Solidão são os caminhos do Sul da América do Sul. Melhor do que desolados, melhor do que abandonados, melhor do que vazios: solidão dos esquecidos.
Podemos estar em uma cidade vibrante como Buenos Aires, ou em outra com charme característico como Montevidéu, Santiago de Chile, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre... Podemos imaginar uma cultura específica percorrendo a nossa América, a parte que nos cabe, mas nada de mais deslumbrante do que a solidão dos caminhos entre as cidades do sul da América.
Marcos esquecidos, casas esquecidas, caminhos esquecidos, pessoas esquecidas: La Cruz, Cerro Chato; Jachal; Carmelo, Aceguá... Pastos, reflorestamentos, desertos... Esquecimento e pó. O que as cidades escondem e caminhos solitários revelam: a América da solidão.
Nos caminhos solitários vão e veem argentinos, brasileiros, uruguaios, ingleses, alemães, suíços, belgas... Todos na busca de uma América que foi e não deixou de ser: a infinitude da paisagem que se avista de um ponto qualquer de estradas, às vezes mal-acabadas, às vezes negras de asfalto, às vezes amarelas de areia, às vezes vazias na sua infinitude.
Avistar um vilarejo, algumas casas, é um alento quando se está em caminhos da solidão. Poetas, filósofos, ascetas, ermitões, loucos, amantes de horizontes solitários se largam nesses caminhos. Pode-se parar em lugar algum para conversar com outros solitários, pode-se chegar num posto de gasolina e travar conversas sobre motos; estradas; lonjuras; infinitudes; tempo; sobre nada.
Cidadezinhas com suas construções de outras eras, dos imigrantes europeus em busca de uma terra prometida e que acabou em solidão. Construções com estilos art-nouveau feitas para durar, mas que o tempo as tomou como prova de que os caminhos do Sur levam à solidão da existência; levam ao vazio do espaço que não pode ser preenchido com o frenesi das cidades grandes.
Vilarejos com lonjuras de distância; com vazios imensos a percorrer para chegar solitário no espaço da solidão. Tempo e espaço estão em desatino nesses caminhos, nesses vilarejos. Tempo vazio, espaço vazio: percorre-se o vazio do espaço durante um tempo vazio e com o olhar vidrado no horizonte que nunca chega. Quase uma fórmula ao contrário: não há tempo no espaço oco.
Depois da curva, depois do vilarejo, o horizonte imóvel; o tempo morto do espaço vazio. É do vazio que surgiu a ideia do tempo cíclico? É do tempo morto que se acreditou no paraíso? É a solidão que nos faz povoar os céus? São esses caminhos que produzem a literatura fantástica, tão nossa? Enchemos nossos pensamentos de coisas, de gentes, de miragens nessas estradas borgianas: uma repetição temporal da paisagem.
Até as fronteiras parecem estar fixas no tempo. Dionísio Cerqueira SC, Barracão PR e Bernardo de Irigoyen AR se misturam e perturbam a visão de quem vem solitário. A calçada é suficiente para fazer alguém estrangeiro: um passo e não se fala a mesma língua, não se tem os mesmos costumes, o mesmo dinheiro, os mesmos nomes e, no entanto, como em livros de Cortázar, todos convivem. Personagens de Borges, de Veríssimo, de Márquez... falam conosco e estamos nas páginas de um romance típico da nossa América.
De um lado, a calçada, uma guia, uma praça não diz nada sobre a fronteira, de outro, há dois metros, posto de controle, verificação de passaportes, do veículo, das identidades, carimbos, formulários e a aceitação oficial, enquanto, na praça, há dois metros, crianças brincam brincadeiras bilíngues. No posto de controle há a República Argentina, a República Federativa do Brasil, a República Oriental do Uruguai. Ao lado, nada, apenas o imobilismo literário e seus personagens que falam qualquer coisa que se entenda.
Desavisados cruzam a fronteira pela estrada uruguaia que acaba numa rua brasileira. O Uruguai termina no restaurante por quilo brasileiro. A Argentina começa em frente à sorveteria self-service brasileira. Os sons dos Pampas começam no funk tocado em volume estridente do carro brasileiro estacionado numa calle. Argentinos fazem compras nos supermercados do lado de cá. Brasileiros jogam no cassino do lado de lá. E o rio Uruguai é a estrada aquática para o pequeno comércio dos ribeirinhos de lá e de cá.
Há tanta solidão, tanto espaço morto, tempo morto na nossa América. Essas características nos fizeram sul-americanos. Nos fizeram povoar as folhas dos escritores e nos fizeram andarilhar pelas trilhas do nosso continente, como fizeram os índios, os espanhóis, portugueses, africanos, italianos, espanhóis, alemães, todos esses que buscavam algo e encontraram essa solidão americana. Flanar pela América é uma forma de arte, uma estilização da vida e nenhuma preocupação em responder de onde viemos e para onde vamos, estamos só andarilhando por espaços que se fixaram, nas temporalidades que se fixaram. Somos estrangeiros numa terra estrangeira, somos uma deriva que vaga pelas estradas de horizontes que nunca chegam.
sobre o autor
André Luiz Joanilho, doutor em História, é professor aposentado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina – UEL.