Ainda me lembro do aviário na praça da Matriz. Era enorme para uma criança. Gostava de ver o voo colorido das araras... Quando elas gritavam, eu apertava tua mão. Tu me levavas à Matriz quando a gente não ia aos banhos... O Tarumã, a Ponte da Bolívia, o Parque Dez de Novembro, o Guanabara, o Tucunaré, o Mucuripe...
A cachoeira do Tarumã e o igarapé do Quarenta sobreviveram?
Todos estavam poluídos e quase todos foram aterrados. A Cachoeira Alta do Tarumã também morreu. O cemitério do Tarumã cresce com a miséria, a violência, a pandemia. O igarapé do Quarenta... Um amigo meu morava numa palafita ali perto.
Tua memória ainda pisca. Ele mesmo. Estudava comigo e merendava em casa. Tu fritavas banana pacovã, fazias tapioquinha com queijo coalho, musse de cupuaçu com castanha ralada... No dia seguinte, no Colégio Estadual, ele escrevia para ti uma carta de agradecimento com uma caligrafia que me dava inveja. E agora, olha para a nossa cidade... Cinco décadas de roubo, de péssima administração, de descaso...
Cinco décadas, para ti. Para mim, foram sete, e para o teu avô longevo, quase nove...
E muita gente acreditava que as indústrias levariam progresso a Manaus e ao Amazonas. Transformaram a cidade numa favela, com ilhotas de prosperidade. Demoliram os cinemas antigos, os casarões neoclássicos e art déco... A floresta foi invadida, queimada, e depois rasgada por rodovias. Passaram asfalto até na praça João Pessoa...
Passaram asfalto em várias praças, todas belíssimas. Foi na década de 1970...
A década da euforia e da desgraça. Xinguei aquele prefeito interventor, um coronel bronco. Antes dele, o governo construiu um estádio monumental. Foi demolido e construíram outro, para a Copa do Mundo.
Só conheci o primeiro, de 1970. Foi inaugurado com muita pompa, civil e militar. O gigante custou uma fortuna. Não conheci o segundo.
É também gigantesco.
Dois colossos inúteis... O primeiro foi demolido? Vão construir um terceiro... É uma história que tem um começo, mas parece não ter fim. Broncos e larápios, todos impunes. Todos, não sei. Não tenho notícias. Quantos foram julgados e presos?
Só um.
Só um? A festa acabou só para ele? Quem é esse injustiçado?
Um ex-governador e ex-secretário da educação.
Grande patriota! São tantos... E todos discursam para o povo. Vários governadores diziam: “Sou caboco que nem o povo!”. É a identidade dos demagogos e populistas. Espera um pouco... Em que mês nós estamos? E em que ano?
Maio de 2020.
Por Deus, o tempo desembestou. E toda essa farsa continua... Só os lesos pensam que a impostura acabou ou vai acabar. E o pior é que tudo está ligado... O triângulo perfeito, que não se desfaz. Outro dia tu disseste que a metade da população está na míngua. É verdade?
Um milhão de almas manauaras vive entre a pobreza e a miséria. E o interior do Amazonas continua abandonado.
Mas tu não deves ficar tão amargo. Em 1962, no fim da tua infância, a esperança ainda estava no ar. Era uma esperança extravagante. Mas tanta saudade do passado faz mal.
Não sinto saudade de uma época, só de pessoas. É a memória de uma cidade que já foi mais ou menos digna, ou que prometia ser minimamente civilizada.
Esquece essa tal civilização. É melhor ficares calmo. Vai dormir.
Não consigo. Tu sabes que sou insone, a gente dormia no mesmo quarto.
Então vai ler. A solidão da leitura faz bem. Só na solidão a gente descobre que o diabo não existe. Se o demônio aparecer, escreve. O capeta tem medo de certas palavras. Se não aparecer, vai reler A Sereníssima República e outros contos de Papéis Avulsos. Ainda tens aquela edição das obras completas, de 1957?
Claro. Por que não teria guardado aqueles livros?
Sei lá. Andaste por tantos lugares, viveste em tantas cidades. Os livros também viajam, mas às vezes são esquecidos.
Não foram esquecidos, estão guardados na maior necrópole da Amazônia.
Fica calmo. Os infames não sabem que a vida é traição. Um dia eles serão defuntos. O que tens escrito? Me lembro do teu último livro. Foi em 2008. Era um romance curto, ainda consegui ler. Estavas longe, não deu tempo para o último abraço. Depois, tudo escureceu e tu ficaste órfão. Parece que o mundo está mais tenebroso.
E o Brasil, mais que o mundo.
Mas nem tudo será sepultado, rapaz. Depois da tempestade, surge o arco-íris. Às vezes não surge nada, e o céu desaba.
nota
NE – texto originalmente publicado nos jornais O Estado de S.Paulo e O Globo em 29 de maio de 2020, e republicado no portal Vitruvius com autorização do autor.
sobre o autor
Milton Hatoum, arquiteto formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, é escritor, autor de um Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado e diversos outros livros, ganhadores do Jabuti e outros prêmios importantes.