“Tornar a arquitetura mais humana significa criar uma arquitetura melhor, o que por sua vez, implica um funcionalismo muito mais amplo do que aquele com bases exclusivamente técnicas. Esse objetivo só pode ser alcançado por métodos arquitetônicos – pela criação e combinação de coisas técnicas diferentes, de tal modo que elas possam oferecer ao ser humano uma vida extremamente harmoniosa." (Alvar Aalto)
Preâmbulo
O homem, e a emoção que as formas podem causar-lhe, parece ter sido o fim primordial que moveu o finlandês Alvar Aalto, a partir de recursos figurativos muito próprios. Inserido, desde os primeiros anos da década de 20, na dialética entre modernidade e tradição, racionalismo e empirismo, tecnologia e técnica tradicional, signo da arquitetura provinda das terras geladas da Escandinávia – enfim, no debate inexorável entre Homem, Máquina e Natureza que fora a tônica da modernidade –, Aalto, após começo que não se pode dizer brilhante, a partir da década de 40 passou a exercer grande influência internacional, quando críticos como Bruno Zevi impuseram a arquitetura escandinava como a mais digna representação de um corpus onde o que importava era a direta relação entre homem e natureza, a máquina deixando de ser protagonista (1).
Em seqüencial “crescimento”, Aalto partiu do classicismo romântico com forte influência de Asplund e tramitou entre segmentos diversos, nos primeiros anos atuando como arquiteto independente em Jyväskylä; no final dos anos 20, já em Turku, ao lado da mulher Aino e do amigo Erik Bryggman, tomou contato com o debate arquitetônico internacional e aproximou-se do racionalismo e do construtivismo, desenvolvendo obras importantes como o Sanatório de Paimio, de 1928, e a Biblioteca de Viipuri, iniciada em 1927 e terminada em 1935, onde, em certos estigmas, já antecipava os mais relevantes aspectos de sua fase tardia, reconhecidamente, a mais original e criativa.
Natureza como organismo e homem como horizonte
É, portanto, após um período de cerca de 20 anos de maturação entre influências locais e internacionais – além de Asplund, dos construtivistas (russos e holandeses), de Corbusier, Gropius e Mies, não podendo esquecer os princípios orgânicos de Wright – que Aalto inaugura abordagem surpreendentemente conciliadora entre grande domínio compositivo e atitude antimecanicista, competente síntese entre forma e desenho moderno, por um lado, e construções sensíveis à luz, à internalidade dos espaços, aos materiais locais e à natureza como “organismo”, com o homem como “horizonte”, por outro, dando às propostas frescor progressista e humanista, que lhes distancia de outros aportes que consideraram evocar a tradição com veemência.
A guinada fundamental para tanto, parece ter sido o episódio Gullichsen (2) e os sucessivos trabalhos para a indústria finlandesa da madeira, fato que não apenas encaminhou sua obra a uma lógica que pudesse adaptar-se à produção em massa, como o levou a reavaliar o valor expressivo da madeira frente ao concreto, via pela qual, gradualmente, afastara-se da linha internacional para incorporar o valor textural, dado pelos materiais às superfícies, típico do movimento clássico-romântico nacional, do que a Villa Mairea, de 1938, é pródigo exemplo.
Será a partir da casa para o casal Gullichsen e do Pavilhão Finlandês para a Exposição Mundial de Paris, em 1937, que a madeira passará a atuar, então, como material fundamental no corpus arquitetônico “aaltiano”, assim como é a partir de tais obras que a opção de decompor o partido em dois volumes distintos, articulados de tal maneira que o espaço livre intermediário tome aparência humana – deflagrando-se como espaço aberto, mas “construído”, “arquitetura de exterior”, porque composto de ar, luz, árvores e céu –, consolida a abordagem estreitamente particular de arquitetura, um “livre planejamento” (3) orgânico como o de Wright, mas de atitude “sutilmente crítica e desmistificadora em relação tanto aos racionalistas quanto a Wright” (4) por afastar-se, ao mesmo tempo, do maquinismo, da tecnologia e da entidade geométrica pura, por uma parte, e da “titania visionária” – expressão de Argan sobre a arquitetura de Wright –, irrompendo o espaço interno na volumetria externa, por outra.
Vale notar que, mesmo trabalhando com certos materiais ditos “inefáveis” ao pragmatismo dominante, a obra de Aalto, em nenhum momento, gerou-se a partir de planos arbitrários; a preocupação com o homem e com o ambiente inaugurou, apenas, flexibilização dos sólidos platônicos e das linhas ortogonais racionalistas, com o intuito primordial de articulá-los de maneira mais pertinente à natureza, fundamentalmente irregular.
Essa é a explicação necessária às formas potencialmente escultóricas de Aalto, onde se vê, como rasgos característicos, as coberturas de diversas inclinações, a estrutura de suportes leves e as sempre inteligentes aberturas altas, que legam diversas sensações lumínicas aos interiores feito entranhas. A partir deles, Aalto buscou conciliar o que pode haver de “intelectual” e de “sensual” nas formas arquitetônicas (5), interpenetrando edifício(s) e espaço natural de modo a superar os dados objetivos ligados, estritamente, à função, o que, nas melhores obras, indubitavelmente, ampliou os limites e as possibilidades do repertório moderno através de pauta mais plástica e orgânica, internacionalizada entre as décadas de 40 e 50, em grande parte por conta dele.
A aproximação com o programa eclesiástico
Os primeiros contatos com o programa religioso derivam da fase “eclética” de Jyväskylä, quando se envolveu na construção e reforma de grande número de igrejas, das quais a de Muurame é um dos mais lembrados exemplos. Nos anos 30, após Paimio e Viipuri, Aalto construiu alguns outros templos, mas, talvez, por essa ser fase em que ainda não abstraíra, com êxito, a ortodoxia internacional em prol da síntese organicista, apenas alguns aspectos ali colocados prenunciam o brilhantismo daqueles construídos a partir da metade do século XX.
Assim é que, depois de ficar quase 20 anos afastado do tema sacro, logo nos primeiros anos da década de 50, Aalto envolve-se com a concepção de duas capelas para cemitério – uma para Malm, em Helsinque, Finlândia, concurso de 1950 não realizado, e outra para Lingby, na Dinamarca, de 1952, também não realizada – e dois planos bastante importantes para igrejas, em Lahti e Seinäjoki, cidades finlandesas.
Importante notar as estratégias, diferenciadas em forma, mas semelhantes em fundo, lançadas por Aalto para resolver cada um dos programas. Para os cemitérios, o partido foi decompor o programa fúnebre em capelas de planta quadrada, dispostas entre si de modo a formar espaço intersticial que convenha à funcionalidade das cerimônias, separando as comitivas que possam vir a utilizar o cemitério simultaneamente, ao mesmo tempo em que enfatizando o caminho processional do cortejo e intensificando o rito de passagem da vida para a morte e vice-versa.
Em Malm, as três capelas têm tamanhos diferentes e estão colocadas triangularmente entre si, configurando átrio central, de passarelas em eixo com a chegada das comitivas, e pátio fechado por muros. Diferenciadas em volume, as capelas organizam-se, internamente, com os assentos em três lados do catafalco; a luz penetra zenitalmente na capela maior, enquanto nas outras duas são grandes janelas altas que provêem o espaço, dedicado à morte, do clarão da esperança, transfigurando o rito da passagem num esquema muito simples, que faz a cerimônia fúnebre evoluir com austeridade e dignidade, sem pompa ou banalidade. Em cada uma das capelas, há dois acessos independentes, metaforicamente, o portal para a morte e a libertação para a vida; saindo da morte, pela passarela, todos os que se despedem dos entes queridos podem chegar ao pátio, espaço da vida, realidade mundana de assistência aos sentimentos feridos.
Em Lingby, as chaves simbólicas e funcionais são as mesmas, apenas as capelas são duas, e os pátios da vida multiplicam-se; estão lá, novamente, as capelas de planta quadrada, com disposição interna dos assentos em três lados do catafalco, e dois acessos separados, o da vida para a morte e o da morte novamente para a vida, os pátios servindo como esperança de um mundo melhor tanto neste quanto no outro lado.
As cerimônias também podem acontecer independentes, sem o constrangimento do encontro entre comitivas, numa composição onde, por trás dos muros, o que se vê é a volumetria da capela maior, com o grande telhado inclinado dominando o volume mais baixo da capela menor e, ao mesmo tempo, contrapondo-se à disposição plástica das três chaminés. Nos pátios, ciprestes conjugam-se à concretude arquitetônica como material simbólico de representação do fato, para o que, também, a luz, imensamente, colabora: na capela maior, a inclinação do telhado permite vazar grande superfície lateral, iluminando a celebração fúnebre desde trás dos assentos, em direção ao catafalco, e na capela menor, três “canhões” (6) desprendem-se da laje de cobertura em busca da luz celestial, para conduzi-la até onde está o féretro, recurso original criador de espaço mais intimista, de atmosfera mais escura, convidativa ao recolhimento dos aflitos que foram prestar condolências ao falecido.
Se a ênfase simbólica do espaço, como caminho processional, e o protagonismo da luz, para intensificar a experimentação do transcendente, já estão colocados, em algum grau, nessas capelas, as igrejas de Lahti e, principalmente, Seinäjoki, complementam as chaves funcionais, simbólicas e figurativas que seriam referências constantes para todas as demais obras eclesiásticas construídas por Aalto ao longo dos anos, como a planta e volume trapezoidal, afunilando em direção ao altar – segundo o arquiteto, por razões “acústicas” –, e o teto da nave e a estrutura portante que estimulam a aparição do altar, pela condução dinâmica do olho ao foco cristocêntrico, dentro do recinto longitudinal. Ambos os projetos são muito semelhantes, com plantas trapezoidais de nave única, onde o altar está na base menor e em eixo com o acesso, antecedido por antecâmara, espécie de nártex que, além de promover a suave passagem do profano ao sagrado, quebrando sons e sentimentos mundanos, serve, também, como local de encontro para os paroquianos antes do culto.
Seinäjoki: a dissolução da caixa
O templo de Seinäjoki foi objeto de concurso de 1952, sendo construído entre 1958 e 1960 e, posteriormente, complementado pelo centro paroquial, projetado em 1963 e terminado em 1966. Dentro do plano de conjunto desenvolvido para o centro da cidade, a igreja está elevada e coloca-se dominante em relação tanto ao centro paroquial adjacente quanto à Biblioteca, ao Teatro e à Prefeitura, que complementam a composição, fato ao qual contribui o campanário muito alto, objeto maciço de base retangular que, além de dispor do tradicional relógio, é também mirante, com vista para o mar e para os campos e florestas ao longe, marco na composição e símbolo da cidade.
O Centro Paroquial foi edificado como borda contínua que, assim como limita, define um largo, de superfície descendente, onde os fiéis podem reunir-se em grande número, estendendo a nave ou sendo o próprio lugar de celebração nas datas festivas cristãs. Tal articulação é muito própria de Aalto, compondo, com as massas edificadas, um outro espaço concreto formado de ar e vida que, no caso, liga-se com a tradição, ao mesmo tempo em que promove mudança de atmosfera, delimitando o espaço do sagrado em relação ao mundano (7).
A feição da igreja apela, também, ao trapézio, tanto em planta como em volume, formando interessante objeto plástico que, se por um lado, ainda guarda certa relação com a ortodoxia dos anos 30, pelos planos laterais retos e brancos e pelo interior claro, avança no sentido de relacionar o homem com o sagrado pelo incremento da perspectiva até o altar, estimulada pelos suportes interiores, pela descendente do teto da nave e pela luz, que invade o espaço dos intercolúnios através do grande pano de vidro, mascarado pelos recortes verticais das fachadas laterais.
O altar está elevado em relação à congregação e em eixo com o acesso, com os fiéis ocupando duas extensas fileiras de bancos com corredor central e duas passagens laterais, como deambulatórios. A organização litúrgica completa-se com o coro em posição tradicional sobre o acesso, tendo a sacristia ao fundo do altar, e por pequena capela, posta como volume lateral mais baixo, ligado ao recinto principal. No interior, vale notar, ainda, a beleza das luminárias pendentes sobre a nave, e o desenho orgânico dos elementos do coro e do órgão; mas, sobretudo, impressiona a feição dos pilares, que arrancam regulares, para logo desabrocharem, tal como faziam os suportes de Suger em St. Denis, mesmo que os de Aalto respeitem ordem ineludivelmente clássica. Uma certa liberdade interna já contrasta, então, com o despojamento e contenção externas, figurando, pela primeira vez, a idéia da igreja feito corpo, organismo vivo de feições irregulares onde há ordem imanente que tudo relaciona e faz funcionar a partir de uma fonte cerebral – figurativa – e emocional – simbólica.
Instituindo apriorismos: o templo de Vuoksenniska, Imatra
Isso está presente, especialmente, na Igreja de Vuoksenniska, em Imatra, projetada em 1956 e construída entre 1957 e 1959. Nessa, que é um dos três templos do município de Imatra e uma das mais felizes obras do arquiteto, estão retrabalhadas todas as estratégias eclesiásticas “aaltianas” mais caras, materializando edifício escultórico onde as questões litúrgicas, o necessário caráter religioso e a estrutura protagonizam originais episódios de geração formal e de experimentação do sagrado.
A liturgia luterana definiu a condição assimétrica do interior, esquema originado da sobreposição ao trapézio de complicado jogo formal de planos retos e curvos, com o intuito de criar espaço versátil, que pudesse servir para outras atividades além do culto, assim como refinar a acústica do canto e do sermão, em liturgia onde o imperativo é a palavra (8). A primeira preocupação deriva da idéia de Aalto de que é necessário aproximar a igreja dos fiéis, contemplando-a tanto como centro religioso quanto social, como as antigas catedrais medievais. Assim, trata de conceber templo que seja capaz de servir à comunidade industrial que habita Imatra, acomodando as diferentes necessidades de reunião através de plano que divide a nave em três partes. A mais próxima do altar contém púlpito e órgão e foi dimensionada para duzentos e noventa pessoas – é onde ocorrem os cultos ordinários, assim como casamentos, enterros e outras cerimônias; as outras são salas destinadas à comunidade, e podem ter deslocadas, mediante sistema elétrico, as paredes de concreto que as dividem, possibilitando a nave ser ampliada para abrigar até oitocentas pessoas quando suprimidas as barreiras físicas.
Em relação à audibilidade, sabe-se, de antemão, que planos paralelos não legam boas condições de propagação sonora, assim como certas distâncias em altura e comprimento devem ser respeitadas, devido aos fenômenos de reverberação e ao eco. Assim, a parede onde está o púlpito é reta, em oposição à superfície cilíndrica formada em frente a partir de um traçado curvo, que busca obedecer pressupostos acústicos. Também a volumetria retrata a assimetria interior, de preocupações acústicas: as janelas da superfície cilíndrica são planos oblíquos que se acomodam às linhas do teto, o qual busca cumprir, em sua irregularidade, o papel de ricochetear o som emitido desde as extremidades – altar e coro – para o centro do espaço, assembléia dos fiéis.
A despeito disso, no entanto, a igreja de Vuoksenniska não contempla, apenas, questões “funcionalistas”, no que ficaria devendo em relação ao fato arquitetônico do sagrado. Não basta apenas ouvir bem, mas sentir o espaço pelo que de emoção e transcendência pode a arquitetura exalar, aliando forma e vida para que a construção não seja mero envoltório. Se a questão acústica pode ser apontada como raiz abstrata do projeto, a riqueza e complexidade formal atingidas desmentem a racionalidade funcional, própria da modernidade, e ao gosto do discurso dos mestres. Aalto sabia que deveria ir além das questões funcionais e técnicas e, assim, o que se evidencia é que o projeto foi conformando-se a partir de desejo prévio, de forma premeditada que tentava resolver outra das condições essenciais de projeto: a criação de um espaço religioso e social versátil, onde a “trindade” coro, púlpito e altar, estivesse de acordo com a liturgia luterana. Para tal conclusão, basta observar os estudos gráficos de Aalto que, amplamente, ocupam a bibliografia disponível, e ver-se-á, claramente, que o templo de Imatra, além das questões litúrgicas, partiu de visão muito particular do arquiteto de fazer essa igreja feito corpo, vontade que, se o desviou dos cânones mais ortodoxos do modernismo, o fez na medida exata para não ser arbitrário e não ferir o caráter do templo.
Enquanto trabalhava com a idéia dos três espaços possíveis de serem interconectados a partir de um eixo, Aalto buscava conciliar, também, o característico plano trapezoidal e, mais uma vez, reforçar a relevância do altar e do púlpito frente aos outros elementos litúrgicos. Isso é feito por volume que, outra vez, decresce em altura enquanto se aproxima do altar e pelo protagonismo das linhas estruturais do teto, atravessando o espaço transversalmente ao eixo maior, até se encontrarem com os suportes que marcam a interseção dos nichos curvos da parede acústica; nessa altura, as vigas, que vêm transversais, ramificam-se em três partes para distribuir as cargas, adaptando-se, magistralmente, à geometria orgânica. Tão belas quanto os recortes irregulares do teto, as janelas altas, colocadas nos nichos curvos, protagonizam aquilo de inefável que deve existir num templo, realçando o volume escultórico branco que, ao lado do alto campanário circular de desenho instigante, insere-se com propriedade no entorno verdejante, pela escala muito humana.
Difundindo apriorismos: o templo Heilig Geist-Kirche, em Wolfsburg, Alemanha
Matizes ainda mais ricos, a partir de semelhantes signos, assume o conjunto Igreja e Centro Paroquial construído para a cidade alemã de Wolfsburg, projeto em que esteve envolvido entre 1959 e 1962. Mais uma vez, Aalto lança mão de um partido decomposto para que, separadamente, ambos os edifícios conformem e limitem uma esplanada santa – transição entre o mundano e o religioso e espaço aberto potencializado, em uso, pela composição arquitetônica; o volume organicamente curvado e subtraído da igreja faz o fechamento da perspectiva de quem vem desde a avenida, ficando o outro lado conformado pelo “U” dos volumes do centro paroquial. Outra vez, o campanário alto funciona como marco para o conjunto e, por isso, tem desenho cuidado, subindo vazado em duas faces desde base maciça, até terminar em esbelta cruz negra.
Estrutura e luz, novamente, são os grandes protagonistas da articulação formal do recinto eucarístico, mais uma vez exaltadas a partir da determinação de Aalto de enfatizar a percepção do altar pela convergência do olho. Por isso, a planta continua trapezoidal e o edifício assume perfil assimétrico descendente desde o acesso até o altar, como as tradicionais tumbas mortuárias escandinavas (9).
Em relação à estrutura, ela é, efetivamente, utilizada como fator definidor da forma escultórica da igreja, assim como é o elemento expressivo maior na eloqüente espacialidade interna, síntese entre forma e estrutura parecida com aquela explorada por Nervi e Candela, por exemplo, embora com diferentes pretensões plásticas. O esquema trapezoidal, em planta, eleva-se a partir de série de pórticos arqueados na longitudinal, convergentes, desde o acesso, à cabeceira da igreja. Tais pórticos protagonizam a sensação de direcionamento até o altar porque pintados de branco, realçando o contraste com o forro em madeira escura dos planos do teto; assim, aparecem quatro linhas brancas, longitudinais, que terminam serenas em muro baixo atrás do altar, às quais não se consegue ficar indiferente quando da experimentação do recinto, configurando-se em inquestionável trunfo do projeto, tanto do ponto de vista funcional e figurativo, quanto simbólico.
A captar atenção semelhante, talvez estejam, apenas, as janelas de perfil “orgânico”, colocadas no lado oposto ao coro, panos de vidro translúcido que iluminam, com exuberância, o recinto, no que são ajudadas pelo grande pano de vidros altos em oposição ao altar – onde nascem os pórticos estruturais – e pelo canhão de luz, que irrompe a casca de cobertura para trazer raios celestiais sobre a pia do batistério. Verifica-se, assim, interior intensamente iluminado, clareando ainda mais o entendimento das subtrações empreendidas nos planos laterais e os subterfúgios técnicos responsáveis por fazer desse edifício, pela criação e combinação de coisas diferentes, ambiente capaz de oferecer ao ser humano uma vida mais harmoniosa, pelo reencontro consigo e com a divindade.
A despeito dessas duas instâncias, o templo de Wolfsburg oferece, ainda, algumas outras disposições de tons discretamente originais. Uma delas é que os planos, definitivamente, perdem a limpeza geométrica, observada em Lahti e Seinäjoki, para assumir perímetro fragmentado, em vias de desmaterialização, obtido a partir de interferências minuciosamente trabalhadas por subtração, tal como já acontecia, em menor grau, na parede acústica de Imatra. A outra é o que se pode descrever como uma redução do sistema compositivo global à articulação entre as partes do templo: se, formalmente, é a grande nave com perfil em casca que domina, é perfeitamente reconhecível que o templo compõem-se, ainda, de outras duas partes, adicionadas à primeira e que trabalham no sentido de decompor a geometria trapezoidal; uma delas é o bloco mais baixo, contendo as dependências paroquiais, e a outra é a intersecção entre dois cubos mais baixos que, unidos, funcionam como pórtico de acesso.
Tal relação quebra a racionalidade compositiva por criar inesperado deslocamento no eixo de acesso e na organização da congregação em relação ao altar, configurando espaço que joga, a todo o momento, com a sensação de abordá-lo em perspectiva – quando se percebe a plasticidade do coro na parede oposta – para, posteriormente, ter o olho recolocado em eixo com o altar, acompanhando o desenvolvimento longitudinal da nave. É uma estratégia de conformar espaço mais humano, tal qual aquela que articula um espaço aberto de uso pela decomposição do programa e pela disposição inteligente entre as partes, tornando as formas mais individuais e precisas e permitindo que o desequilíbrio e a tensão, estimulados pelas interferências nos planos e pelas linhas arqueadas e oblíquas, sejam contrabalançadas pela consistência física e pela textura dos materiais.
Por outro lado, tais subtrações e decomposições agem no sentido de incrementar as condições acústicas, tanto por formalizar planos não paralelos, como por criar disposição assimétrica para a assembléia, fazendo o púlpito, colocado na extremidade esquerda do altar, atingir maior número de fiéis, e altar, púlpito e coro atuarem triangularmente, como pensava que deveria acontecer Aalto.
Difundindo apriorismos: o templo Stephanus-Kirche, em Detmerode, Alemanha
De modo semelhante, a Stephanus-Kirche, construída entre 1965 e 1968 em Detmerode, próximo à Wolfsburg, na Alemanha, expõe com excelência todas as chaves “aaltianas” para conformação de templos já referidas, mas, uma vez mais, os matizes assumidos intensificam a estrutura básica, formalizando templo, ao mesmo tempo, repetitivo e surpreendente.
Outra vez, o plano é de conjunto, e, outra vez, Aalto preocupa-se em destacar a Igreja para comandar o partido decomposto de partes que servem para fins sociais da comunidade. Repetindo Imatra, há a preocupação, por parte de Aalto, de aproximar o templo e as dependências dos fiéis, fazendo-o, agudamente, equipamento social. Assim é que, lateralmente a ele, está colocada seqüência de salas para uso comunitário e paroquial, papel que também cumpre a esplanada fronteira à igreja, um plano quadrado, marcado pelo piso, que remete à tradição da praça/adro da igreja, onde acontecem as grandes festas religiosas e da comunidade, o culto ao ar livre, as procissões ou os atos públicos. Em termos conceituais, como aponta Frampton, isso o aproxima muito do ethos expressionista, já que Aalto empenha-se em fazer com que a construção seja “uma fonte de vida e não de repressão” (10), para o que auxilia o progressivo afastamento da “tirania latente do traçado ortogonal normativo” (11) em direção a uma visão do edifício como organismo fragmentado, modulado e moldado ao homem e à paisagem.
As formas da igreja são diferentes das dos expressionistas, no entanto, e não há o apriorismo simbólico da “Coroa de Cristal” ou da “Montanha Sagrada”. Há, sim, o apelo à planta e à seção, outra vez, trapezoidal, desde o acesso até o altar, para atingir a convergência visual com o foco eucarístico e estabelecer boas condições acústicas, para o que trabalham novamente unidos, estrutura, fechamentos e luz. A nave, projetada para duzentos e cinqüenta pessoas, mas que pode chegar a até seiscentos lugares, repete a organização assimétrica da congregação e a experimentação perspectiva desde o acesso pelo eixo descentrado, colocado no lado maior do trapézio; observa-se, novamente, a articulação triangular, agora entre altar/púlpito, bancos e coro/órgão: o altar ocupa o lado menor e está elevado em relação à assembléia, com o púlpito à esquerda e o coro/órgão ocupando a parede direita da nave. Por uma escada sob a plataforma do coro, desce-se à cripta, onde ficam uma capela e demais dependências auxiliares de culto.
Todo o recinto eucarístico, assim como a volumetria geral, abdica daquela eloqüência escultórica presente em Imatra e, principalmente, em Wolfsburg, para assumirem linhas mais contidas, mas, nem por isso, menos orgânicas. Há elegância em lugar de rigor geométrico, o que fica comprovado tanto pelo desenho do campanário, composto de doze pilares articulados em seqüência normativa ortogonal, quebrada apenas em altura pela massa que o entremeia, como pelas subtrações levemente impostas às arestas do trapézio, no intuito de desmaterializá-lo enquanto geometria plenamente reconhecível.
Contudo, com nenhuma dessas decisões, Aalto perdeu o controle do calor, da riqueza e da intensidade de sentimentos que o recinto eucarístico deve emular; para tanto, dedicou especial atenção às entradas de luz – lateralmente no terço do altar, por pano elevado à esquerda da assembléia e por janelas esguias desde a marquise frontal até o teto, que soltam os planos conformadores do trapézio na fachada principal –, as quais legam atmosfera homogeneamente tênue à nave. Além disso, outra vez superestimou a questão acústica: com efeito, a preocupação com a palavra e com o som do órgão e do canto é, novamente, raiz abstrata da concepção, fato resolvido a contento através de dezenove conchas de madeira com diâmetro de 2.50 m, pendentes do teto sobre a assembléia. Assim, em mais essa oportunidade de construir para a igreja, Aalto supera as questões técnicas através da combinação de coisas reais e abstratas – madeira, concreto, luz, cor e som –, com extrema sensibilidade.
Santa Maria Assunta, em Riola, Itália: a derradeira síntese
Já o conjunto Igreja e Centro Paroquial concebido para a pequena aldeia de Riola, a quarenta quilômetros de Bolonha, na Itália, é a última obra religiosa que Aalto dedicara-se (12), e como tal, consegue ser a mais completa e feliz soma de todas as experiências anteriores, sintetizando, com força inigualável, a articulação inteligente entre edifício e contexto, o campanário enquanto marco de um lugar sagrado, o apriorismo trapezoidal em planta e altura do templo, a fragmentação planimétrica das superfícies em razão da organicidade do espaço, a expressividade da estrutura enquanto articuladora desse organismo, a eloqüência escultórica do volume, o protagonismo da luz à percepção plástica dos elementos litúrgicos e as preocupações técnicas com os materiais e a acústica, tudo no sentido de enfatizar o foco eucarístico como centro primordial da celebração, para potencializar o sagrado dentro de edifício que devia ser, segundo a visão humanista/expressionista de Aalto, verdadeiro equipamento comunitário.
O projeto foi desenvolvido entre 1966 e 1968, mais ou menos no mesmo tempo em que a Igreja de Lahti era finalizada; no entanto, Aalto não veria nenhuma delas, totalmente, prontas antes do falecimento em 1976, já que Lahti só inicia em 1970 e Riola fica em construção entre 1968 e 1980 (13). A relação é importante, porque são planos que partem das mesmas chaves figurativas e retratam preocupações semelhantes, tanto em matéria de tratamento arquitetônico como em termos de adequação litúrgica, mas que, no entanto, dão respostas bastante diferentes. A concepção para Lahti perde-se pela necessidade de remodelação do projeto de 1950, enquanto Riola adapta-se às novas tendências litúrgicas do Concílio Vaticano II, no sentido de criar relação estreita entre altar e congregação e desses com o coro e o batistério, que agora não se coloca mais em separado – enquanto caminho obrigatório para aquele que ainda não experimentou a água santa –, mas deve estar dentro da igreja, preferencialmente próximo ao altar, já que a igreja passara a admitir a todos os homens a experimentação do cristianismo antes de renderem-se a ele.
Mesmo ocupando privilegiada elevação, que enfatiza a relevância dentro da malha da cidade, o templo em Lahti não tem a mesma potencial implantação de Riola: o conjunto italiano está colocado em sítio próximo a uma antiga via que leva à Bolonha, limitado em um dos lados pelo Reno, sobre o qual se estende velha ponte romana; no entanto, mais que a exuberância local dada pelas árvores, pelo rio e pela referência histórica, destaca-se a maneira como Aalto apropria-se do sítio para, então, torná-lo lugar com aura religiosa: o programa foi decomposto, de modo a interferir o menos possível na paisagem, com as partes, novamente, se articulando de modo a instaurar praça/adro em frente à Igreja – espaço aberto público e religioso ao mesmo tempo, constituído de materiais inefáveis – sob o mesmo céu que vê o campanário elevar-se como símbolo entre o verde, e a igreja dominar a composição, com as salas paroquiais e a casa de repouso, mais afastada, no baixo de um talude.
Desde o rio, o que mais se salienta é a massa clara e escultórica do templo, marcada pelas lanternas escalonadas que captam a luz desde a aurora ao crepúsculo por desenho muito similar ao já utilizado no auditório da Escola Politécnica de Otaniemi, de 1955. Tal plasticidade é atingida por série de pórticos arqueados, colocados transversalmente ao eixo dominante da nave; estes arrancam mais altos do lado esquerdo do acesso, e dobram-se, até pousarem mais baixos na face oposta, quando definem um corredor no interstício com o fechamento, onde está localizada a escadaria que conduz ao coro. Tais pórticos estão unidos por três grandes vigas longitudinais, que cumprem o papel de suportar as lanternas, e decrescem em altura enquanto se aproximam do altar, retratando o esquema trapezoidal da planta também em altura, embora tal perfil não se verifique, claramente, por estar dissimulado pelo formato da cobertura e pelos cortes das entradas de luz. A opção estrutural define espaço de nave assimétrica, em que o altar é, novamente, o centro para onde converge o olho, estimulado pelos pórticos decrescentes, pelas vigas longitudinais e, sobretudo, pelos fachos de luz, dispostos no comprimento do espaço, vindos das lanternas; esses estimulam atmosfera, ao mesmo tempo, clara e repousante, plástica e serena, já que a luz aborda o espaço difusamente desde fonte imperceptível, não causando ofuscamento.
O recinto busca seguir os novos preceitos litúrgicos, com o altar enquanto foco cristocêntrico dominando a organização e estabelecendo estreita relação com assembléia, coro e batistério; a assembléia dispõe-se frente ao altar, em duas faixas diferentes para definir, pelo corredor central, eixo processional reto desde o acesso até o centro da celebração; o batistério foi, efetivamente, trazido à organização interior, como recomendado, embora mantenha independência volumétrica na forma de um prisma poligonal, mais baixo, apenas agregado ao volume principal, à direita do altar, no lado da pendente ao rio; tem acesso próprio e liga-se com o altar por três degraus, ficando a beleza do espaço por conta do efeito lumínico proporcionado por abertura que recorta, irregularmente, a laje, para captar, zenitalmente, a luz e conduzi-la até o interior, marcando o lugar onde deve acontecer a bênção com a água santa – recurso muito parecido ao utilizado na capela menor de Lingby, e quase igual ao do batistério de Wolfsburg.
Como em Seinajöki, o espaço de culto pode ser estendido pela abertura da grande porta dobrável, colocada na fachada principal, vinculando o interior com o adro fronteiro. Como em nenhuma outra, no entanto, pode-se sentir força expressiva derivada da estrutura, já que os pórticos arqueados de concreto trabalham no sentido de mostrar peso, ao mesmo tempo em que aparecem como o esqueleto de um organismo que depende, totalmente, do protagonismo dos suportes para tomar forma, reforçar os limites e despertar o sagrado. Assim, Aalto constrói lugar onde, como em Imatra e Wolfsburg, é muito tênue o limite entre o escultórico e o arquitetônico: a geometria rígida desprende-se das amarras racionalistas, e um sentido orgânico de concepção contempla a função religiosa pelo calor e pelo sentimento de proximidade com o homem, potencializando a experimentação de elementos reais e abstratos, combinados com liberdade empática, em igreja feito corpo, de interior feito entranhas.
notas
1
Independente de razões de cunho produtivo ou climáticas, a arquitetura escandinava havia despertado a atenção de todos por ter adaptado as pautas da modernidade ao saber construtivo local e à anterior influência classicista, conciliação que, de pronto, não causara uma tal ruptura com o passado, como em outros países europeus. E, em relação ao objeto, o desenho sempre fora impecável, alta qualidade e tom artesanal, o que também muito impressionava a todos.
2
Por volta de 1932 Aalto conhece o casal Harry e Mairea Gullichsen, ela herdeira da grande firma Ahlström de madeira, papel e celulose, desenvolvendo amizade consistente que alavancou sua carreira a partir do desenho de mobiliário para a indústria; desde aí, junto à outra grande empresa do setor, a Enso-Gutzeit, Aalto teria o patrocínio da indústria madeireira finlandesa até sua morte, em 1976. Ver FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 238 e 239.
3
Cf. FRAMPTON, Kenneth. Op. cit., 241.
4
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 292.
5
MONTANER, Josep Ma. Después del movimiento moderno. Barcelona, Gustavo Gili, 1997, p. 86.
6
Recurso muito semelhante ao que Le Corbusier usara anos depois para iluminação dos altares nas capelas laterais da igreja de La Tourette.
7
Cf. MAHFUZ, Edson da C. Ensaio sobre a razão compositiva. Viçosa, UFV / Imprensa Universitária; Belo Horizonte, AP Cultural, 1995, p. 124.
8
“O serviço divino de uma igreja luterana requer três focos arquitetônicos: o altar, o púlpito e um corpo elevado com o órgão para a música e o coro. Os três acomodam-se de forma triangular na igreja principal. O altar como lugar sagrado está colocado no centro e o púlpito, geralmente, está relegado a um costado. Considerando que a audibilidade do sermão é a questão mais importante em uma igreja luterana, ela deve resolver-se em um interior assimétrico. A larga parede, situada frente ao púlpito, em diagonal, determina o reflexo do som em grau muito maior que o das outras paredes. O desenho correto dessa parede torna possível que chegue ótima reflexão do som à congregação. Nesse caso, a parede acústica resolveu-se com superfícies de várias formas curvilíneas e arqueadas. Toda a parede, inclusive a área das janelas, está curvada para o interior.” Alvar Aalto apud SCHILDT, Goran. Alvar Aalto. Obra completa: arquitectura, arte y diseño. Barcelona, Gustavo Gili, 1996, p. 51- 52.
9
Código também utilizado por Asplund no projeto feito a partir de 1933 para a Capela de Santa Cruz, no Cemitério Sul de Estocolmo, sendo, no entanto, o perfil de Aalto bem mais saliente.
10
FRAMPTON, Kenneth. Op. cit., p. 245.
11
Idem.
12
Há um novo projeto realizado para Lahti em 1970, mas que parte da concepção vencedora do concurso em 1950.
13
A igreja, com a sacristia e a primeira parte do Centro Paroquial foram inaugurados em junho de 1978, mas o projeto só se completaria dois anos depois. FLEIG, Karl. Alvar Aalto. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 205.
sobre o autor
Fábio Müller é arquiteto e urbanista (UFSM, 1999), mestre em Teoria, História e Crítica de Arquitetura pelo PROPAR/UFRGS (2006)