.
Partindo do restaurante passamos pela primeira das duas passarelas metálicas que correm em curva sobre as águas do lago, que faz sequência com um passeio em terra e um dos decks em madeira dando passagem em seguida para a segunda passarela. Os espaços de passagem das passarelas metálicas levam o visitante a caminhar sobre as águas. Diferente da experiência de estar dos decks, as caminhadas dos passeios da margem e o sentar das arquibancadas voltadas ao rio, as passarela oferece uma experiência em movimento que direciona o visitante a visuais tanto para a terra – como o edifício da Usina do Gasômetro - quanto para a água, ao visualizar horizonte a Oeste.
Após a passarela, já no meio do caminho de volta aos galpões encontramos mais um deck de estar, contemplar e acolher a convivência com a natureza na plenitude dos sentidos, experiência que só uma concavidade como a do nosso lago proporciona (imagem 16).
Seguindo adiante, seguimos pelo passeio em terra, de onde vislumbramos outra passarela curvilínea, a qual nos dirigiu ao deck do começo do passeio. Entre os elementos da paisagem construída na beira das águas encontramos pequenas praias onde as águas beijam a terra, em um contínuo e constante movimento de acolhimento recíproco.
E assim terminamos uma tarde de construção de memória e convívio com o belo e o sublime, pois ambos ali coexistem. Saímos da obra do Parque da Orla com a constatação que Porto Alegre tem ainda alguma chance de rever a relação com as águas que a cerca.
notas
1
Em 1820, quando Saint-Hilaire avistou o Guaíba, não teve dúvidas em anotar em seu diário que se tratava de um lago. Os moradores da época chamavam-no de Lago de Viamão ou, também, Lago de Porto Alegre, denominações existentes desde o século 18. A análise de mapas históricos da região costeira do Rio Grande do Sul mostra que, durante o século 18 e início do 19, Rio Guaíba era a designação do segmento final do atual Rio Jacuí, compreendido entre a foz do Rio Taquari e as ilhas do delta. Se Guaíba, em tupi-guarani, significa o “encontro das águas”, de fato é para esse segmento que as águas de quatro rios afluem e convergem. MENEGAT, Rualdo (coord.). Atlas Ambiental de Porto Alegre. 2ª edição, Porto Alegre, PMPA/UFRGS/INPE, 1999, cap. 3, p. 37.
2
Muro da Mauá. Website da Prefeitura de Porto Alegre <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/dep/default.php?p_secao=74>.
3
Segundo o site G1 a conclusão do processo estava prevista para no máximo 18 meses. Porém, assim que a obra começou, aconteceu a segunda maior enchente na história da cidade, só suplantada pela de 1946. Deste modo, alterações no projeto foram necessárias, aumentando o nível dos equipamentos da margem em 1m de altura. G1 RS. Revitalização de trecho da orla do Guaíba, em Porto Alegre, está 80% concluída. Porto Alegre, G1, 03 jul. 2017 <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/revitalizacao-de-trecho-da-orla-do-guaiba-em-porto-alegre-esta-80-concluida.ghtml>.
4
LERNER, Jaime. Plano Conceitual do Parque Urbano da Orla do Guaíba. Curitiba, Website de Jaime Lerner, 2012 <www.jaimelerner.com/orla-guaiba.html>.
5
Todas as fotografias são de autoria do coletivo composto pelas professoras-arquitetas Anna Paula Canez e Roberta Krahe Edelweiss e pelas alunas mestrandas Gabriela Mariano, Carlla Volpato, Graziela Maciel e Cassya Vargas.
sobre a autora
Celma Paese é doutora em Arquitetura. Doutora em Arquitetura pelo Propar UFRGS. Bolsista PNPD Capes Uniritter no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, mestrado associado Uniritter-Mackenzie, Porto Alegre Brasil.