Na apresentação de uma exposição de Roberto Burle Marx, Lúcio Costa começa seu texto assim: “Roberto Burle Marx é um caso singular. Em plena era atômica, a pessoa dele e o seu mundo, conquanto falem linguagem contemporânea, confinam com a Renascença” (1).
Fazenda Vargem Grande – jardim Burle Marx, filme de Pedro Mascaro (ampliar para melhor visualização)
Este texto me veio à memória quando, nas várias vezes em que revisei o projeto de paisagismo da Fazenda Vargem Grande (2), fui percebendo uma série de características que, de maneira inequívoca, constituem claras convergências com os jardins italianos do Renascimento. A mais explícita delas é, talvez, a abundância de água que, tanto na Itália quanto aqui, na serra da Bocaina, brotar generosa e abundante, a correr por colinas e encostas. O exemplo mais eloquente é, sem qualquer dúvida, a Villa D’Este, em Tivoli, em que o uso estético-escultural da água, em forma de fontes, cascatas, jatos, espelhos, distribui-se por todas as partes do espaço, mesmo em situações surpreendentes, como descendo pelos corrimãos de algumas escadas ou fazendo soar as notas um órgão, quando entra pelos tubos sonoros e expulsa o ar de seu interior. A composição paisagística de Vargem Grande se desenvolve no antigo terreiro de secagem do café e, em termos de uso da água, conta com cinco espelhos, dezenove cascatas, alguns jatos e duas piscinas.
Outra característica que nos conecta com o Renascimento é o escalonamento do terreno, vencendo os desníveis naturais das colinas e encostas com terraços que, nos jardins italianos, vão se sucedendo morro abaixo, muitas vezes conectados por cascatas ou planos inclinados, ou ainda muros de arrimo que vão delimitando terraços e funções: teatro ao ar livre, labirintos, jardins segregados (3), espaços para refeições ao ar livre. Estes últimos sugerem a citação, como expressão importante, da Villa Lante, em Bagnaia (nos arredores de Viterbo). Embora água e terraceamento também aqui sejam notáveis, chama a atenção uma enorme mesa de pedra sobre a qual corre, como máximo refinamento, a água corrente de um pequeno córrego, onde os comensais podiam lavar as mãos ou se refrescar molhando o rosto e a cabeça. E, também digna de menção, a catena d’acqua (corrente ou cadeia d’água), destacada escultura em que a água em declive acompanha os degraus de uma escada.
Há mais alguns aspectos sintônicos que merecem menção: a presença de obras de arte, sempre relacionadas com o traçado do jardim, isto é, buscando os pontos notáveis na geometria da composição. Cito a escultura armada com mós sobrepostas que, antes da intervenção do paisagista, eram apenas uma coleção de pedras do proprietário, sem caráter de arte. Ela está fortemente vinculada a uma ilha redonda, plantada em seu centro, único ponto notável na geometria de um círculo! Sempre evocando os jardins da Renascença, há ainda a presença do grotto, a gruta de onde se originam todas as águas, presente nos dois jardins acima citados. Em Vargem Grande, a água brota da boca do antigo lavador de café, esta fazendo o papel de grotto, cuja nascente vai criar toda a dinâmica do abundante elemento aquático no conjunto daquele jardim.
Roberto Burle Marx nunca me falou de alguma intenção de relacionar o jardim da Fazenda Vargem Grande com a Renascença italiana (4). Ou que esta tenha lhe inspirado no traçado do projeto. Então o que aqui se expõe tem caráter especulativo, hipotético. O que me faz lembrar um filme de John Houston em que, logo no começo, aparece na tela um cartaz dizendo: “Esta história não é real. Mas deveria ter sido” (5).
notas
NA - Publicado com o apoio da Istituto Universitario di Architettura di Venezia – IUAV, que, a convite do Professor Renzo Dubbini, recebeu o autor como professor-convidado para estudos e atividades acadêmicas em associação com os professores Barbara Boifava e Matteo Dambros, sobre a temática "A influência europeia na obra de Roberto Burle Marx".
1
MOTTA, Flávio L. Roberto Burle Marx e a nova visão da paisagem. São Paulo, Nobel, 1983.
2
Fazenda Ponte Alta. Projeto de paisagismo de Roberto Burle Marx, José Tabacow e Haruyoshi Ono, 1979.
3
O Giardino Segretto não é, como tem sido traduzido, um “jardim secreto”, no sentido de misterioso ou de escondido. Creio tratar-se de um erro de tradução, pois o verdadeiro sentido é o de um jardim segregado, vedado aos visitantes, para ser usufruído apenas pelo dono da Villa, do palazzo ou residência, e por sua família.
4
Há numerosos exemplos de jardins do Renascimento italiano que se enquadram nas características aqui descritas. Merecem menção a Villa Aldobrandini, em Frascati, a Villa Gamberaia, nas cercanias de Firenze e a Villa Garzoni, em Collodi, além dos dois já mencionados no texto.
5
“Roy Bean, o Homem da Lei” (no original, The Life and Times of Judge Roy Bean).
sobre o autor
José Tabacow é arquiteto (UFRJ, 1968), especialista em ecologia e recursos naturais (UFES, 1991) e doutor em geografia (UFRJ, 2002). Professor de paisagismo em diversas instituições, foi sócio do escritório Burle Marx Cia Ltda (1967-1982). É autor dos livros Arte e paisagem (Nobel, 1987), Árvores (AC&M, 1989) e Rio natureza (Rio Arte/ PMRJ, 1981). Em 2017 recebeu a medalha Mário de Andrade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.