"Ao se querer restituir à cidade a sua dimensão cívica, há pois que se atentar para o fato de que o declínio do homem público e o correspondente alargamento da esfera privada - porém desfigurada como intimidade narcisista - está na origem da maior parte das patologias urbanas"
(Otília Arantes)
Erguida sobre uma península que, apontando para o sul, define a barra da Baia de Todos os Santos, Salvador é uma cidade quase que completamente cercada pelo Atlântico. Como em muito poucos outros lugares no mundo confunde, no mesmo elemento marítimo dominante, a origem e o destino único da trajetória solar.
A morfologia desse sítio privilegiado, concentra a ocorrência de vários e diferenciados atributos naturais: extensas praias e coqueirais, profusão de desníveis entre cumeadas sinuosas e vales amplos e longos, remanescentes de mata atlântica e inúmeros cursos d’água. O traçado urbanístico prima por acompanhar, organicamente, os caprichos do relevo acidentado e nele ergue-se um conjunto plural e diversificado de edificações.
Nesse território - espaço urbano periférico da mundialização da economia - rebate-se, localmente, a crise do homem público, o culto ao individualismo cético, a reclusão doméstica face à violência das ruas, o temor do desemprego, a propagação da informatização e a socialização cibernética.
O espaço público real, concreto, experimenta uma desqualificação permanente, face à desvalorização do convívio e à proliferação do contato virtual. Os ambientes construídos tornam-se cada vez mais cerrados, verdadeiros bunkers da privacidade estimulada pela gregária virtualidade dos bate-papos informatizados segregacionistas.
Na banda economicamente mais poderosa da cidade, as práticas sociais negam, peremptoriamente, as potencialidades da rua e dos espaços públicos como propiciadores do encontro, do convívio e das trocas sociais. São, pelo contrário, tidos como territórios do terror associado às possibilidades da violência urbana. No interior dos seus automóveis, as populações circulam por canais de tráfego inacessíveis pela vivência exterior, protegidos dos pedintes e assaltantes, tal qual tubos origem/destino, hermeticamente vedados, climatizados, verdadeiros metrôs de superfície privadamente individuais. Estabelecem, assim, os ainda necessários vínculos - casa/trabalho, casa/escola, casa/lazer - através do território da cidade, sem que dela se apercebam ou com ela se (pre)ocupem.
Os bairros dito populares, mantém a riqueza social da prática apropriativa dos logradouros públicos, perturbada pela exiguidade dos passeios e pela ausência de praças, áreas verdes ou de lazer.
Percorrendo-se Salvador percebe-se que as intervenções e atualizações realizadas nas edificações preexistentes, bem como as novas edificações, primam por instaurar, como linguagem do espaço arquitetural, a implantação de um padrão de negação da fachada e da relação que esta estabelece entre cheios e vazios. A "modernização" das casas antigas pelo recobrimento delas com embalagens metálicas, as reformas fachadistas das inúmeras clínicas e escritórios ou os vários centros comerciais de bairro, provocam, com o seu aspecto uniformizado, a nítida sensação de perda das características que conformam e garantem a identidade do lugar.
A opção por esse desenho de cidade, reafirma a hegemonia da cultura do shopping center, do espaço descontextualizado, acondicionado e interiorizado: a impessoal arquitetura comercial, cientificamente produzida para provocar o impulso do consumo induzido.
O edifício nada mais é que um container abstrato e inexpressivo de espaços interiores. Ao perder a sua capacidade de comunicação, passa a atuar como mero suporte de peças de informação - letreiros e anúncios - de enormes dimensões e duvidosa qualidade estética, a comunicar o que se realiza no interior dessas caixas sem cara.
Rompe-se, intencionalmente, o compromisso da arquitetura de estabelecer relações entre os espaços internos e externos. Privilegia-se, quase que exclusivamente, o espaço interior, onde se implanta uma requalificação ambiental personalizada, referenciada na beleza decorativa.
Estabelece-se, aí, o paradoxo da individualidade padronizada pela moda da decoração: o nivelamento e a uniformização dos ambientes desenhados de acordo com a obediência aos modismos homogenizadores e ao "estar se usando" da fugacidade consumista.
Onde a busca da permanência da obra de arte a transcender, temporalmente, a curta existência do artista?
Dessa forma é que são erguidas, próximas ao mar onipresente, edificações voltadas para o seu interior, negando os valores da paisagem urbana preexistente, promovendo a ausência de diálogo com o espaço circundante e reafirmando a primazia do conforto tecnológico acondicionado sobre a possibilidade de se realizar uma arquitetura adaptada às condições locais. Uma embalagem opaca, asséptica e abstrata de um produto interno: o culto ao maneirismo do detalhe decorativista e à exibição obsessiva dos novos materiais.
O que se observa nos interiores mais badalados da cidade é ora a cacofonia polifônica de ruídos do detalhismo afetado, ou o "despojamento" suprematista da fácil brancura absoluta, ou ainda, as citações temático-historicistas revisitadas e atualizadas. Essa arquitetura autista de empenas cegas ignora os estímulos externos do ambiente que a circunda, resume-se no seu mundo interior e nega o seu papel primordial de ser arte utilitária e coletiva, sujeito de comunicação, referência física maior, materialmente evidente, da trajetória civilizatória de um determinado povo ou comunidade.
Nessa pós-modernidade remansosa, artificial e temporã, a arquitetura que se produz caracteriza-se por se desviar, integralmente, da cartilha do Movimento Moderno. Rejeita, por princípio, ou pela ausência deles, a considerar-se como elemento fundamental de um projeto de transformação social e passa a ser uma mera representação, burocrática e abstrata, do poder do capital e do Estado.
Os jovens estudantes em formação, desvinculados na sua prática diária do real convívio com essa cidade, debatem-se e confundem-se com o vale-tudo provocado pela crise das ideologias e pela falência do paradigma racionalista, com a dissolução do vínculo e o descompromisso com o social e preocupam-se em realizar uma "arquitetura" no que esta teria de consumo mais imediato e fugaz. Em suma, em produzir a edulcorada beleza interior , já que o exterior - o espaço público - em tudo lhes é desconhecido e desinteressante. Longe da Praça de Alimentação dos shoppings, elemento máximo de socialização dessa geração, qualquer espaço mais amplo e aberto se afigura como sendo o locus do perigo potencial da violência urbana que pode - ainda - ser apartada desses interiores. Concebidos como simulacros temáticos, embelezados tal qual cenários de uma vivência descolorida, esses ambientes aculturados e indefinidos, resultam da forma apropriada, tratada e ressemantizada, literalmente, apenas no que se refere ao seu valor de mercadoria.
Nesse mesmo cenário, em tudo reativo a uma prática como a por ele desenvolvida, destaca-se o trabalho solitário - ainda que coletivamente desenvolvido - do arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, um símbolo vivo da resistência do ideário social do Movimento Moderno e da capacidade que este demonstra de se atualizar e de permanecer.
Remando contra a corrente, esse intransigente cavaleiro modernista, sem se render ao apelo fácil do esteticismo fachadista e cenográfico da especulação imobiliária, continua a erguer belas arquiteturas, impecavelmente concebidas e realizadas, comprometidas em ser instrumentos conformadores - ou, ao menos, facilitadores, - da promoção de possibilidades alternativas de surgimento de um novo tipo de cidadão.
sobre o autor
Mauricio Chagas é baiano, arquiteto, professor assistente substituto da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, onde atualmente conclui o Mestrado em Desenho Urbano.