Você já chegou a testemunhar o nascimento de alguma grande ideia? Não de uma daquelas que talvez um dia ganhem muita influência, mas daquelas às quais já foram dedicados milhares de livros e sobre as quais pessoas do mundo inteiro estão discutindo? Você já chegou a encontrar um lugar onde logo ficou clara a lógica do porquê de as pessoas terem pensado e feito exatamente assim e não de outro jeito? Nesse verão eu vi como nasceu a restauração.
Bíblia de Amiens
Isso aconteceu em Amiens, uma cidade francesa a uma hora de Paris. Amiens é um pouco maior do que a cidade de Pinsk (1). Foi lá que Jules Verne passou seus últimos trinta anos de vida. O silêncio provincial dessa cidade incentivava a criatividade do escritor.
Marcel Proust escreveu sobre a inevitabilidade de qualquer viajante precisar deixar logo a cidade, e só uma coisa nela atrai de verdade: a sua catedral gótica. Ela é um pouco mais jovem que a Kaloja (2) de Hrodna (3). As torres da fachada com 68 metros de altura foram concluídas em 1243. Eu acho que Hrodna até hoje não tem nenhuma edificação tão alta. O pé direito da nave da catedral é de 42 metros, o que seria comparável a um prédio de 16 andares. O acabamento com esculturas surpreende não menos do que o tamanho da catedral.
O crítico de arte britânico John Ruskin a descreveu assim:
“Quando você vê esse gigante formigueiro esculpido, cheio de personagens petrificados de altura humana, todo esse coro de santos, fileiras de profetas, apóstolos, monarcas..., você sente que grandeza é essa [...].
Isso não é uma “Bíblia de pedra” no sentido turvo de Victor Hugo: é uma Bíblia verdadeira, personificada em pedra”.
Para o seu livro dedicado à catedral, Ruskin deu esse nome: “A Bíblia de Amiens”.
A partir de 1981 a catedral passa a ser incluída na lista do patrimônio mundial da Unesco. Eu passei nela algumas horas, olhando atenciosamente para sua rica decoração e vitrais, respirando, saindo para pegar o ar e voltando. E só na terceira volta percebi isso.
O nascimento da restauração
Como descrever isso corretamente? Qualquer grande catedral gótica é um tipo de espaço criativo. Os templos demoravam séculos para serem construídos, reconstruídos e renovados. Hoje eles representam uma mesclagem de camadas de várias épocas. Por isso, na cidade vizinha, Reims, os vitrais de Chagall (4) são absolutamente adequados. Em Amiens, os móveis práticos da IKEA não atrapalham nem um pouco os púlpitos barrocos no interior gótico.
Não se pode falar de nenhum estilo unificado, mas tudo isso junto parece tão natural que o olho para de perceber as intervenções até que você tropeça de repente em algo muito novo.
Isso aconteceu comigo enquanto estava observando as capelinhas das abcides atrás do altar. Em uma delas, pintada claramente em uma época mais tardia, eu percebi os símbolos do poder real. O texto na placa conta que em 1853, exatamente quando a Igreja Kaloja de Hrodna foi tombada pelo rio Nioman (5), o bispo de Amiens trouxe para a cidade os restos mortais da Santa Aurélia. Especialmente para eles, o imperador Napoleão III financiou a “reconstrução” da abcide. Isso foi feito em um estilo fantasiado neogótico, com símbolos do poder monárquico. O imperador e os seus artistas sabiam o que estavam fazendo. Eles continuaram a saturação da área do templo, como tinha sido feito desde sempre.
As pinturas estilizadas da abcide “imperial”, arranhadas pelo tempo
Dez anos depois, em 1867-1869, o coordenador daquelas mesmas alterações, então já famoso arquiteto e historiador de arte, Eugene Violet-le-Duc, que acreditava compreender todos os segredos dos mestres góticos, decidiu seguir mais adiante e fez, na abcide vizinha, não apenas umas novas pinturas, mas as novas-antigas, do modo que elas poderiam ter aparecido no século XIII. Foi aí o nascimento da restauração.
Acontece que no momento do seu nascimento, a restauração não proibiu o moderno, sendo apenas uma nova maneira de decorar os muros medievais. Com um sentido maior, apelando à tradição, por exemplo. A restauração não veio de um respeito cuidadoso pela autenticidade e preservação, mas como a continuação da renovação.
O ser humano, pela sua natureza, aprecia dois estados opostos de um objeto material: a sua profunda antiguidade e a sua absoluta novidade. Os estados intermediários não são interessantes. A restauração, fazendo novo do velho, contém um paradoxo, e por isso é apreciada pelas pessoas. Violet-le-Duc começou esse caminho e virou o autor da primeira técnica científica de restauração.
No entanto, os exercícios dele estavam sendo observados pelo supracitado John Ruskin. Se o novo no interior antigo ainda era aceitável, então, o novo que tentava parecer o antigo, segundo ele, era uma fraude imoral, e, simplesmente, uma coisa feia. É como um homem idoso numa cafeteria infantil.
Ruskin conclamou a deixar o antigo continuar a ser antigo, e entrou para a história como oponente dos princípios de Violet-le-Duc. Indignado pela moda de renovação, ele, juntamente com seus colegas, fundou, em 1877, a Sociedade para a Proteção dos Edifícios Antigos. Os inimigos zombaram da situação, chamando-a de Sociedade para a Proteção contra a Restauração. Mas a opinião pública, de fato, nunca esteve a seu lado...
A morte e a ressurreição
No dia da minha visita, o “berço da restauração” estava cercado de andaimes. A placa de informações contou que há pouco tempo havia começado a restauração daquelas mesmas pinturas de Violet-le-Duc. Então, eu vi a morte da restauração, que aconteceu no mesmo lugar, 150 anos depois.
A morte, porque, em primeiro lugar, é a restauração da restauração. Parece ridículo. Enquanto a vizinha abcide “imperial” já ficou coberta com uma pátina e se tornou uma camada histórica harmoniosa, os experimentos estilísticos de Violet-le-Duc estão brilhando com as novas cores parecendo desenhos animados da Disney.
Em segundo lugar, se a ideia da restauração era o desenvolvimento e a renovação, aqui nós vemos um morto se mexendo na nossa frente. São tão desajeitados os esforços dele de ser novo, não ser pior do que em 1867, e, portanto, semelhante ao século 13, nas mesmas paredes autênticas, no mundo contemporâneo privado de ilusões... O que antes era uma ideia viva, transformou-se em uma repetição mecânica. Olhando para a pintura fresca, entende-se perfeitamente o enjoo de Ruskin.
No entanto, a restauração não está morta. E foi exatamente em Amiens que aconteceu sua ressurreição milagrosa. Na década de 1990, durante a limpeza da fachada a laser, os pesquisadores notaram traços de policromia. A fachada e as estátuas tinham sido pintadas de cores diversas no século 13. A análise química permitiu reconhecer as cores, e o computador, criar uma reconstrução hipotética de toda a pintura.
Após 10 anos de trabalho, este projeto único chegou à sua fase final, e Amiens testemunhou um milagre. Na frente da fachada, foram estabelecidos os potentes projetores multimídia, que transmitem uma luz colorida e incrivelmente detalhada para cada uma das esculturas. Todas elas estão "vestidas" de cores.
Cristo ressuscitou, mas ele não está na terra. Podemos falar o mesmo sobre a restauração contemporânea. Ela tornou-se uma conquista absoluta do progresso científico e técnico, do pensamento sobre a arquitetura, a autenticidade e as fronteiras da cultura contemporânea. Ela não existe. Isto, literalmente, é a luz da restauração, seu espírito, que se condensa e evapora. A aparição diante do povo, completamente efêmera, ela deixa depois de si a esperança para a vitória da razão sobre a ambição. Você pode vê-la apenas no verão, das 22h30 às 23h20, e também, antes do Natal. Projetos semelhantes foram implementados em outras catedrais, como Chartres, Saint-Denis e Reims.
Eu não queria que o leitor entendesse esse ensaio de forma muito literal. Eugene Violet-le-Duc fez muitos trabalhos antes e depois de Amiens. Ele deixou um maravilhoso patrimônio artístico. John Ruskin baseou-se não apenas na experiência francesa, mas também britânica e italiana. Uma boa restauração utiliza muito mais frequentemente as técnicas artesanais tradicionais do que as de computador.
Apenas uma coisa pode ser afirmada certamente. A restauração não é uma renovação mecânica de algo que existiu. Como tantas outras coisas, a restauração viva só pode existir na competição de ideias, e apenas como um repensar do monumento, da cultura e de nós mesmos. Caso contrário, ela está morta.
notas
NE – Tradução de belarusso de Volha Yermalayeva Franco. Revisão do texto em português de Paterson Franco Costa. Agradecimento a André Luiz Joanilho, intermediador do artigo.
1
Pinsk é uma cidade no sul de Belarús, com área de 51,48 km² e população de cerca de 136 mil habitantes.
2
Kaloja, ou a Igreja Kalojskaja, dos Santos Barys e Hlieb, em Hrodna, na margem do rio Nioman foi construída nos anos 1140-1170, sendo uma das construções mais antigas do país, e faz parte do patrimônio histórico e cultural de Belarús.
3
Hrodna é uma cidade belarussa, primeiramente mencionada nas crônicas em 1128, hoje um dos centros das regiões administrativas, com população de cerca de 369 mil habitantes.
4
Marc Chagall – famoso artista plástico surrealista, de origem judaica, nascido em 1887 e criado na cidade belarussa de Viciebsk, cujas paisagens foram tema constante das suas pinturas. Marc Chagall morou e trabalhou por muitos anos na França, onde faleceu na cidade de Saint-Paul-de-Vence em 1985.
5
Em 1853, a Igreja de Kaloja que se encontra na margem do rio Nioman, foi parcialmente destruída por um deslizamento. No final do século 19, a parte destruída foi renovada em madeira e a igreja foi coberta com um telhado de duas águas com uma pequena cúpula. Até os tempos atuais não param as discussões sobre os possíveis caminhos de restauração da igreja.
sobre o autor
Sciapan Stureika, antropólogo belarusso, doutor em ciências humanas na linha de etnologia, pesquisador na área de patrimônio cultural, presidente do Comitê Belarusso do Icomos.