As ações concernentes à defesa da memória corporificada no patrimônio histórico e artístico se fazem através de três vertentes principais, nominadamente, a proteção, a conservação e a promoção. Cada uma delas apresenta problemas e metodologias específicas embora a defesa do patrimônio seja mais eficaz se há a integração das três de modo coerente e sistemático. A linha da conservação, por envolver, muitas vezes, a injeção de recursos econômicos, é de equacionamento complexo, ainda mais se considerarmos as disponibilidades orçamentárias do setor público, pressionadas pelas áreas da previdência, educação, saúde e funcionalismo público. De mais a mais, grande parte dos imóveis tombados são propriedades particulares, o que torna questionável o investimento público direto em sua manutenção, ainda que tenham o caráter de patrimônio coletivo e que sobre eles pese a co-responsabilidade do Estado. No entanto, se a questão da conservação ficar restrita ao investimento direto de recursos, quer pelo Estado, com sua notória carência, quer pela população, muitas vezes pobre ou com pouca disponibilidade financeira (algumas vezes, inclusive, desinteressada da preservação de seu próprio imóvel), pode não se exercer na prática com a eficácia esperada.
Nesse quadro parece não caber a imobilidade por carência de recursos financeiros e há que se entender que a perspectiva econômica não se restringe, apenas, à aplicação direta de dinheiro na conservação do patrimônio. Cabe, então, distinguir os dois conceitos fundamentais envolvidos no processo, embora sejam complementares e, muitas vezes intercambiáveis. Estamos nos referindo aos conceitos de sustentação e sustentabilidade. A sustentação se refere aos investimentos diretos no patrimônio histórico e artístico que geram benefícios de conservação e é tarefa de todos os agentes por ele responsáveis, seja o governo, com recursos do tesouro e outros fundos, seja o proprietário particular ou a parcerias entre eles. A sustentabilidade refere-se a ações que incentivem formas variadas de conservação e preservação, através de articulação da comunidade, base legal específica ou, ainda, outras formas de atração de investimentos financeiros ou de trabalho.
Para que as ações de conservação possam ser equacionadas de maneira plena, torna-se importante relacioná-las ao conceito maior de patrimônio histórico que não se restringe, como o supõe o senso comum, apenas ao bem imóvel isolado, ligado à excelência estilística e ao poder civil ou eclesiástico. A compreensão contemporânea do patrimônio deixou de se ater apenas às qualidades estéticas do bem em si, ampliando-se ao cotidiano da vida, no exercício da cultura e no desenvolvimento sócio-econômico das comunidades, constituindo-se em um dos importantes responsáveis por sua identidade e qualidade de vida.
Se a questão do desenvolvimento da sociedade é interesse de toda a população – incluindo-se aí os diversos grupos e interesses econômicos – e se a noção de estado paternalista e centralizador é substituída pelas formas democráticas de co-gestão e incentivo à participação cidadã, o estatuto das relações entre poder público e sociedade é transformado deixando de ser uma relação autoritária para ser companheira, deixando de ser unilateral para ser parceira. A relação deixa de ser competitiva e excludente, para ser ética, solidária e inclusiva.
Assim redimensionadas e redirecionadas, passam a ser outras as posturas que impulsionam as ações da população e do Estado. Ao Estado cabem, além do investimento direto – não, obviamente, universal por seus limites orçamentários e éticos, a criação de políticas públicas que incentivem a mobilização social e o interesse participativo, a definição de limites integrada à orientação da aplicação de recursos privados (que tenham capacidade de gerar benefícios públicos), a articulação dos parceiros e a criação de programas com finalidades claras e pragmaticamente formulados. Por outro lado, quando essas iniciativas obtêm sucesso, todos lucram: as cidades ganham em qualidade de vida, grandes trechos degradados são requalificados, garante-se o senso de cidadania e história, estimula-se o turismo e reafirma-se o desenvolvimento sustentável, entre outros benefícios.
Se a participação de cada um é importante, é também fundamental a consciência da existência de retorno para cada benefício alcançado. A ação da sociedade civil pode ter outro foco propulsionado pelos fundamentos ligados às ações de preservação. Inicialmente, deve ser recuperado o entendimento de que a construção de uma nação e o uso das coisas públicas são responsabilidade coletiva, mas um bem a ser compartilhado e cuidado por todos. Na medida em que o patrimônio se referencia no homem, em sua cultura, história e valores, este passa a ser o eixo do processo de desenvolvimento, contrapondo-se, portanto, à tecnocracia ou à perversidade do livre mercado. A idéia de que para gerar o lucro não importam os meios ou seus impactos sociais deve ser substituída pela idéia de que é de interesse comum uma sociedade mais equilibrada e mais rica. A sociedade não pode cruzar os braços e deixar para o Estado a construção da nação, a defesa de seus interesses e seu desenvolvimento. Cada segmento e cada indivíduo precisa considerar-se parte do processo de desenvolvimento. Cabe à sociedade civil entender que é a soma do trabalho de cada um que define padrões de desenvolvimento. Ao proprietário de bem protegido pelo patrimônio, cabe zelar por seu imóvel. Afinal, dele usufrui moradia e renda e muitas vezes não há recursos do Estado (que são de toda a população, diga-se de passagem), para investir no socorro de bens particulares e, ao mesmo tempo, nos bens públicos e em toda a gama de necessidades da população. Como não existe tanta disponibilidade de recursos, seria de interesse da comunidade deixar ir embora sua história e sua memória? À sociedade civil organizada cabe lutar pelos interesses maiores e comuns da comunidade, dentro do entendimento de ética coletiva e de ações de solidariedade. Às forças econômicas cabe participar, através de zelo e investimento, do bem que é de todos, revertendo à comunidade parte dos lucros que lhes foram concedidos por esta mesma comunidade: é o conceito de empresa-cidadã, hoje tão caro às empresas que têm consciência de sua inserção no lugar e na história.
O conceito social do patrimônio cultural deve ser entendido, portanto, de forma ampla, sob a égide da co-responsabilidade entre governo – nos seus três níveis – e população. Se por um lado o governo tem obrigações constitucionais de proteção do patrimônio, este é objeto de fruição e instrumento de cidadania para toda a população, cabendo a ela, portanto, importante participação em sua defesa. No entanto, apesar do quadro já explicitado de ausência de recursos para atender a todos os casos e à grande demanda no setor, o governo não pode entregar o patrimônio à sua própria sorte ou repassar exclusivamente aos municípios e às comunidades a tarefa de seu zelo.
É nesse quadro de compreensão do papel de cada um na responsabilidade de preservação da memória que se inserem estas reflexões, buscando precisar os conceitos de sustentabilidade e sustentação.
Sustentabilidade
A opção pelo chamado desenvolvimento sustentável nasceu da consciência ambiental das sociedades que, a partir da constatação dos limites da natureza e da falência de seus recursos, perceberam não ser possível um modelo de desenvolvimento baseado em um consumo predador da natureza com altos níveis de rejeitos poluidores. Assim, a sustentabilidade pode ser entendida como uma forma de desenvolvimento que une as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das futuras gerações usufruírem de sua herança natural e cultural. A sustentabilidade cultural se dá através da preservação de valores e mensagens os quais conferem sentido e identidade a determinado grupo cultural e étnico.
No nosso caso específico, colocada a idéia da sustentabilidade, cabe investigar as ações que podem ser realizadas no sentido de sua concretização. Para tentar sistematizar essas ações, podemos classificá-las em quatro grupos.
O primeiro grupo trata da preservação preventiva e propositiva, em contraposição ao caráter de reação e recuperação que tem caracterizado nossos esforços de preservação.
Para exemplificar essa assertiva, podemos tomar um dos mais usuais processos de acautelamento, o tombamento. Embora o tombamento seja, por definição, uma medida preventiva contra eventuais descaracterizações ou demolições de imóveis de interesse histórico, geralmente ocorre para suprir deficiências de proteção ocasionadas por leis de uso e ocupação do solo demasiado permissivas ou interesses econômicos conflitantes. Além disso, quando se torna necessária alguma intervenção física no imóvel tombado, os órgãos responsáveis pela tutela do bem examinam o projeto para se posicionarem reativamente sobre a proposta, em vez de definir critérios anteriores de intervenção. De maneira similar, grandes esforços e recursos são consumidos na restauração de bens, apenas porque eles foram conservados inadequadamente ou passaram por procedimentos inadequados em sua manutenção. Assim, os recursos podem ser melhor aproveitados se a proteção se faz de forma preventiva e propositiva, antecipando-se às ações destruidoras causadas por condições ambientais adversas ou de interesses contrários à preservação.
Exemplos importantes desse tipo de preservação estão consubstanciados nos instrumentos de legislação urbanística (leis de uso e ocupação do solo e planos diretores que garantam o desenvolvimento harmônico da cidade), controle ambiental adequado (que impeça a deterioração das peças pela ação de agentes químicos, biológicos e mecânicos), revisões periódicas de infra e superestrutura (desde redes elétricas a condições de cobertura, estrutura etc.) treinamento de agentes de manutenção (evitando as más práticas que são usuais por desconhecimento e mau treinamento) e instalação de equipamentos de segurança (extintores de incêndio, alarmes contra roubos etc.).
O segundo grupo inclui os Instrumentos de Gestão e Articulação que, a partir da constatação de que a comunidade é a maior guardiã de seu patrimônio, substituem o paternalismo estatal pela efetiva participação cidadã. Na realidade não existe desenvolvimento sustentado nem patrimônio comum se a sociedade não tiver consciência disso. Dificilmente se consegue "impor" um tombamento ou modelos sustentáveis a uma sociedade que não tem consciência desses valores.
Por isso, é tão importante o desenvolvimento e o estímulo a formas de gestão coletiva e à criação de possibilidades de articulação entre os diversos agentes para cumprir a tarefa de preservar. Podemos citar entre outros:
– a criação de conselhos públicos para o patrimônio cultural, envolvendo toda a sociedade;
– a conscientização do poder legislativo, muitas vezes alheio ao problema e pouco criativo na elaboração de leis necessárias à sustentabilidade de patrimônio;
– a mobilização do poder judiciário, especialmente do ministério público que pode garantir ações emergenciais e de caráter coletivo;
– a adoção de medidas compensatórias e políticas de incentivo, tais como isenção de impostos para imóveis de interesse preservação ou a transferência do potencial construtivo;
– estímulo às instituições de preservação;
– maior permeabilidade dos órgãos de patrimônio junto às comunidades, criando programas conjuntos;
– criação de programas que possam atender às diferentes demandas das comunidades pela articulação dos diversos organismos e mecanismos públicos ou privados, de forma a facilitar seu atendimento específico;
– articulação de parcerias através de ação objetiva de governo, considerando a visão abrangente que tem o Estado e seu poder de atuação e de influência;
– facilitação da ação privada na recuperação de seus imóveis através da criação de linhas de crédito com juros baixos, como programas sociais;
– criação de programas especiais de recuperação e requalificação de áreas urbanas históricas degradadas
– desenvolvimento de programas e políticas específicas como o incentivo a "clusters" e a programas turísticos e específicos de proteção;
– inserção da cultura no desenvolvimento econômico e social;
– incentivo e formulação adequada a operações urbanas integradas ou interligadas, definindo objetivos claros e bônus atrativos para o investimento privado com benefício público.
Com a enorme importância que vem ganhando o patrimônio cultural nos tempos atuais e com a sofisticação tecnológica e científica que o acompanha, torna-se necessário o desenvolvimento dos campos científicos correlatos. Nesse grupo, incluem-se não só o incremento de novas pesquisas, como a criação de novos modelos urbanos e novas formas de inserção do edifício novo em contextos notáveis.
No quarto grupo inserem-se as ações de informação e difusão. Aqui incluem-se a educação patrimonial como conscientização das comunidades, a divulgação eficiente dos programas e mecanismos de proteção, bem como a visibilidade das ações concernentes ao patrimônio e aos seus benefícios sociais e econômicos.
É importante que as comunidades e as empresas conheçam e compreendam as leis de incentivo à cultura, que os agentes sociais e comunidades conheçam seus direitos e deveres com relação aos bens patrimoniais e que informações e fotografias de imagens desaparecidas estejam disponibilizadas para facilitar sua recuperação.
Sustentação
Se considerarmos que a manutenção do patrimônio histórico é tarefa compartilhada entre Estado e comunidade e que o ônus da preservação não deve ser apenas do proprietário, torna-se fundamental, além das ações de sustentabilidade anteriormente descritas, o investimento direto do governo, em seus diversos níveis, no setor. Por outro lado, a sustentação do patrimônio na forma de investimentos diretos não ocorre apenas por parte do setor público. A iniciativa privada e a sociedade civil encontram nos edifícios históricos e bens culturais um importante setor produtivo da economia que propicia negócios e oportunidades de investimento, carreando lucros e avanços econômicos.
O investimento público se faz diretamente, através do Tesouro, ou indiretamente, especialmente na manutenção de institutos e políticas de patrimônio, na gestão de fundos e na forma de renúncia fiscal. Os investimentos através do Tesouro têm sido limitados, face a crise econômica pela qual passam os entes da federação, especialmente estados e municípios, sem recursos e sem capacidade de endividamento. No nível federal alguns programas como o MONUMENTA, por exemplo, ainda conseguem carrear recursos governamentais para a área. Outro importante investimento público se faz através da criação e manutenção dos órgãos de proteção do patrimônio cultural que apresentam significativos resultados. Essas instituições são fundamentais, não apenas como fiscalizadoras, mas como principal depositário de informações e experiência técnica na área, além de norteadores da ação pública que define os rumos da sociedade no setor.
Quando se trata de renúncia fiscal, a sociedade muitas vezes não consegue reconhecer nas leis de incentivo um efetivo investimento de recursos do Estado no setor da cultura. No entanto, são reais as aplicações de recursos públicos advindos das leis de incentivo à cultura (das quais podem se beneficiar os bens históricos) e aqueles provenientes de subsídios ou isenção de impostos, tais como isenção de IPTU para imóveis tombados, dentre outros.
Complementarmente, a criação de fundos públicos ou mistos para apoio à cultura ou outros programas de ação social tem sido uma importante forma alternativa de investimentos diretos nesses campos. A provisão desses recursos advém comumente das loterias, de compensações judiciais por crimes contra o patrimônio ou é, ainda, resultante de contrapartidas ambientais. As doações que também costumam alimentar esses fundos podem ser estimuladas, se combinadas com incentivos fiscais.
Quanto ao investimento privado, o patrimônio cultural integra o segmento da cultura, hoje notadamente um dos maiores geradores de emprego no mundo e no Brasil, permitindo a criação de um amplo espectro de atividades fomentadoras de trabalho e renda em diversos setores como, por exemplo, a construção civil (na área do patrimônio apresenta potencial de negócios ainda pouco explorado), a prestação de serviços (onde movimenta uma ampla gama de profissionais ligados, por exemplo, ao turismo, agentes e produtores culturais, além de profissionais liberais de diferente formação, tais como arquitetos, historiadores, artistas, engenheiros, advogados etc.), o turismo e o lazer (que encontram no patrimônio histórico um de seus principais pilares de atratividade) e a formação de mão-de-obra (dadas as especificidades do trabalho com o patrimônio cultural) e a expansão de mercados motivada pelas exigências dos órgãos financiadores e de patrimônio em todos os níveis, inclusive educação, qualificação técnica e produção de insumos.
Considerações Finais
Conforme se pode ver, ações de defesa do patrimônio cultural quanto a investimentos em sua conservação envolvem uma ampla gama de situações e mecanismos os quais, muitas vezes, têm de ser selecionados (em função de sua especificidade e pertinência a cada caso) e integrados (na forma de ação sistêmica).
Se consideramos a complexidade dos tempos atuais e as intricadas situações às quais se submetem os diversos casos de preservação patrimonial, podemos claramente verificar que as soluções muitas vezes resultam de uma composição de mecanismos de sustentação e sustentabilidade.
De qualquer modo, a acuidade na gestão de cada caso de nada adianta se valores éticos e sensíveis à nossa identidade e continuidade histórica não presidirem e nortearem as questões cotidianas que envolvem os bens coletivos da memória.
sobre o autor
Flávio de Lemos Carsalade é arquiteto e presidente do IEPHA / MG.