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architectourism ISSN 1982-9930

Praça Jamaa el-Fna, Marrocos. Foto Victor Mori

abstracts

português
José Lira visita Sevilha pela primeira vez, após 25 anos da primeira tentativa frustrada de conhecer a cidade da Andaluzia espanhola; no texto, referência ao sertão brasileiro a partir da observação de ambientes culturais onde prevalece o pertencimento.


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LIRA, José. De Sevilha e outros Sertões. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 137.01, Vitruvius, ago. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.137/7075>.


Voltei de Sevilha ontem à tarde. Depois de cinco dias de longas caminhadas e muitos extravios. Seu casco histórico (segundo dizem, o maior de toda a Europa), como em tanta velha cidade generosa com o pedestre, fez o arquiteto perder-se muitas vezes. Como no Marrocos, de cujo reino aliás, séculos atrás, ela foi a capital. A bússola do GPS do celular também ali não se achava, confundia-se o tempo todo, hesitando até mais que o visitante que esqueceu que espaço também se mede pela curva solar, pelas fases da lua e a posição das estrelas. Foi o que aconteceu comigo também em Fez, aquela cidade marroquina ainda mais labiríntica que Sevilha, e tão linda entre as mais lindas em que já estive na vida; e por certo a mais extenuante, tal a sensação de desnorteio ante suas dobras e quebradas. E não só tragado por sua intensidade artesanal em pleno vigor, mas pelo assédio enlouquecedor dos guias amadores a cada passo. Bom, diferentemente de Fez, em Sevilha podemos nos perder à vontade, sem a amolação dos falsos cicerones.

Estive pela primeira vez na cidade andaluza há exatos 25 anos, numa viagem mal planejada e decisiva. Quase uma fuga, de certo modo redentora. Tinha 25 anos e perdera minha mãe fazia seis meses. Trancara o mestrado na FAU e o curso de Filosofia na USP, e desde então continuava no Recife sem saber quando e pelo que ao certo voltar. Enquanto isso, as chuvas pareciam começar a cair no Sertão nordestino em janeiro (ou era fevereiro de 1993?), depois de três anos de seca braba. Eu decidi ir verificar in loco se os jornais falavam a verdade.

Aníbal González, Plaza de España, adjacente ao Parque de María Luisa, inaugurada por ocasião da Exposição Ibero-americana de 1928
Foto José Lira

À época, não sei por que estava lendo as cartas de Colombo de suas viagens à América. Ainda me lembro dos primeiros sinais de terra que lhe chegaram: uma palha boiando no oceano infinito, gaivotas em voo livre, antes mesmo que se avistassem as primeiras ilhas do Caribe. Por alguma associação meio bizarra, fui atrás dos rastros da chuva. As notícias diziam que ela tava descendo a Pernambuco desde o Ceará, depois de entrar no continente pelo Maranhão por efeito do velho El Niño.

Entrei no Sertão por Arcoverde em uma paisagem antológica: carcaças aqui e ali pela terra árida, animais esquálidos, pessoas vagando como que sem rumo. Dei carona a algumas delas, não só por solidariedade mas atrás de informantes mais instruídos que a imprensa, inclusive sobre o final da estiagem. Já na estrada pra Triunfo havia nuvens no céu quase todo azul; no horizonte avistei uns grossos canhões d’água caindo cinzentos; alguns pareciam ter cruzado a estrada há pouco.

Em Triunfo, à noite, o céu desabou de uma hora pra outra e o açude no centro da cidade renasceu. Logo que estiou, o povo – e os sapos cururus – saíram às ruas pra festejar. Eu vi tudo: ficáramos trancados numa lanchonete de frente pro açude, e no meio do temporal vi que também ali tavam dois ou três vereadores e o delegado, que já tinham notícias dos arredores. Foi a chuva mais renovadora que já vivi. No caminho pra Serra Terralha e descendo até Floresta, os troncos das árvores já tinham mudado de cor e as flores de mandacaru tinham despontado, da noite pro dia.

Poucos dias depois, já de volta ao Recife por Águas Belas e Garanhuns, onde ela havia nascido, recebi através de Maria Ruth, minha orientadora na FAU, a notícia de que uma proposta de comunicação, sobre o que eu chamava de “explosão discursiva” dos mocambos no Recife nos anos 1930, tinha sido aceita pra um colóquio em Lisboa. Foi então que decidi embarcar pra Europa. Nunca tinha ido lá, mas tinha Ana, uma amiga granadina, Enio e Marília, em Paris, Augusto em Amsterdam, Rute em Siena, e assim de improviso e duro fui montando um itinerário afetivo e surfando pelos sofás dos amigos por uns bons dois meses. Foi então que planejei conhecer Sevilha.

Tio Lívio me emprestou um daqueles livros antigos sobre ‘A Semana Santa em Sevilha’. O congresso de Lisboa ocorreria nos primeiros dias da Semana Santa e no final dela atravessaria a fronteira. No livro dos anos 1950 havia descrições empolgantes, minúcias das congregações e procissões, seus cantos, bandeiras, andores e imagens, algumas antiquíssimas, tiradas dos mais ricos altares da cidade, procissões de lacrimosas, de encapuzados, de autoflagelação, enfim chegaria lá há tempo das procissões de sexta-feira da paixão.

No final, deu tudo errado. Na volta d’Oporto na quinta-feira de noite, onde os congressistas passáramos o dia, perdi o trem e todos os outros da sexta estavam lotados. Acabei pernoitando na casa de uma arquiteta angolana exilada em Portugal desde a Independência, Isaura. Ela também tomara parte do congresso e gentilmente me ajudou a encontrar um ônibus regional pelo Algarves no dia seguinte, oferecendo-me guarida em sua casa àquela noite. Daqueles anjos da guarda que encontramos quando andamos pelo mundo sozinhos! Será que é só pelos vinte anos que os encontramos?

Pois bem, depois de um périplo até Vila Real de Santo Antônio, descobri que perdera a última balsa pra Espanha pelo rio Guadiana. Novamente tive que ficar em Portugal. De modo que só chegaria em Sevilha no Sábado de Aleluia. A cidade estava uma festa só, um verdadeiro caos, mal consegui sair da rodoviária, multidões acotovelando-se pelas ruas, um inferno na terra, e depois de algumas tentativas de seguir qualquer andor decidi ir direto pra Granada, onde Ana me dissera serem as agremiações mais modestas. Em Granada passei bem uns vinte dias, alguns dos quais pelas Alpujaras, na Sierra Nevada, pra onde ela me despachou em uma expedição de inventário patrimonial por alguns de seus amigos historiadores e arquitetos da Província. Era esta a minha Andaluzia até aqui. Mas essa é toda uma outra viagem.

Ruas do bairro de Santa Catalina, Sevilha, na hora da siesta
Foto José Lira

O fato é que foi assim que, há 25 anos, não conheci Sevilha. Depois disso vim à Espanha algumas outras vezes, a Madrid e a Barcelona, e me apaixonei de vez pelo país. Não entendo como pude demorar tanto a conhecê-la. Instalei-me entre Santa Catalina e Encarnación, nos arredores do Palácio de las Dueñas, sede desde o começo do século 17 da Casa dos Alba, que acaba de abrir seus jardins, pátios e todo o andar térreo à visitação; das mais altas nobiliarquias, que chegou até a famosa Caetana, que dançava flamenco, adorava as touradas, cavalgava com elegância e pintava terrivelmente. No fim da rua, fica El Rinconcillo, um bar delicioso, sem pompa alguma apesar de fundado em 1670.

El Rinconcillo, taverna fundada em 1670, calle Gerona 40
Foto José Lira

Toda aquela região, intrincadíssima, lembrou-me não somente as medinas do Marrocos, ou os centros de cidades medievais europeias, e não somente as portuguesas, mas algo também dos bairros de Santo Antônio Além do Carmo, em Salvador, e de São José, no Recife, no que eles ainda guardam de iberismo, assim como de paroquiano e residencial, inseridos no entorno imediato do centro monumental, bairros mais discretos, mais populares ainda que essencialmente urbanos, com suas freguesias locais, redes costumeiras de sociabilidade, conversas de calçada, bares de esquina, largos e pracinhas animados por rodas de jovens, crianças e vizinhos. Em Salvador, do lado do Pelourinho; no Recife, do pátio de São Pedro, do Largo do Carmo, dos palácios de Santo Antônio, do Marco Zero; em Sevilha, próximo à Giralda e à Catedral, ao Alcázar, à Lonja, mas sem a confusão turística por eles catalizada.

Juan de Herrera, escadarias monumentais da Lonja de Mercaderes de Sevilha, 1583-1598
Foto José Lira

Não resta dúvidas do esplendor de seus grandes monumentos e legados romanos, visigodos, mulçumanos, mouros, sefaradis, almohades, católicos, o diabo; nem de suas igrejas, que museus inteiros invejariam; de sua pintura e imaginária barrocas, de seus palácios, museus e coleções, realmente deslumbrantes. Mas nada disso faria muito sentido se não estivesse ali, naquela cidade toda marcada por essas presenças, suas fronteiras, conflitos, sobreposições, afloramentos, milagres demasiado humanos.

Fonte no interior da Sala de la Justicia, século XIV, no interior do Alcázar
Foto José Lira

Pergunto-me até que ponto, para além de tradições e desígnios construtivos, aquele traçado enovelado não corresponderia também ao jogo dos territórios – pagãos e cristãos, orientais e ocidentais, fidalgos e plebeus, ligados a tais ou quais filiações, heranças, credos, práticas – de uma cidade poderosa, disputada, cosmopolita, destino de fluxos variados de gente, culturas, riquezas. Pois o que realmente é espantoso em Sevilha não é o aspecto excepcional de tal ou qual obra, mas o modo curioso como a cidade parece ter atravessado o último milênio, reconstruindo-se a cada nova conquista e reconquista, sem sacrificar inteiramente as camadas civilizatórias nela acumuladas, nem o caráter compacto, contínuo e coerente de sua fisionomia urbana. Como se ela fosse uma pequena cidade, e não a metrópole, que foi, e que é. Pois não é qualquer cidade que dispõe de um alcázar ou de um minarete daquela imponência; nem de catedrais e jardins reais tão elaborados; nem do túmulo de Colombo e de tantos reis, príncipes, duques e cardeais; nem da honra de ter sido o berço de Velásquez e de Murillo.

Azulejaria sobre as paredes externas do Pavilhão de Carlos V, nos jardins do Alcázar
Foto José Lira

Sim, uma metrópole mas de uma organicidade incomum em outras metrópoles de densidade histórica comparável. Ao menos em seu centro, onde as construções parecem ecoar, provocar, estimular umas às outras, quase nunca indiferentes às preexistências. Veja-se o jogo entre o mudéjar, o gótico, o barroco e o maneirista em seu Alcázar; ou a absorção da Giralda e do pátio das abluções pela Catedral, ainda que – ao contrário de Córdoba – em detrimento da Mesquita maior; ou a petição de autonomia – senão a cerimônia – com que Juan de Herrera implantou entre um e outro a sua Lonja, este elogio máximo do cubo, não apenas geométrico mas cosmológico, como bem notou Rafael Moneo. Algo similar poderia ser dito sobre o seu ecletismo e art-nouveau tão peculiares, ou sobre seus recorrentes regionalismos, críticos, pré-críticos ou pós-críticos.

Plataformas de embarque/desembarque da Estação de Santa Justa
Foto José Lira

Certamente, muita coisa boa se perdeu, abandonada, destruída, e muita coisa de péssima qualidade surgiu de mil anos pra cá, principalmente nas últimas décadas, talvez precipitada pela Expo 92, quando a Europa mal sabia o que fazer com a Espanha e vice-versa. Pra não falar dos novos bulevares habitacionais nos arredores do casco histórico, tão vulgares e mal construídos como de costume em operações imobiliárias como estas, voltadas às massas menos favorecidas do mercado; olhe-se para a própria gare de Santa Justa, uma das obras mais comentadas do período, do escritório local Cruz y Ortiz. Apesar das magníficas estruturas abobadadas de aço e vidro sobre as plataformas, resolveu-se a volumetria do vestíbulo principal – ele mesmo internamente inexpressivo – num exercício forçado e banal de styling.

Imagem 08

A ponte do Alamillo, de Calatrava, também festejada como ícone de 1992 – com efeito a primeira ponte atirantada em apenas um de seus lados, e plena de significados simbólicos naqueles 500 anos da primeira atracação de Colombo ao Novo Mundo – hoje parece antecipar os excessos de virtuose estrutural que marcariam sua grife desde então, às expensas dos erários públicos diga-se de passagem.

Vista da ponte de Alamillo, de Santiago Calatrava, 1989-1992, sobre o rio Guadalquivir, Sevilha
Foto José Lira

Sem duvida, o novo mercado público de Encarnación, o popular Las Setas ou Metropol Parasol é algo excepcional neste cenário recente. Projetado pelo alemão Jürgen Mayer, que venceu o concurso internacional de 2004, ele traz grande interesse visual, espacial e turístico àquela zona que desde meados do século 20 vinha perdendo vida com a demolição e ruína do primeiro grande mercado público da cidade, ali construído no século 19.

Cais de Triana ao entardecer, Sevilha
Foto José Lira

Oficinas de cerâmica no bairro de Triana
Foto José Lira

Contudo, ainda que tenha trazido graça e complexidade à situação urbanística, o novo espaço público e icônico da cidade também padece de grandes contradições: o mercado ele mesmo, reduzido a um mínimo gourmet de boxes – uma tendência nos mercados europeus, vide os de San Miguel e San Antón, em Madrid, ou o Forum des Halles, de Paris – parece enterrado sob a grande praça elevada; esta, por sua vez, é de uma aridez impressionante, como a velha praça Roosevelt paulistana, tal a escala da cobertura, o grau de exposição ao sol e a indigência do paisagismo e equipamentos; a própria estrutura espacial em grelha, que está na essência do projeto, ao fim e ao cabo foi um fiasco executivo e financeiro, levando o arquiteto a redesenha-la inteiramente em madeira laminada, sem dúvida de uma beleza geométrica impressionante naquele contexto, mas que confessa o elemento de improviso nas paredes metálicas que a recobrem até certa altura (não seria melhor tê-las assumido como um bom lugar para a prática do skate?), ou nas gambiarras constrangedoras que se agregam à cobertura.

Toldo urbano na avenida de la Constitución
Foto José Lira

Mas se obras como essas devem ter consumido recursos públicos talvez desproporcionais face a demandas tão singelas quanto elementares dos sevilhanos, e face às imensas sugestões que sua cidade não cessa de lançar à imaginação arquitetônica, o que de fato importa é o jogo sutil de camadas, territórios e fluxos que ainda tem lugar em Sevilha. Insisto nesse ponto não porque desconsidere o papel referencial, funcional e estético das obras de exceção na qualificação do espaço urbano e na experiência socioambiental do citadino. Mas porque estou convicto de que, ao fim e ao cabo, o que realmente importa na vida e felicidade dos habitantes de qualquer cidade é a capacidade que ela tem de acolhe-los na escala do cotidiano, das práticas habituais, das trocas sociais, afetivas, lúdicas, e na escala de seu corpo, estimulando suas capacidades físicas, motoras, sensoriais, eróticas, negociando com suas memórias, limitações, prazeres e dores, inclusive aquelas que vem do calor, do cansaço, da insolação ou da secura excessivas.

Gabriel Ruiz e Enrique Perea Caveda, Colegio Oficial de Arquitectos de Sevilla, 1986
Foto José Lira

Assim que é no traçado de seus largos e praças, que os contemporâneos têm sabido muito bem aproveitar; ou no de suas ruas estreitas, tortas, fora de prumo, em que sempre é possível encontrar um lado mais sombreado pra caminhar; e pra onde se voltam tantos vestíbulos ladrilhados de sobrados, com suas portas sempre abertas, canalizando o ar fresco de fora para os indefectíveis pátios internos, muitas vezes ajardinados e mesmo com fontes ou tanques d’água, que se comunicam com todos os interiores por varandas maiores ou menores; interiores protegidos da luz externa pelos velhos balcões, gelosias, muxarabis, gradis, floreiras; e com seus terraços superiores, quase sempre protegidos por pérgolas, latadas, lonas e cortinados reguláveis, como as que começamos a encontrar também, só que em escala urbana, nas ruas de pedestres, em trechos de praças ou nos grandes pátios semipúblicos de grandes instituições.

Persiana de enrolar de madeira, usada com frequência no sombreamento das janelas
Foto José Lira

Bom sinal aliás tê-los encontrado também no Colégio de Arquitetos de Sevilha! São traços, usos e releituras como esses que dão à cidade essa atmosfera tão instigante, tão sugestiva, tão sedutora quanto as mil cores e cheiros de rosa, jasmim, buganvília, resedá, sempre-viva, de alecrim, de laranja caída do pé, de um bom embutido ou refogado.

Pátio interno de conjunto residencial
Foto José Lira

nota

NE – Texto originalmente publicado na página Facebook do autor.

sobre o autor

José Tavares Correia de Lira é professor titular do departamento de história da arquitetura e estética do projeto da FAU USP e ex-diretor do Centro de Preservação Cultural da USP. É autor de Warchavchik: fraturas da vanguarda (Cosac Naify, 2011) e O visível e o invisível na arquitetura brasileira (DBA, 2017), e organizador, entre outros, de Caminhos da arquitetura, de Vilanova Artigas (Cosac Naify, 2004, com Rosa Artigas).

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