A zona monumental de Belém é uma das regiões de maior afluxo turístico de Lisboa. Pelos comboios que partem do centro da cidade chega-se rapidamente ao local de onde partiram os grandes navegadores portugueses rumo ao novo mundo.
Nesta região onde o Tejo quase encontra o Atlântico encontram-se dois dos maiores símbolos de Portugal, o Mosteiro dos Jerônimos e a Torre de Belém, exemplares de uma arquitetura que mescla características do final do período Gótico com o início do Renascimento, em uma fusão arquitetônica singular que ficou conhecida como Manuelina, em referencia a Dom Manuel I, o rei que governava à época. Iniciadas no início do século 16, as construções de ambas marcaram o primeiro impulso de atração populacional para Belém, freguesia assim batizada justamente pela presença do mosteiro, dedicado à Nossa Senhora de Belém, mas popularmente chamado de Jerônimos em função da ordem religiosa a que pertence.
Sua importância cresceu com o estabelecimento da família real na região após o grande terremoto que abalou Lisboa em 1755, e após abrigar a Exposição do Mundo Português, em 1940, no período do Estado Novo do ditador Salazar, quando grandes intervenções deram sua feição urbana atual. Desta exposição resta o Padrão dos Descobrimentos, monumento em concreto armado revestido em pedra que homenageia a epopeia dos descobrimentos portugueses e suas figuras mais ilustres.
Nas últimas décadas reforçou seu apelo turístico e cultural com a construção de equipamentos como o Centro Cultural de Belém (1988-1993), obra do italiano Vitorio Gregotti em colaboração com o português Manuel Salgado idealizada para receber a presidência portuguesa da União Europeia em 1992, e os novíssimos Museu Nacional dos Coches (2008-2016), de Paulo Mendes da Rocha, MMBB e o português Ricardo Bak Gordon, e o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia – Maat (2016), projetado pela inglesa Amanda Levete. Um pouco mais adiante em direção ao Atlântico, também vale a visita o Centro Champalimaud (2007-2011), instituto de pesquisas biomédicas idealizado pelo indiano Charles Correa.
Para além da região de Belém, nos últimos anos a capital portuguesa tem experimentado uma sensível intensificação do turismo de massa, estimulado por ações governamentais que a querem consolidar entre os principais destinos de viagem da Europa. Em artigo recente publicado nessa mesma revista, Sérgio Jatobá pondera sobre os efeitos benéficos e maléficos que as recentes hordas de turistas têm trazido para a cidade (1).
O novo Museu Nacional dos Coches, por exemplo, foi encomendado pelo governo português com o duplo objetivo de abrigar uma vasta coleção de carruagens históricas e integrar o projeto Belém Redescoberta, lançado em 2006 e tendo entre seus objetivos centrais impulsionar ainda mais o já intenso turismo na área.
O novo museu está situado exatamente em frente à estação de trem de Belém, com a qual integra-se fisicamente através de uma passarela que parte do bloco de apoio do museu e cruza as avenidas da Índia e Brasília, vias expressas que separam a parte habitada de Belém da orla do Tejo.
Até então sediado no antigo Picadeiro Real, edifício neoclássico projetado por Giacomo Azzolini em 1786, o museu só tinha espaço para expor cerca de um terço das 148 carruagens do acervo. O entorno é complexo, e além da via expressa, o local de implantação do museu confronta com uma praça ajardinada e na parte posterior com o casario histórico da rua da Junqueira, que avança sobre o terreno em cota mais alta, delimitando-o com o desenho irregular de seus muros.
A resposta de Paulo Mendes da Rocha é dada através de gestos claros e precisos, materializados em três volumes conectados por passarelas. O maior, um grande prisma horizontal branco e suspenso por pilotis abriga os setores expositivos e, no térreo, diversas estruturas de apoio. Ao lado, destaca-se a expressividade estrutural do bloco que abriga auditório, restaurante e setores administrativos. Do outro lado da avenida, um grande silo redondo para estacionamentos, branco e opaco, arremataria o conjunto, mas sua construção foi vetada pelo governo municipal.
Os caminhos aéreos e as possibilidades de percursos que cruzam o edifício pelo térreo revelam a dimensão urbana do pensamento de Mendes da Rocha, que recusa a ideia limitada de terreno para propor uma estratégia de articulação do território.
O interior do setor expositivo caracteriza-se por dois amplos pavilhões longitudinais, separados por um septo de ambientes de circulação e apoio, nos quais distribuem-se as belas carruagens históricas, cujos rebuscados detalhes são valorizados pela brancura do ambiente. Assim como nas galerias existentes na antiga sede, um percurso de passarelas “sobrevoa” os espaços, permitindo uma bela vista aérea do conjunto.
Também vale a pena admirar – especialmente por volta do meio dia - o espetacular efeito causado pela luz solar sobre a lâmina d’água que cobre o auditório, no bloco complementar.
Se à primeira vista a escala do museu parece entrar em rota de colisão com o entorno, uma análise mais cuidadosa permite identificar uma delicada costura urbana, revelada pelo posicionamento do bloco maior ao longo da via de alto tráfego e afastado da rua da Junqueira; pela relação de alturas, cores e predominância de vazios que o bloco anexo estabelece com o casario; e pela configuração de uma praça delimitada pelo espaço entre os dois e os muros irregulares, criando um lugar a um só tempo protegido e aberto.
Atravessando o eixo de espaços verdes entre a praça Afonso de Albuquerque e a Praça do Império chega-se ao Centro Cultural de Belém, um perfeito contraponto arquitetônico ao Museu dos Coches. Enquanto Mendes da Rocha levanta o edifício para não “incomodar” a dinâmica urbana, o edifício de Gregotti e Salgado aparece como uma fortificação, um castelo ou uma cidadela medieval. Nesse imenso complexo cultural a cidade entra no edifício através de passagens, caminhos e frestas que desembocam em pátios e praças, revelando ângulos da cidade ao redor.
A grande massa edificada não configura um volume monolítico, ao contrário, define-se pela sucessão de fragmentos que tentam amenizar o aspecto maciço da edificação.
O concurso para o CCB foi lançado em 1988 e previa cinco módulos, dos quais três estão construídos: o Centro de Exposições, que desde 2006 abriga o importante acervo do museu Berardo; o de Reuniões, cujas instalações foram utilizadas pela presidência rotativa da União Europeia em 1992; e o de Espetáculos, que conta com um auditório para música sinfônica e ópera, e outro para teatro e dança. Faltam o centro Hoteleiro e um setor comercial, que a atual gestão ainda pretende concluir.
Habitual aos brasileiros, o caráter francamente infraestrutural e a amplidão dos espaços internos da obra de Mendes da Rocha devem ter espantado muitos portugueses. Ao contrário, a atitude contextualista do CCB evoca uma espacialidade familiar aos europeus, mas seu aspecto maciço e interioridade por vezes labiríntica podem ser incômodos aos habitantes do novo mundo.
Atravessando a passarela que o Museu dos Coches lança sobre a movimentada via expressa, alcança-se o início de um pequeno parque à beira do Tejo, de onde sobressai a presença imponente de um grande edifício revestido por tijolos vermelhos. O prédio abrigava uma central elétrica do início do século 20, que a Fundação EDP – ligada à empresa Energias de Portugal – transformou em parte de um novo centro de artes, cuja joia da coroa é o novo Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, o MAAT.
Situado exatamente ao lado da antiga usina de eletricidade, o novo edifício de Amanda Levete – sócia de Jan Kaplicky no Future Systems até sua morte, em 2009 - impõe-se como uma onda que avança sobre a orla do Tejo. Sua arquitetura sinuosa e líquida sugere diversas imagens relativas ao universo aquático e a fachada, revestida de peças cerâmicas, reflete a luminosidade do rio e da iluminação noturna, evocando a tradição da azulejaria portuguesa.
Imaginado como operação topográfica, a cobertura do museu passa a fazer parte do percurso pela orla do rio e indica que se pode passar sobre e por dentro da arquitetura. O lúdico passeio pela cobertura não esconde a preferência total da arquitetura pela privilegiada vista do Tejo, relegando à parte posterior, voltada à avenida Brasília, um papel visivelmente secundário.
As escadarias na orla e defronte ao museu passaram a ser um animado ponto de encontro entre jovens, que dividem o espaço com muitas pessoas praticando corrida e pedalando suas bicicletas.
Internamente, o museu divide-se em apenas quatro grandes salas, com protagonismo inequívoco à Oval Room, espaço ovalado de grande altura, localizado no centro do museu. A Galeria Principal, a Video Room e a Project Room seguem a fluidez formal e espacial que caracteriza as obras do escritório.
Na mesma avenida que leva os nomes de Brasília e da Índia, dois quilômetros à frente do museu do brasileiro Mendes da Rocha fica o Centro Champalimaud, do indiano Charles Correa. Morto em 2015 e pouco conhecido no Brasil, o arquiteto é um dos responsáveis pelo desenvolvimento de uma arquitetura indiana com características próprias, após a independência da Inglaterra em 1947.
Sua obra lisboeta é uma fundação privada de pesquisas biomédicas, especializada em neurociências e câncer, que possui também centros clínicos para tratamento. Leva o nome do empresário português Antônio Champalimaud, que também viveu no Brasil, onde fez fortuna com negócios relacionados à agropecuária e à industria cimenteira.
A obra ocupa um aterro próximo a foz do rio Tejo, com um dos lados encurvados na direção da Torre de Belém, do qual o arquiteto tirou partido na definição de uma obra composta por três partes independentes: a maior para cientistas e diagnósticos; uma segunda para auditório, sala de exibição, café e administração; e um anfiteatro ao ar livre voltado para o rio.
Do hall do bloco maior avista-se um exuberante jardim tropical coberto por pérgulas metálicas, indicando ao mesmo tempo a preocupação ambiental e energética que caracteriza as obras do arquiteto, e seu caráter aberto e espontâneo.
Entre as formas sinuosas dos blocos, um grande espaço público em rampa ascendente conduz o visitante ao ponto alto do conjunto: a espetacular vista para o imenso espelho d’água do Tejo, já se abrindo em direção mar. Dois monólitos verticais de pedra atraem as pessoas da entrada para a cota mais alta da rampa, que passeiam pela leve subida espreitando os interiores ajardinados através de grandes aberturas ovaladas nas superfícies externas. No final do caminho, um espelho d’água estrategicamente posicionado cria a ilusão de que suas águas se misturam às do rio símbolo de Portugal. Para completar o efeito supresa, no centro da lâmina d’água uma calota de aço inoxidável reflete as nuvens e evoca o universo aquático, como um casco de tartaruga, ou uma ilha perdida em meio à imensidão do mar.
Antes de chegar ao topo, muros encurvados indicam que à esquerda do visitante há algo mais a descobrir. Ao transpassá-lo, um generoso anfiteatro ao ar livre tem como fundo de cena a paisagem do Tejo e a presença da icônica Torre de Belém.
Muitas objeções podem ser feitas ao caráter de parque de diversões arquitetônico em que se está transformando a zona monumental de Belém, uma das regiões mais significativas para a história de Portugal. Sua trajetória parece sintetizar as contradições contemporâneas sobre o turismo, a cultura e a história em tempos de hiperconsumismo. Até por isso, apreciar com olhar crítico as transformações pelas quais passou ao longo do tempo, e ver de perto seu acervo de extraordinárias obras de arquitetura, antigas e novas, vale a visita!
notas
1
JATOBÁ, Sergio. Turismo de massa em Lisboa. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 135.03, Vitruvius, jun. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.135/7002>.
sobre o autor
Ivo Giroto é doutor em Teoria e História da Arquitetura pela Universidad Politécnica de Cataluña – UPC (2014) e arquiteto e urbanista graduado pela Universidade Estadual de Londrina – UEL (2005). Atualmente realiza sua pesquisa de pós-doutoramento pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, com apoio do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp (processo n 2016/21108-2).