As janelas venezianas podem ser bifore, com 2 arcos, trifore, com 3, quadrifore com 4 e polifore, com muitos arcos. Em forma de ferradura do estilo bizantino-veneziano, de arco agudo ogival gótico com ápice afilado ou de arco pleno renascentista. As divisões podem ser em colunas esguias com capitéis, podem ser ornadas com guirlandas, querubins ou cabeças, os mascheroni. Os palácios e casas senhoriais tem janelas com molduras brancas em relevo de filigranas rendadas.
Há as mais antigas janelas envidraçadas são as compostas de discos de vidro de até 12 cm de diâmetro, parecidos com fundos de garrafas, os rulli ou rui, (rolos) derivados de globos que naturalmente se formam quando o vidro é soprado, sendo aplanados ainda quentes. Os discos são montados como vitrais em molduras de chumbo e inseridos na caixilharia formando triângulos ou quadrados.
Janelas de edifícios residenciais tem folhas externas de madeira, cada folha com duas partes articuladas para que se dobrem e acomodem sobre a espessura das paredes. São simples, retangulares envidraçadas que apenas exibem serralheria artística ou toldos e cortinas. Uma grande parte delas tem floreiras que derramam cores sobre as ruas e canais. Pelas janelas penduram roupas ou a bandeira da franjada da Sereníssima com o Gonfalone, o leão alado.
Mas as janelas refletem também os problemas da cidade e expressam que o povo de Veneza que não mais suporta viver em uma cidade que vai se transformando apenas em cenário turístico. São mensagens da população que faz o “protesto dos lençóis” dos “residentes resistentes” contra o êxodo populacional por falta de atividades que não sejam as ligadas ao turismo, denunciando a falta de moradias para residentes e o comércio abusivo desenfreado.
Nas janelas de Veneza é possível ler que os venezianos não querem mais os monstruosos navios de cruzeiro passando pelo canal da Giudecca ou pela Bacia de São Marcos, muito próximos aos seus tesouros arquitetônicos de várias eras, poluindo o ar e deslocando perigosamente as águas que abalam sua frágil estrutura milenar e despejando multidões de “turistas de um dia” que só querem consumir fastfood, fazer selfies em dois ou três locais e partir deixando muito lixo e prejudicando o uso harmônico do espaço público.
Moradores expressam desagrado à degradação da qualidade de vida urbana e transformação de locais de comércio, restaurantes e manufatura tradicionais em cassinos, lanchonetes e lojas de souvenirs made in Ásia e sofre com a gentrificação e a falta de moradias já que imóveis cada dia mais se destinam à locação tipo AirB&B, que além reduzir a oferta de moradia aos residentes permanentes também não promove trabalho em hotelaria.
Há várias associações, ONGs e instituições acadêmicas que lutam pela participação nas decisões políticas para implementação de ações de proteção do patrimônio natural, arquitetônico, urbanístico e cultural cidade e da laguna, promovendo manifestações, protestos, ações de cidadania, identidade local e fortalecimento da comunidade para reverter o declínio de residentes permanentes do centro histórico (de 120.000 habitantes em 1980 a menos de 55.000 em 2016). São também contrárias à progressiva transferência das sedes das instituições governamentais, escolas e serviços públicos para a terraferma em Mestre (1).
As associações de moradores recentemente lutaram contra a construção de um dispendioso sistema mecânico de barragem das águas da laguna – o MOSE (2) – para a proteção contra alagamentos nas marés altas, de eficácia incerta, custo altíssimo que também causa danos ambientais. A construção do sistema que será concluído em 2018 tem sido alvo de investigações e processos administrativos por desvios de verbas e superfaturamento.
Residentes têm exigido um referendo sobre a proibição de navios de cruzeiro no entorno imediato da cidade (movimento que organiza “No grandi navi”), sobre a transferência do governo municipal para Mestre, sobre o projeto de dragagem para aprofundar um canal no leito da laguna para facilitar a navegação de navios de grande calado e tem apelado à Unesco para que pressione o governo italiano com sanções, rebaixando o status da cidade a “patrimônio mundial ameaçado”.
No Carnaval de 2018 está em vigor um novo sistema de “bandeira vermelha” que contará e limitará a entrada de número excessivo de visitantes na área da Praça São Marcos e do entorno do Canal Grande. O sistema poderá ser adotado também no verão quando há expressivo aumento de turistas. A cidade recebe mais de 30 milhões de turistas por ano. Como Veneza vai responder à crescente demanda do turismo internacional e pressão do mercado de lazer é questão crucial para sua sobrevivência como cidade.
“Quem ama Veneza a respeita”. O turismo de massa predatório e sem planejamento tem provocado revolta na população que exige medidas governamentais protetivas, já implementadas em Berlim, Barcelona, Florença, San Sebastian em Mallorca, Dubrovnik e já propostas para Lisboa.
Ter consciência dos problemas de cidades tão apreciadas como Veneza é importante para que como visitantes adotemos práticas turísticas e de consumo responsáveis.
nota
1
Links para associações de resistência da cidade de Veneza: Comitato Nograndinavi Laguna Bene Comune <https://www.facebook.com/comitatonograndinavi>; Venezia protesta contro navi da crociera tra i canali: "Ognuna inquina come 14mila auto" <https://www.youtube.com/watch?v=bcv5HytiygM>; We are here Venice <http://weareherevenice.org>; Italia Nostra Venezia <http://www.italianostravenezia.org/>; Grupo 25 Aprile <https://gruppo25aprile.org/for-our-many-foreign-friends/>.
2
MOSE_Project MOSE – MOdulo Sperimentale Elettromeccanico, Experimental Electromechanical Module <https://en.wikipedia.org/wiki/MOSE_Project>.
sobre a autora
Christiane Terra de Lisboa é arquiteta graduada na FAU USP, mestre pela FEC AU Unicamp.