Voltei recentemente de uma viagem ao México com alguns livros de Octávio Paz na bagagem, mas o livro que portei em mãos foi Doce cuentos peregrinos, de Gabriel García Marquez. Adoro ler durante voos, e tanto melhor quanto mais longos. Isso inclui as salas de embarque. Talvez porque o desafio de me concentrar em ambientes cheio de burburinhos me faça mergulhar mais fundo na leitura. Talvez porque, por horas, não me chegará mensagem alguma. Vez em quando, no entanto, interrompia a leitura me lembrando do que vi e que vivi por lá, com paisagem e cultura impressionantes: as ruínas de Teotihuacan, a estupenda Biblioteca da Universidade Nacional (um de meus sonhos arquiteturais mais prematuros), o Museu de Antropologia, as obras de Rivera-Frida-O’Gorman, a casa-estúdio de Luis Barragán, o Convento das Capuchinhas, a Biblioteca Vasconcelos.
Magnífico, o livro de contos de Gabriel García Marquez só existe porque o escritor colombiano se dispôs a publicá-lo justamente por ocasião de uma viagem ao México, em 1974. De tantos contos e anotações – mais de sessenta, no original – restaram esses doze, efetivamente publicados, reunidos pela temática de serem “peregrinos”, ou seja: escritos de viagem, sobre viagens, advindos principalmente da condição de Gabriel se ver como estrangeiro viandando pela Europa.
Em várias partes desses contos, ressalta-se — ora escandalosa, ora sutil — o contraste de nossa América Latina em vias de uma eterna e provisória construção com a madureza polida, arcaica e acabada, do velho mundo. Aí, de repente, imerso nessa navegação literária, necessariamente solitária, você se depara, numa frase só, com a imagem explosiva daquilo que, de uma maneira diferente, estudiosos como Gruzinski (que se debruçou especialmente sobre o México) pesquisaram anos para revelar; a literatura, muitos o disseram, tem mesmo essa capacidade mágico-poética de condensar tudo numa só imagem, e talvez também se deposite em anos, na labuta igualmente solitária da escrita e das viagens:
La palavra mestizaje significa mesclar las lágrimas con la sangre que corre.
São estas as palavras candentes de um fictício Presidente da Martinica, no conto que abre a série peregrina. Essa passagem me fez surpreender uma das teses mais importantes, de um de nossos intelectuais mais brilhantes, contemporâneo de Octávio Paz e Gabriel García Marquez. Darcy Ribeiro acreditava que a mestiçagem resultante do processo de formação do povo brasileiro seria a chama incendiária de uma nova civilização, de um futuro ainda não experimentado pela humanidade. Darcy acreditava mesmo, de forma contagiante (e apesar da violência do processo de colonização, de que ele tinha consciência), que esse povo formado por tantas matrizes admiráveis (a portuguesa, a indígena e a africana) ensinaria ao velho mundo, inclusive, uma nova forma de habitá-lo: alegre, criativa, festiva, e em harmonia com a natureza.
Ainda me lembro da primeira vez que vi Darcy Ribeiro. Era apenas um documentário, mas a sua vibração saltava o corpo fora da televisão. Naquele momento, pensei que não pudesse haver um homem mais entusiasmado ao falar de seu país, e de seu futuro. Foi quando eu conheci a sua tese, e cheguei a crer, acompanhando, igualmente entusiasmado, os textos seus, principalmente Teoria do Brasil e O povo brasileiro. Passados mais de vinte anos, e distanciado um pouco de sua leitura, acho-a de uma ingenuidade comovente, comparada ao realismo cruel da prosa poética de Gabriel e aos rumos nada poéticos, e cruéis, de nossa civilização capitalista neoliberal, aqui e alhures. Se ainda me comovo com a tese de Darcy é porque talvez eu sofra de uma maturidade ingênua. Ou gostaria muito de ainda crer, sem me dar conta que também desacredito.
sobre o autor
Rodrigo Bastos é professor associado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e docente permanente da Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PósARQ UFSC.