Quem vive Porto Alegre sabe o quanto a relação da cidade com o Guaíba é contraditória. Apesar de seus habitantes amarem ver o Sol se pondo em suas águas existem dois fatos que chamam a atenção: o primeiro e mais curioso é a discussão entre os porto-alegrenses sobre o Guaíba ser um rio ou um lago (1). O segundo é o fato de que a região central da cidade dá as costas para a linda paisagem. O fenômeno começou na década de 1970, com a construção do muro da Avenida Mauá, que faz parte do Sistema de Proteção Contra Cheias (2) do município e a progressiva desativação de seu Porto Fluvial, que, no momento que este texto está sendo escrito, encontra-se interditado aos seus cidadãos.
A implantação da estratégia de ocupação e o projeto de paisagismo da Orla do Guaíba proposto pelo arquiteto e urbanista Jaime Lerner tem como objetivo mudar esta realidade ao buscar incentivar a coexistência entre a cidade e suas águas: o desejo de acolhimento recíproco e incondicional entre o Lago e a cidade banhada por suas águas, onde habitam os corações daqueles que amam a sua linda paisagem será incentivado pela recuperação do contato físico e visual com o Guaíba, nos 7 km de Orla que vai do seu Porto Fluvial ao estádio do Esporte Clube Internacional.

O coletivo reunido no deck do atracadouro em frente ao Centro Cultural da Usina do Gasômetro. No primeiro plano, a arquiteta Gabriela Mariano. Grupo, da esquerda para a direita: Anna Paula Canez, Roberta Krahe Edelweiss, Celma Paese, Oscar Coelho, Gerson
Fotografia de Gabriela Mariano, Julho de 2017
O primeiro trecho está sendo executado nos 1,3 km entre a Usina do Gasômetro e a Rótula das Cuias, desde Outubro de 2015(3). Segundo o site do escritório do arquiteto e urbanista, dois elementos principais definem o novo Parque: o nível do calçadão que corre sobre o dique que integra o sistema de proteção de cheias da cidade e os novos passeios e ciclovia, no nível da Av. Edvaldo Pereira Paiva. Entre o calçadão e o passeio estão previstas as atividades de lazer e comércio. Os espaços contemplativos dos decks e as passarelas de passeio debruçam-se sobre as águas enquanto a vegetação nativa ribeirinha reconquista seu espaço nos entremeios(4). As formas curvilíneas dos elementos propostos por Lerner lembram os morros da paisagem que cerca o lago e as águas que beijam a margem do parque, sugerindo o tão necessário movimento de acolhimento entre a natureza existente e a paisagem em construção.
A visita à obra teve o objetivo de conhecer e fotografar o seu andamento para um futuro trabalho acadêmico coletivo em nosso programa de mestrado. Com a vontade de compartilhar a experiência, o coletivo composto por sete arquitetas e urbanistas – três professoras e quatro mestrandas – realizaram em uma tarde fria e ensolarada de Julho, a excursão-visita que será descrita a seguir, em imagens (5) e palavras.
Junto com o Arq. Oscar Coelho e pelo Eng. Gerson Hoffelder percorremos o caminho ilustrado neste primeiro mapa, o qual servirá de guia para as descrições que acompanham o texto.

Cartografia de Celma Paese, julho de 2017
Cartografia do percurso da excursão-visita
A cartografia criada pela autora utilizando como base a imagem da implantação do projeto da Orla encontrada no site da Prefeitura de Porto Alegre tem a o percurso representado por uma linha vermelha. Os principais pontos de atração encontrados durante o passeio estão assinalados com um traço azul que os liga as suas fotografias, estas de autoria coletiva. A cartografia está dividida em três janelas-retângulos numeradas que obedecem a seguinte ordem:
Janela 1 (verde): partida dos galpões da obra até o passeio e a ciclovia que margeiam a Av. Edvaldo Pereira Paiva;
Janela 2 (amarelo): entorno da Usina do Gasômetro até o Quase Meia-Noite;
Janela 3 (rosa): percurso de volta entre o Quase Meia-Noite e os galpões.

Cartografia-janela 1 do percurso da excursão-visita: partida dos galpões da obra até o passeio e a ciclovia que margeiam a Av. Edvaldo Pereira Paiva
Cartografia de Celma Paese, julho de 2017
Partindo dos galpões da obra – espaço assinalado em vermelho – caminhamos pelo espaço onde serão construídas as futuras quadras de esportes, nos dirigindo a margem do lago, onde encontramos o primeiro dos três decks. Construído em Itaúba maciça sobre estrutura em aço, os decks formam uma enseada em relação ao passeio e uma suave península que se debruça sobre as águas. Este espaço de estar convida a sentar e contemplar a paisagem seja sentando nos grandes bancos curvilíneos da mesma madeira com acabamento metálico na lateral ou se debruçando sobre o guarda-corpo em aço. Ainda a larga dimensão do deck trouxe ao grupo a memória do uso cotidiano da Orla, com pessoas fazendo piqueniques assentadas à beira do rio e tomando o chimarrão ao observar a paisagem e o pôr-do-sol.

Deck em Itaúba com estrutura de aço e bancos executados com o mesmo material
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017

Detalhe do guarda-corpo em aço do Deck
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017

Passeio que acompanha o traçado da Av. Edvaldo Pereira Paiva
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017

Escadaria de acesso entre os níveis da margem do rio e do passeio de pedestres e ciclovia
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017

Cartografia-janela 2 do percurso da excursão-visita: caminho entre a metade do percurso do passeio, a Usina do Gasômetro e seu entorno, incluindo o restaurante Quase meia-noite
Cartografia de Celma Paese, julho de 2017
Conforme podemos observar na cortografia-janela 2 (imagem7) caminhando pelo passeio em direção à Usina do Gasômetro chegamos à península configurada pelo deck com grandes dimensões que abrigará as atividade do atracadouro público.

Vista da ponta do deck do atracadouro público em direção a lateral da Usina
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017
Observamos sobre o deck um pequeno edifício em aço e concreto com panos de vidro, que recebe uma cobertura de vidro e metal inclinada com acabamento em aço corten trabalhado nas laterais. O conjunto chama a atenção por ser o único em linhas retas de todo o parque. Segundo a equipe da obra ali se localizará bilheteria dos barcos de passeio que partirão do local.

Edifício da bilheteria dos barcos
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017

Edifício da bilheteria dos barcos
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017
Do ponto de vista do deck do atracadouro podemos vislumbrar a paisagem do parque em sua totalidade. O elemento arquitetônico que chama mais a atenção na paisagem construída vizinha à Usina é o edifício de forma circular chamado Quase Meia-Noite, que está localizado na península seguinte.

Vista do restaurante Quase meia-noite do atracadouro dos barcos
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017
O edifício construído em vidro, aço e concreto é acessado por uma passarela metálica e terá o piso da varanda circular em vidro sobre as águas. A ousada proposta para um local historicamente popular tem estrutura prevista para acolher um restaurante que funcionará até quase meia-noite. A possibilidade de visualização da paisagem a 360° ofertada pelas esquadrias retráteis e transparência com partes do piso e da cobertura em estrutura metálica e preenchimentos em vidro trouxe a sensação de estar dentro da água, saindo da margem e colocando-se a observar a orla desde o ponto de vista da água.

Vista do restaurante Quase meia-noite
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017

Estrutura do futuro piso transparente do restaurante Quase meia-noite com vista do Gasômetro e do atracadouro ao fundo
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017
A terceira e última parte da caminhada foi de contemplação. Caminhando por decks, caminhos ribeirinhos e passarelas sobre as águas, concluímos que a paisagem construída do novo parque fará o futuro convívio com o Guaíba ser mais intimista e lúdico.

Cartografia-janela 3 do percurso da excursão-visita: saindo da península do restaurante caminhamos até o ponto de partida em um caminho entremeado por decks, passeios e pontes
Cartografia de Celma Paese, julho de 2017
Partindo do restaurante passamos pela primeira das duas passarelas metálicas que correm em curva sobre as águas do lago, que faz sequência com um passeio em terra e um dos decks em madeira dando passagem em seguida para a segunda passarela. Os espaços de passagem das passarelas metálicas levam o visitante a caminhar sobre as águas. Diferente da experiência de estar dos decks, as caminhadas dos passeios da margem e o sentar das arquibancadas voltadas ao rio, as passarela oferece uma experiência em movimento que direciona o visitante a visuais tanto para a terra – como o edifício da Usina do Gasômetro - quanto para a água, ao visualizar horizonte a Oeste.

Vista da passarela para o Sul, com a Zona Sul de Porto Alegre ao fundo
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017

Vista do deck no centro do percurso de volta a partir do nível do passeio da avenida
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017
Após a passarela, já no meio do caminho de volta aos galpões encontramos mais um deck de estar, contemplar e acolher a convivência com a natureza na plenitude dos sentidos, experiência que só uma concavidade como a do nosso lago proporciona (imagem 16).
Seguindo adiante, seguimos pelo passeio em terra, de onde vislumbramos outra passarela curvilínea, a qual nos dirigiu ao deck do começo do passeio. Entre os elementos da paisagem construída na beira das águas encontramos pequenas praias onde as águas beijam a terra, em um contínuo e constante movimento de acolhimento recíproco.

Coletivo no passeio entre o deck e a passarela
Foto de autoria do coletivo durante a visita, julho de 2017
E assim terminamos uma tarde de construção de memória e convívio com o belo e o sublime, pois ambos ali coexistem. Saímos da obra do Parque da Orla com a constatação que Porto Alegre tem ainda alguma chance de rever a relação com as águas que a cerca.
notas
1
Em 1820, quando Saint-Hilaire avistou o Guaíba, não teve dúvidas em anotar em seu diário que se tratava de um lago. Os moradores da época chamavam-no de Lago de Viamão ou, também, Lago de Porto Alegre, denominações existentes desde o século 18. A análise de mapas históricos da região costeira do Rio Grande do Sul mostra que, durante o século 18 e início do 19, Rio Guaíba era a designação do segmento final do atual Rio Jacuí, compreendido entre a foz do Rio Taquari e as ilhas do delta. Se Guaíba, em tupi-guarani, significa o “encontro das águas”, de fato é para esse segmento que as águas de quatro rios afluem e convergem. MENEGAT, Rualdo (coord.). Atlas Ambiental de Porto Alegre. 2ª edição, Porto Alegre, PMPA/UFRGS/INPE, 1999, cap. 3, p. 37.
2
Muro da Mauá. Website da Prefeitura de Porto Alegre <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/dep/default.php?p_secao=74>.
3
Segundo o site G1 a conclusão do processo estava prevista para no máximo 18 meses. Porém, assim que a obra começou, aconteceu a segunda maior enchente na história da cidade, só suplantada pela de 1946. Deste modo, alterações no projeto foram necessárias, aumentando o nível dos equipamentos da margem em 1m de altura. G1 RS. Revitalização de trecho da orla do Guaíba, em Porto Alegre, está 80% concluída. Porto Alegre, G1, 03 jul. 2017 <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/revitalizacao-de-trecho-da-orla-do-guaiba-em-porto-alegre-esta-80-concluida.ghtml>.
4
LERNER, Jaime. Plano Conceitual do Parque Urbano da Orla do Guaíba. Curitiba, Website de Jaime Lerner, 2012 <www.jaimelerner.com/orla-guaiba.html>.
5
Todas as fotografias são de autoria do coletivo composto pelas professoras-arquitetas Anna Paula Canez e Roberta Krahe Edelweiss e pelas alunas mestrandas Gabriela Mariano, Carlla Volpato, Graziela Maciel e Cassya Vargas.
sobre a autora
Celma Paese é doutora em Arquitetura. Doutora em Arquitetura pelo Propar UFRGS. Bolsista PNPD Capes Uniritter no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, mestrado associado Uniritter-Mackenzie, Porto Alegre Brasil.