Chuva estiada, tempos difíceis, sequidão. A vegetação mostra resistência com suas poucas folhas verdes e vence dia após dia esse longo período sem chuvas: são aproximadamente oito meses sem água em clima seco. A paisagem está cinza, repleta de troncos e galhadas retorcidas, as copas de árvores estão ralas ou sem nenhuma folha verde aparente, parecem árvores mortas. O dia grande, a noite pequena. O céu: azul e branco, e por cima desta mata seca: poeira, poeira! O sol é intenso, queima. Rodando pelas estradas afora observa-se que não há sombra. Uma sensação de braseiro, uma fornalha. Aparentemente a morte aqui é certa, nem se fala em plantação. O lago secou, as carcaças de peixes, que se debateram até o último momento de suas vidas, apodreceram como testemunhas deste período difícil; nem mesmo os urubus dão conta de estraçalhar os restos dos detritos, uma tamanha judiação. Os riachos que não secaram correm com água translúcida pelo sertão mineiro, em meio ao pó e à terra vermelha que encarde a pele e o suor. Dentro das casas de adobe (1) ou sapê (2) muitos vasos e potes que armazenam água estão vazios. É final de outubro, este ano a estiagem se prolongou demais da conta, uma áspera lição de resistência. O povo descalço faz sua penitência, o ritual da chuva, cada um leva sua vasilha carregando o pouco de água que sobrou para derramar ao pé do cruzeiro pedindo em uma canção: “São Barnabé que morreu lá na serra pedindo Nossa Senhora que dê chuva cá terra. Chuva por esmola e também o pão que nos consola”.
Tristeza sem fim que está para acabar. Já faz três noites que para o norte dos gerais (3) relampeia, é a chuva chegando no sertão, há festa e esperança. É vento, redemoinho e a temperatura já baixou. Ela está chegando. Povo alegre, mas mais alegre a natureza. De pouquinho, o verde se espalha, brota da terra, a vida renasce das cinzas, sobe o cheiro de terra molhada, mato verde: que riqueza! Veredas borbulhando, riachos cantando, vento soprando. As árvores florescem. Um festival de cores. O povo comemora com a plantação. Logo teremos melancia, mandioca e feijão. O gado que estava no jirau se fortalece, engorda, dá leite. É, a vida sofrida do povo sertanejo não acaba na estiagem, pelo contrário, reafirma-se através de sua identidade, da cultura (4) e de sua íntima relação com a natureza.
O terreiro é limpo com uma vassoura de marva (5), feita de uma vegetação rasteira do cerrado (6). Antigamente, quando as casas eram todas de chão, não tinham contrapiso e nem piso, os moradores da região já a usavam para varrer a parte interna de suas casas feita de terra batida. Naquela época a vassoura não tinha cabo de madeira, era só um arranjo. Era de costume ter também uma vassoura de capim, que tirava toda e qualquer terrinha fina que ainda ficava no chão. Nessa época do ano, após as primeiras chuvas, com tudo limpo, há festa, casamento. A música não para, é tocada a noite inteira, os violonistas, compositores e cantores do norte das Minas Gerais retratam em suas músicas os aspectos regionais do sertão. Uma poética melodia rica de bons tons. Basta uma viola caipira, um acordeon e o percussionista para animar os lugarejos (7).
Após a festança da noite o dia amanhece no sertão. Com gravetos, o fogão a lenha é aceso para o preparo do café preto que será servido com biju. Dentro de casas humildes, construídas com barro (8), esse mesmo fogo é mantido durante o dia todo. O frango caipira que está na panela é para o almoço, ele será servido ao meio dia em ponto com angu (9) e ora-pro-nóbis (10). As famílias se reúnem em torno de uma grande mesa de madeira maciça, fazem suas preces a Deus e a Nossa Senhora Aparecida. Há fartura. Da mesa ninguém sai, as crianças brincam com bonecos de espiga de milho no terreiro. Ali, de onde ninguém saiu, logo é servido o café da tarde com uma rica diversidade: biscoito, queijo, frutos locais como o umbu, seriguela e o cajá-manga e o cafezinho para acompanhar; assim, nos dias de festa, prosseguem até a hora do jantar.
Logo à frente, seguindo por um caminho estreito no meio do cerrado, sai fumaça da casa de farinha da vizinhança – este é um elemento peculiar que chama a atenção na paisagem sertaneja. Essas casas espalhadas principalmente pelo norte e nordeste do país asseguram a preservação de um ambiente construído, de alto valor simbólico comunitário, que se torna um objeto interessante por fatores resilientes (11) de sobrevivência atribuídos a um conhecimento passado de geração em geração, que persistem até os dias de hoje. A casa de farinha merece destaque não só pela sua materialidade, mas pela sua total harmonia com o meio ambiente e com a cultura popular (12) como seus saberes e formas de expressão. Ali a mandioca foi plantada, colhida e descascada para início da produção da farinha. Imersa na água por três dias em um processo de produção de sua massa, a mandioca é prensada, peneirada e torrada em um grande forno. Sobre a chapa, a massa deve ser mexida constantemente para secar de forma uniforme e não queimar.
Aqui a vida dos povos tradicionais (13) é regida pela natureza, sobretudo pela água que vem do céu, com sua escassez ou abundância. Na primeira chuva o homem do campo planta e desta maneira espera a segunda, a chuva do crescimento, da boneca. Quando chove bem se colhe de tudo: milho, feijão, feijão catador (que é como eles chamam o tropeiro) e hortaliças. Quando não chove, o homem perde tudo. Fica sem nada. Vivem uma típica vida de camponeses (14), exaustiva e sem descanso. O período de estiagem trouxe uma série de impasses e, com o passar do tempo, o homem viu a chance de repensar os usos das águas com diferentes soluções afim de enfrentar este rígido clima semiárido; entre estas soluções estão a captação e armazenamento em cisternas da água da chuva, canteiros inteligentes, plantio em curvas de nível e agroflorestal. Em função desta forte relação de dependência com o meio ambiente (15), os povos tradicionais desenvolveram um processo adaptativo de manejo tradicional (16) do território, que hoje culmina no aproveitamento da natureza, dos seus recursos disponíveis no espaço físico a partir de um conhecimento que se perpetua por gerações. Esses recursos expressam temporalidades distintas que remetem a tempos longínquos, às heranças indígenas e quilombolas, ao colonialismo e a processos migratórios que acontecem até os dias de hoje. É perceptível como a natureza e o modo de vida local refletem-se na paisagem cultural (17).
Aqui, o Peruaçu corre envolta, é a preciosidade do lugar; a meninada toda no riacho, faz-me lembrar como ele era cheio, uma fartura de água, peixe, pesca. E hoje está assim, só no filete. A água diminui bastante, dizem por aí que até a nascente já secou, que ele só se mantém por causa de alguns olhos d’água rio acima. Eu mesma hoje peço a Deus que enquanto eu tiver aqui na terra que não o veja secar. Eu lamento. A formação desse lugar data de milhões de anos, é ainda da época em que parte do Brasil estava submersa pelas águas de um mar. Com a elevação do nível da terra, o mar secou e este processo deixou inteiros grandes maciços de calcário. O Rio Peruaçu, no seu curso médio, penetra durante 17 km, teve seu curso natural fechado por um desses maciços e com o tempo a ação erosiva das águas foi esculpindo a pedra calcária em busca de uma nova saída. Esta ação do tempo originou um extenso canyon, repleto de grutas, abrigos sob rocha, paredões e escarpas repleto de cavernas (18). É uma beleza exuberante com cavernas colossais, paredões arruinados, dolinas colapsadas, pontes naturais, nascentes e centenas de pinturas rupestres com mais de 12 mil anos, que juntamente com uma rica flora e fauna transformam a região em um paraíso natural.
O Peruaçu é abastecido por pequenos córregos tributários de sua calha, de nascentes que se encontram nas encostas de seu relevo e de inúmeras veredas que marcam a paisagem de muita largura com seus buritizais. “O buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; daí o buritizal, de um lado e de outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo” (19). Veredas, áreas úmidas de solo encharcado, matéria orgânica abundante, nas quais afloram nascentes e cursos d’água funcionam como drenos naturais, retendo água mesmo no período de seca, sendo verdadeiros oásis para região. Veredas, tão bela quanto frágil. Com tamanha vitalidade, o Peruaçu segue, corre abaixo e desagua em um imponente rio de integração nacional, o São Francisco. Com 2.830 quilômetros de extensão, o rio banha cinco estados brasileiros: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Por aí estende-se grande, profundo, calado como sempre, garante a sobrevivência do sertão, das plantas, dos animais e seres humanos, abastecendo desde grandes cidades, distritos, a vilas de povos tradicionais que vivem a sua margem. Opará, assim foi chamado pelas primeiras populações indígenas e ribeirinhas, afinal “por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão” (20).
O Velho Chico avança sobre o território de forma solta, suave, e no período de seca desenha e redesenha ilhas no seu leito, território de grandes parcelas de solos aluviais (21) deixados na calha do rio em consequência da descida das águas. A natureza transforma estas áreas de concentração de matéria orgânica em energia, energia para o plantio, para a sobrevivência de comunidades ribeirinhas (22) que vivem de atividades agrícolas, por um período do ano, de acordo com a sazonalidade. Quando com águas baixas, o povo se concentra nas faixas de inundação: nas vazantes ou nos lameiros. Assim vivem as comunidades ribeirinhas de vazanteiros (23). O rio compõe seu transporte, a fonte de seu alimento, comanda a divisão de seu calendário, o período do plantio e colheita de sua roça, além de ser o cenário de suas lendas e de sua história. Os vazanteiros construíram junto com as condições ambientais um modo de viver às margens do São Francisco. As atividades do seu dia-dia costumam relacionar todos os integrantes família, desde os mais velhos e filhos, aos vizinhos que se integram a comunidade. É uma produção de dinâmica expressiva na subsistência familiar e comércio local, produzida para manutenção da família e com seu excedente ofertado para os comércios locais. O Rio é a água, o passado, o presente, é o futuro. Na época de chuvas o rio fica bravo, valente, arranca toco, cobre mato, muda casa de lugar e mata gente. O povo corre lá para o alto, o rio engole tudo, cobre todo este sertão.
Mesmo assim, não podemos negar: esse Rio sustenta tanta gente que não podemos degradar. Do plantio à pesca, da vida de agricultor à de pescador. Ali, próximo à água vermelho amarronzada do Velho Chico, em canoas coloridas de madeira, pescadores usam as tarrafas, aquela que se joga de roda e é usada mais no beiral do rio, nas monteiras. Para o meio do rio é usado o anzol, a rede ou o aço. Dentre os pescadores, está Carlúcio (24), que é conhecido na região, bom de história. Naquele dia sua filha foi à beira do rio com o pai pescar, ela se chama Vitória. Dizem por aí que ela era perseguida pelo Caboclo D’água. Eu não sei não. Estávamos lá no rio, então disse Carlúcio que nem um mês atrás acontecera um fato engraçado, Vitória olhou para ele e falou assim:
– Ô painho me dá dinheiro pra compra sorvete.
Ele falou:
– Seu pai não tem dinheiro não minha filha, mas vamos olhar os anzóis ali no aço, se tiver peixe, eu pego o peixe, vendo, e te dou o dinheiro.
Ela respondeu:
– Tudo bem.
Carlúcio e Vitória foram até a rede ver se haviam pescado algo. Na hora que chegaram lá, diz ele que a filha olhou para água e falou bem assim:
– Caboclinho D’água, Caboclinho D’água dá um peixinho para painho que painho tá sem dinheiro.
– Vitória! Para de brincadeira Vitória! Cê sabe que o Caboclo D’água é meu amigo é esta pinga e este fumo que eu ando aqui é para dar para ele e você fica com brincadeira...
Aí, ela tornou a olhar para água e falou:
– Caboclinho D’água, Caboclinho D’água dá um peixinho para painho que painho tá sem dinheiro.
– Vitória, para!
Aí ela ficou quieta. Nisso, conta Carlúcio, que a mãe dela chamou porque ela estava ali na beira do Rio, que é perigoso. Quando Vitória saiu, ele olhou o anzol, não tinha peixe nenhum, então soltou o aço (25). Quando soltou, o barco não ia nem para a frente nem para trás, estava seguro. Logo ele pensou:
– Deus do Céu, o que faço aqui nesta beira de Rio?
Então falou bem assim:
– Caboclinho D’Água, Caboclinho D’água a menina que te pediu peixe não tá aqui não, então cê solta o barco.
E nada de soltar... Então pegou a pinga que tinha ali e jogou dentro d’água, na hora que jogou dentro d’água, soltou o barco. Então ele logo foi para fundo (26) da canoa para ligar a rabeta (27), e ouviu bem assim:
– Ô Carlucio!
Olhou pra traz e falou:
– Que foi?
– Essa pinga que você jogou dentro d’água é muito ruim, é fubuía (28), pinga boa é a selada lá de Caribé (29).
Moço, Carlúcio disse que saiu correndo que nem um doido para beira do Rio. Chegando lá e foi contar a história (30) para os colegas. Então eles viraram para ele bem assim:
– Ô Carlúcio, você é mentiroso de mais, cê quer dize que o Caboclo D’água conhece você, sabe seu nome e sabe que a pinga boa é a selada? (31)
Muitas risadas. Assim como Carlúcio muitos pescadores relatam causos sobre o caboclo d’água e suas desavenças. A suas amarrações de canoas no meio do rio e as táticas para soltura. Além da pinga Caribé, contam sobre o fumo, sobre o uso de carrancas e a batida de faca no fundo da embarcação.
Entre as comunidades ribeirinhas a atividade da pesca é realizada desde o curso principal do Rio São Francisco a suas lagoas marginais, principal lugar de reprodução da ectiofauna. Porém, no percorrer desse rio, muitas dessas lagoas se encontram nas proximidades ou em áreas de preservação ambiental, que de acordo a legislação vigente, criam conflitos territoriais com o modo de vida das comunidades ribeirinhas. Tal proteção não permite mais que as mesmas exerçam suas práticas cotidianas, como a pesca e o manejo da natureza. Manejo tradicional vinculado às atividades agrícolas que resultavam na limpeza dos sangradouros entre o rio e lagoas e, conforme depoimentos da comunidade, favoreciam a vitalidade destes espaços, asseguravam a reprodução de peixes no local. Nas proximidades da lagoa, em uma área de várzea, realiza-se, ou realizava-se o plantio. Nas áreas alagáveis o arroz, mais acima da calha, em áreas úmidas o feijão, o milho, a abóbora, a melancia e o melão, e, já no alto, em compartimentos mais elevados, a mandioca. Todos estes alimentos mantinham um ciclo de subsistência das comunidades ribeirinhas desta região do rio São Francisco.
Na Ilha do Jenipapo, onde as comunidades de vazanteiros ainda podem produzir conforme seus antepassados, realizando o manejo tradicional do território, encontramos o plantio de feijão, abobora e melancia. Adentrando a ilha, em uma parte mais alta onde o rio não chega, uma casinha de taipa de mão, a antiga casa da família que agora é deposito. Ao lado, uma nova edificação, em alvenaria. Aqui a vida é tranquila, a travessia do rio sempre é assim, feita pela canoa a remo, para distâncias maiores se usa o motor, a rabeta. Seu José (32), vazanteiro de Morro Alto lembra, teve um tempo que existia o vapor, há uns 30 anos atrás, seu pai saia umas 4 horas da manhã e chegava em Januária (33) umas 5 da tarde.
O canoeiro de braços fortes, de pele curtida pelo sol e pelo vento, acaba de me deixar de volta à beira deste imenso rio, belo, que encanta e envolve a gente, tanta água no do coração deste sertão. Velho, rico Chico.
– Inté mais ver.
– Deus te guie.
– Amém.
Então ele segue para lá do rio, vira sobre ondas tranquilas no barco a vagar ainda na beira. Ouço o sussurrar de sua voz vinda próxima de um juazeiro (34): “O Rio São Francisco é sua morada, Caboclo D’agua foi quem descobriu. Quando eu morrer me enterre em uma cova rasa bem no meio dessa mata, lá na curva desse rio” (35). E eu ainda ali, naquela barranca, ouço alguém próximo a me dizer: “Olha menina, arreda o pé daí, a boca da noite está para chegar, caboclo d’água sai lá das profundezas, se te encontrar, pode te levar”. Meu São Francisco, santo do rio, me protege de quem quer me pegar, deste caboclo d’água que vem pra praia para poder namorar. É muita a saudade que eu vou sentir das andanças pelo sertão, das estradas sem fim, das horas ao meio do pó, sequidão, deste rio, rio da integração. “Então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro — o rio” (36).
notas
NA1 – Agradecemos Ana Amália Alves, diretora da Solte o Verbo, responsável pela revisão do texto em português respeitando os dialetos populares do interior de Minas Gerais; e Marianna Krausse Dirickson responsável pela Revisão do texto em Inglês
NA2 – Esta narrativa foi elaborada a partir de experiência vivida durante as atividades de pesquisa de campo realizadas pelo Instituto Pequi do Cerrado em parceria com a pesquisa de doutorado da primeira autora, Ana Carolina Brugnera. A tese tem como objetivo trabalhar o conhecimento popular passado de geração em geração das comunidades rurais do entorno do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu e seu envolvimento com o território, com a natureza. Este trabalho está em andamento e é desenvolvido através do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, orientado pelo Prof. Dr. Abilio Guerra, com apoio da Capes, CNPq e do Instituto Pequi do Cerrado. Além destas instituições o desenvolvimento também é realizado em parceria com a universidade alemã RWTH Aachen, onde a pesquisadora é aluna de doutorado, sendo sua orientadora a Prof. Dr. Ing. Carola Silvia Neugebauer.
1
Adobe – tijolo de barro cru usado na construção de edificações desde a época colonial.
2
Sapê – também conhecido por taipa de mão ou pau a pique é a construção com estrutura de madeira treliçada preenchida de barro, técnica usada na construção de edificações desde a época colonial.
3
Gerais – território bastante peculiar localizado no Norte de Minas, na divisa entre os estados de Goias e Bahia, as margens do São Francisco, onde em uma porção de terras estão importantes nascentes e afluentes deste rio. Uma mata nativa bem preservada e de grande quantidade de espécies endêmicas. Lá “o gado no grameal vai minguando menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o resto de curraleiro e de crioulo. Sempre, no gerais, é à pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra”. ROSA, João Guimaraes (1956). Grande Sertão: veredas. 19a edição. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001, p. 29.
4
Sobre patrimônio cultural, ver: UNESCO. Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, 17ª sessão, Paris, 17 de outubro à 21 de novembro de 1972. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Edições do Patrimônio. Rio de Janeiro, Iphan, 2004, p. 177-193; BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Portaria nº. 450, de 20 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a criação de Grupos de Trabalho para tratar do Patrimônio Cultural do Rio São Francisco e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil – Seção I, nº 244, 21 de dezembro de 2011.
5
Marva – planta anual, tem um caule ereto e ramoso, de onde partem folhas pequenas. O gênero Malva é de ocorrência em clima temperado e especialmente em áreas tropicais.
6
Cerrado – bioma com sua característica vegetação esparsa com árvores baixas, retorcidas e de casca grossa. O Cerrado é palco de uma profusão de campos naturais, savanas, veredas e florestas pontuadas por rios, córregos e cachoeiras.
7
Um disco reúne músicas da região, de autoria dos músicos e letristas Deo Brasil, Edson Andersen Magualhães Longuinhos, João Filho, João Maria Bhá, Jorge Silva, Maurilio Arruda e Shokito: Sob o olhar januarense: o velho Chico. Januária, Ágata Tecnologia, 2012. De Luiz Gonzaga, ouvir: “Asa Branca” e “A volta da Asa Branca”.
8
Não só casas, mas também utensílios. Ver: LIMA, Ricardo Gomes. O povo do candeal: caminhos da louça de barro. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2012.
9
Angu – também conhecido como fubá, e no sudeste do brasil como polenta.
10
Ora-pro-nóbis – hortaliça que pertence à família das cactáceas. É uma planta que nasce em forma de trepadeira, possuindo muito espinhos, e é originária do continente americano. O ora-pro-nóbis é no Brasil muito usado na culinária mineira, e a porcentagem de pessoas que conhecem a hortaliça, é muito pequena, assim como a sua exploração comercial.
11
O termo refere-se a Resiliência Cultural, que entendemos pela capacidade de adaptação a mudanças do ser humano, em aspectos individuais e comunitários. Resistir à pressão de situações adversas ao longo de sua vida, superando-os, e possibilitando a preservação de seu legado histórico e cultural. Ainda ressaltamos que não estamos aqui estabelecendo que a cultura popular de uma determinada comunidade deve permanecer intacta, mas pelo contrário, defendemos o seu desenvolvimento de modo sustentável. À permanência de certos códigos simbólicos que, mesmo após a forte influência de uma cultura externa, decorram em um processo de dinamização desses grupos. Uma contradição entre direitos nacionais e economia global onde a valorização cultural esteja apoiada na diversidade, e não na supressão dela.
12
Conforme Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular – Conferência Geral da Unesco – 25ª Reunião – Paris, 15 de novembro de 1989: A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem à expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes. Cf. UNESCO. Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular. Paris, 1989.
13
Conforme Art. 3 do Decreto brasileiro nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 no qual ficou instituída a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT: Povos e Comunidades Tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. BRASIL. Presidência da República. Decreto 6040 de 7 de fevereiro de 2007 – Instituí a política nacional de desenvolvimento sustentável e povos tradicionais <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm>.
14
O conceito de camponês é aqui utilizado para definir uma atividade na qual a família é a principal fonte de mão de obra, onde tais atividades servem para suprir as atividades de alimento e fonte de renda imediata da família.
15
Sobre paisagem cultural e a relação entre cultura e meio ambiente, ver: BRUGNERA, Ana Carolina. Meio ambiente cultural da Amazônia brasileira: dos modos de vida a moradia do caboclo ribeirinho. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU Mackenzie, 2015; BRUGNERA, Ana Carolina; ROCHA, Lucas Bernalli F. Instituto Pequi do Cerrado: teoria e aplicação do conceito de meio ambiente cultural em Minas Gerais. In: Anais do Fórum Internacional sobre Patrimônio Arquitetônico Brasil/Portugal (FIPA). Campinas, v. 1, 2016, p. 104-113; ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion. A Construção do meio ambiente cultural: reflexões e práticas no Brasil. In JARDIM, Jean (Org.); Direito, educação, ética e sustentabilidade: diálogos entre os vários ramos do conhecimento no contexto da américa Latina e do Caribe – Vol. 2. Goiânia: Instituto Tueri, 2013; UNESCO. Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial – Reunião do grupo de peritos em paisagens culturais. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 16ª reunião, La Petite Pierre, França, out. 1992. <http://whc.unesco.org/en/culturallandscape/#3>; WCED – WORLD COMMISSION ON ENVIRONMNT AND DEVELOPMENT. Our Comon Future – The Brundtland Report. Oxford, Oxford University Press, 1987.
16
Entendemos que o manejo dos recursos naturais é, antes de tudo, uma questão social, uma vez que está diretamente relacionado ao contexto socioeconômico e político, nos quais os povos tradicionais estão inseridos. O conhecimento passado de geração em geração de manejo do território e preservação do meio inserido resultam das experiências acumuladas pela própria população. Embasado em: GARCEZ, Danielle Sequeira; BOTERO, Jorge Iván Sánches; FABRÉ, Nidia Noemi. Fatores que influenciam no comportamento territorial de ribeirinhos sobre ambientes de pesca em áreas de várzea do baixo Solimões, Amazônia Central, Brasil. In Boletin do Museu Paranaense Emílio Goeldi, v. 5, n. 3, Belém, set./dez. 2010.
17
Partes especificas do território, topograficamente delimitadas pela paisagem, formadas por combinações de marcos naturais e humanos, que ilustram a evolução de uma sociedade humana, seu estabelecimento no território através do tempo e do espaço, seus valores e símbolos reconhecidos em âmbito social e cultural. As paisagens culturais (cultural landscapes) podem ser consideradas como um processo vivo de continua transformação do território com vinculo direto as manifestações culturais, com equilíbrio das interações humanas com a natureza. Com base em: CONSELHO DA EUROPA, Recomendação nº R(95)9 Sobre a conservação integrada das áreas de paisagens culturais como integrantes das políticas paisagísticas Comitê de Minsitros, 543ª Encontro de Vice-Ministros em 11 de setembro de 1995. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Edições do Patrimônio. Rio de Janeiro, Iphan, 2004, p. 329-345; UNESCO, Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage Convention. Paris, França, jul. 2013 <http://whc.unesco.org/archive/opguide13-en.pdf>.
18
Ver: FREITAS, Fábio de Oliveira; RODET, Maria Jacqueline. O que ocorreu nos últimos 2000 anos no vale do Peruaçu? Uma análise multidisciplinar para abordar os padrões culturais e suas mudanças entre as populações humanas daquela região. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n. 20, São Paulo, 2010, p. 109-126; IBAMA. Plano de Manejo Parque Nacional Cavernas do Peruaçu. Brasília, Ibama, 2005.
19
ROSA, João Guimaraes. Grande Sertão: veredas (op. cit.), p. 535.
20
Idem, ibidem, p. 96.
21
Solos que se formam a partir de sedimentos carregados pela ação das águas e dos ventos. Encontra-se em regiões de várzeas e próximos a rios e cursos d’água e, apesar de não serem tão férteis, apresentam um elevado potencial agrícola.
22
Que vivem nas barrancas ou as margens dos rios. Estão presentes no Brasil como um todo, em especial na Amazônia.
23
Vazanteiros – historicamente conhecidos como lameiros, varzeiros ou barranqueiros, são comunidades ribeirinhas que possuem um forte legado histórico e cultural de direta relação com o meio ambiente natural no qual se inserem. São residentes das áreas inundáveis das margens do rio São Francisco, território este que é remodelado a cada nova cheia e baixa do rio. Se reconhecem como “povos das águas e terras crescentes” devido à permanente mobilidade de suas ilhas. Cf. ANAYA, Felisa. De “encurralados pelos parques” a “vazanteiros em movimento”. Tese de doutorado. Belo Horizonte, FAFICH-UFMG, 2012.
24
Carlos Lucio Nunes de Oliveira, pescador e contador de histórias, transcrição de sua entrevista na integra no anexo 4. Este conto assim como outros trechos de histórias de Carlúcio foram publicados no Portal Vitruvius no ano de 2017: BRUGNERA, Ana Carolina; ROCHA, Lucas Bernalli Fernandes. Carlúcio e os causos da beira do Rio São Francisco. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 125.01, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.125/6635>.
25
Aço – técnica de pesca onde um comprido cabo de aço é esticado sobre o rio. Nesse cabo são dependuradas linhas de pesca com anzol. Esta técnica também é conhecida como espinhel ou arame.
26
Fundo da canoa – popa.
27
Rabeta – pequeno motor de popa para pequenos barcos como uma canoa ou voadeira
28
Pinga ruim, desdobrada, forte. Cachaça misturada, que não é pura.
29
O nome “Caribé” está associado ao comércio de Januária desde a década de 30 quando a Família Caribé chegou a região. Posteriormente a implantação do comercio iniciou-se a produção da cachaça com o mesmo nome devido ao enorme potencial das condições locais para produção de boas cachaças.
30
A oralidade do homem do sertão foi captado de forma exemplar por Guimarães Rosa. Além dos livros citados, ver também: ROSA, João Guimarães (1946). Sagarana. 2a edição. Rio de Janeiro, Universal, 1982.
31
BRUGNERA, Ana Carolina; ROCHA, Lucas Bernalli Fernandes. Carlúcio e os causos da beira do Rio São Francisco. Arquiteturismo, ano 11, n. 125.01, São Paulo, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.125/6635>.
32
José Messias Malaquias dos Santos, vazanteiro de Morro Alto, transcrição de sua entrevista na integra no anexo 4.
33
Sobre Januária, ver: ROCHA, Lucas Bernalli F. O Instituto Pequi do Cerrado: ações propostas para comunidades do entorno do parque nacional cavernas do Peruaçu, Januária/MG. Monografia. São Paulo, FGV, 2016; AMARAL, Ana Alaíde. História e memória de Januária. Minha Cidade, São Paulo, ano 09, n. 097.01, Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/09.097/1882>
34
Juazeiro – conhecido também por joá, laranjeira-de-vaqueiro, juá-fruta, juá e juá-espinho, é uma árvore típica do Semiárido brasileiro.
35
GRUPO AGRESTE. A lenda do arco-iris. Chegança. São Paulo, Estudio Mosh, 1982; GRUPO AGRESTE. Andança. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6SPSQDYjm2E>.
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ROSA, João Guimarães (1962). Primeiras estórias. Rio de Janeiro, José Olympio, 1977, p. 53.
sobre os autores
Ana Carolina Brugnera é artista visual, arquiteta e urbanista. Doutoranda pela FAU Mackenzie e pela RWTH University, Alemanha. É diretora científica do Instituto Pequi do Cerrado.
Lucas Bernalli Fernandes Rocha é geografo, arqueólogo jr. e educador. Especialista em Gestão Ambiental e Educação, possui MBA em Bens Culturais pela FGV-SP. É presidente do Instituto Pequi do Cerrado e colaborador na instituição europeia EXARC.net.