Carnaval em Salvador é o famoso carnaval de rua, um verdadeiro carnaval popular, onde todo mundo pula de pipoca. Já ouviu falar disso? Então, hoje em dia isso tem mais a ver com os carnavais de bairro, de fato populares, com uma kombi na frente, orquestra de trompetes, como o pré-carnaval da Ladeira da Preguiça, aqui no bairro central do Dois de Julho.
Mas o carnaval mesmo, aquele que a prefeitura chama do maior carnaval de rua do mundo e aquele que atrai turistas, acontece nos três circuitos principais, todos em regiões centrais da cidade, com trios elétricos, camarotes e muita cerveja. Uma festa enorme que exige muita preparação e transforma completamente as partes da cidade que atinge, ocupa as calçadas e fecha as praças.
Neste texto, não vou falar dos problemas relacionados ao barulho, à camarotização, à segregação, ao lucro, à criminalidade, nem da festa em si. Vou focar na transformação do aspecto espacial e visual da cidade causada pelo carnaval.
“A praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião”, – cantou Caetano Veloso na década de 1970.
VELOSO, Caetano. “Um frevo novo”. Youtube, 4 set. 2015 <https://www.youtube.com/watch?v=UVay3K9yj-U>.
Hoje a praça Castro Alves é da festa, mas inacessível para o povo. O Castro Alves está cercado de tapumes e a praça ao redor dele está ocupada por barracas de apoio e banheiros químicos.
As pessoas que moram nos circuitos protestam, mas não são ouvidas. Ficamos trancadas nas nossas casas. Não podemos dormir em paz por causa do barulho. Não podemos atravessar a rua para ir ao mercado sem passar por um baculejo. Não podemos dormir em paz. Não podemos caminhar, correr e fazer outras atividades nas praças do bairro.
Pode parecer besteira, são apenas seis dias, daria para aguentar uma vez por ano, não é? Mas são semanas de transtornos antes e depois do carnaval, porque a estrutura de apoio para a festa exige a construção de praticamente uma nova cidade dentro da outra.
Todo ano, na véspera do carnaval, observo como a aparência da cidade muda, ficando quase irreconhecível, ocupada pelas instalações de apoio, fileiras de banheiros químicos, camarotes enormes e barricadas de tapumes. Quero compartilhar a experiência deste ano com vocês.
Durante o carnaval as ruas – as pistas – são entregues aos trios, portanto, as calçadas não interessam. Mas precisamos de calçadas antes e depois, e, algumas semanas antes da festa, já somos impedidos de utilizá-las.
Os camarotes demoram semanas para serem construídos. Assim que acaba o recesso natalino começa a armação, fechando as praças, as praias e as vistas da orla. O circuito Dodô (Barra-Ondina) ocupa bairros mais ricos, com hotéis, ruas mais largas e vista privilegiada para o oceano, que vira exclusividade dos camarotes construídos em grande quantidade para este circuito.
As bancadas, os postos da polícia e dos bombeiros são indispensáveis durante o carnaval e estão presentes nos arredores dos circuitos.
Junto com as calçadas, somem os pontos de ônibus. São desmontados para dar espaço às instalações do carnaval e para evitar acidentes, pois são feitos com placas de vidro. Por causa disso, antes e depois do carnaval, as pessoas são privadas de sombra enquanto esperam ônibus, no calor do verão.
As calçadas do centro de Salvador, em grande parte históricas, de pedra portuguesa, com diversos ornamentos em preto e branco, passam por um conserto e regularização todo ano antes do carnaval. A princípio, isso é lógico e plausível, pois deve evitar lesões do público. Porém, sempre me pergunto, por que não são consertadas também depois do carnaval, pois as pedras saem do lugar e o resto do ano as calçadas permanecem esburacadas. Mas o pior é o jeito que esse conserto é feito. Realmente, que diferença faz tampar os buracos substituindo as pedras ou passando cimento?
O carnaval é uma festa de muita cerveja que dura o dia todo, com uma breve interrupção pela manhã. Então é lógico que todas as ruas e becos ao redor dos circuitos sejam ocupados pelas fileiras de banheiros químicos, instalados semanas antes da festa, porém fechados até a véspera.
Mas se o povo só usasse os banheiros para fazer as necessidades, provavelmente não precisaria colocar tapumes ao longo do circuito. Pois senão, qual seria a explicação da tapumização não só das fachadas – umas históricas e outras não tanto – mas também das grades e até mesmo das portas de enrolar.
Se observarmos com cuidado, podemos perceber que os tapumes são colocados de jeitos diferentes, dependendo muito de quem é responsável.
Se tivesse prêmio pela tapumização responsável, quem poderia concorrê-lo seriam o Palace Hotel, na rua Chile, e o Wish Hotel da Bahia, na avenida Sete de Setembro. Ambos ocupam notáveis monumentos arquitetônicos e colocam tapumes padronizados pintados de preto. O Palace Hotel, com aviso, pedindo desculpas pelo transtorno. E o Wish, utilizando os mesmos buracos para estabilizar os tapumes, reaproveitando-os todo ano sem estragar a calçada.
A Universidade Federal da Bahia – UFBA costuma colocar tapumes da cor natural de madeirite ou verde e não se preocupa com grades, a proteção fica por dentro.
Outros estabelecimentos também usam essas cores, e, por vezes, rosa, que era muito mais comum nos anos anteriores. Será que passou a ser menos utilizada por medo de acusação da ideologia de gênero? Pode parecer brincadeira, se não considerar a observação colocada por meu esposo Paterson Franco, de que a parte da tapumização, administrada pela prefeitura da cidade, liderada pelo prefeito ACM Neto, do Partido Democratas – DEM, este ano, colocou praticamente exclusivamente tapumes de cor azul, cor oficial do atual governo, e contrária ao vermelho comunista.
Imagino que turistas que vem para o carnaval em Salvador, de fato, tem interesse principal pela festa em si. Mas é triste compreender que justamente na época quando o maior número de visitantes chega à cidade, a maior parte dos museus são obrigados a fechar as portas, e uma grande parte do nosso Centro Histórico, nosso patrimônio material mundial, pelo qual passa um dos circuitos tradicionais, se encontra interditado e descaracterizado.
As igrejas interditadas, os museus fechados, as portas, as janelas e as grades tapumizadas.
Por último, os monumentos não arquitetônicos, mas aquelas esculturas que representam as personalidades históricas, significativas na história do Brasil e de Salvador. Como se encontram? Nestor Canclini escrevia em Culturas híbridas que os monumentos nesta configuração perderam sua importância, e as pessoas, que residem ou visitam as cidades atualmente, dificilmente prestam atenção a essas esculturas. Mas as autoridades municipais, sem demonstrar preocupação com a necessidade de ressignificar estes monumentos, ou de limpá-los de sujeira durante o ano, ou de restaurar (pelo menos devolver a lança de Zumbi roubada no início de janeiro), ainda tem a preocupação de protegê-los da multidão, colocando em caixas de tapume. Isso é o destino de todo mundo, do grande herói Zumbi dos Palmares às Gordinhas de Ondina; de Thomé de Souza que mandou construir Salvador em 1549, até o primeiro bispo do Brasil, Pero Sardinha.
E o exemplo mais triste, a dupla Dodô e Osmar, os inventores do trio elétrico que hoje marca os maiores circuitos de Carnaval de Salvador chamados em homenagens dos seus criadores, foram colocados numa caixa azul, de dentro da qual nem vão poder admirar a sua invenção...
sobre a autora
Volha Yermalayeva Franco é mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia. Graduada em Patrimônio Cultural e Turismo pela Universidade Europeia de Ciências Humanas (2012) em Vilnius, Lituânia. Reside em Salvador.