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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo discorre sobre o uso da luz natural como um elemento de construção do espaço, de sua importância no processo conceptivo de arquitetura, unindo aspectos técnicos e poéticos


how to quote

BARNABÉ, Paulo Marcos Mottos. A luz natural como diretriz de projeto. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 084.01, Vitruvius, maio 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.084/244>.

“A luz não é tanto algo que revela, como é ela mesma a revelação”.
James Turrell

A luz permeou diversos discursos no transcorrer da história da humanidade. Muitas ponderações lumínicas foram estabelecidas em escritos filosóficos, religiosos e psicológicos.(2) Através da “Alegoria da Caverna”, Platão (3) imaginou uma estirpe de escravos colocados em uma gruta desde a infância, acorrentados de maneira que só lhes era permitido olhar para uma parede à sua frente. Ardendo às suas costas uma fogueira projetava as sombras de pessoas e objetos. Para os prisioneiros essas sombras bidimensionais era a única realidade existente; eles não sabiam que possuíam corpos tridimensionais imersos em um universo ultradimensional.

Por estarem acostumados a pensar que a realidade resumia-se às sombras de homens e objetos, quando um desses prisioneiros fosse liberto e conduzido ao exterior, teria grande dificuldade e precisaria de certo período de adaptação sob o sol para perceber, então, as formas e as sombras verdadeiras desses corpos.

Essa condição dos escravos de Platão é adequada para exprimir uma analogia sugestiva: a superação moderna da concepção tridimensional do espaço pelos novos conhecimentos da ciência, através principalmente da teoria da relatividade, aludindo à possibilidade de uma interpretação que considera outras dimensões do universo físico, principalmente a dimensão tempo. A força exercida por esse rompimento dos horizontes conceituais sensibilizou a pesquisa de vanguarda, enriquecendo a ruptura com os paradigmas das artes figurativas e da arquitetura.(4)

Muita coisa mudou na vida dos homens contemporâneos, mas o vetor fundamental no processo de conhecimento do mundo físico, tanto antes como agora, é a luz. Neste universo confinado de sombras a luz dá forma e sentido às entidades materiais e as conecta entre si. A luz constrói e media a relação entre o espaço e a dimensão psíquica do usuário, torna perceptível o movimento, ordena e define todos os fenômenos reais. As trevas, o olhar escravizado, dirigido para as sombras, pode dar ao homem uma visão distorcida do mundo.

A impor-se não somente aos olhos, mas à consciência, está sempre e somente a luz que corre, penetra, reflete-se pelas coisas, clareia, cria transparências e espessuras, funde-se na água, dilata-se no céu.

Esta reflexão parte do pressuposto de que arquitetura é também “(...) um fenômeno de emoção”, e não apenas um objeto utilitário.(5) Portanto, arquitetura é “mais” que construção. E este “mais” está ligado a um complexo processo de concepção, no qual o uso da luz natural como diretriz de projeto requer uma postura crítica que valorize igualmente uma relação íntima entre aspectos poéticos e aspectos técnicos; tendo como referência o contexto histórico-cultural e as condições ambientais do lugar, as necessidades programáticas, as técnicas construtivas disponíveis e, principalmente, os usuários.

Afinal as pessoas exigem uma somatória de aspectos ligados ao espírito e ao intelecto para se sentirem vivas, e experimentarem bem estar. Por outro lado, as criações lumínicas mais eloqüentes na história da humanidade não estavam interessadas apenas em dramaticidade teatral ou apenas em acuidade visual. Os melhores exemplos de arquitetura mostram o quanto seus idealizadores esforçaram-se em atender aos aspectos poéticos e técnicos simultaneamente.

Mas, “uma coisa é clarear, outra coisa é iluminar”. Iluminar é “mais” do que fornecer uma luminosidade adequada para uma determinada função; é expressar valores conotativos ao projeto, modificando, controlando e mediando a luz; possibilitando com isso a qualificação do espaço envolvente no qual se vive. Luz sendo configurada pelo seu valor expressivo, não só do ponto de vista plástico-visual, mas também perceptivo. Porque sem “(...) luz, a vida não seria possível. Sem percepção, não haveria sensibilidade nem inteligência. A luz faz para a vida aquilo que a percepção faz para a inteligência”.(6)

Algumas das relações percebidas através da experiência de luz são universais, imagens arquetípicas que a humanidade compartilha; certos significados são culturais, absorvidos através de rituais ou das atitudes perante a vida; outros são pessoais, associados aos eventos específicos vividos. Assim como se pode escolher uma roupa para usar ou não usar, por causa de certas associações, de modo específico, padrões de luz lembram de um lugar, permitem fazer correlações com outros lugares, possibilitam vivências acumulativas multifacetadas.

A partir dessas considerações, pretende-se demonstrar a importância da luz natural no processo conceptivo de arquitetura. De evidenciar o seu uso como material arquitetônico construtivo, capaz de ser uma das geratrizes das decisões. Mostrar que a arquitetura para os mestres seguiu centrada não no útil apenas, nem nas puras e simples soluções práticas às exigências de um espaço coberto, mas respondeu a uma necessidade mais profunda do espírito: construir um habitat qualificado, no qual a luz também se manifesta num sistema de relações que transcende ao mero dado material das construções.

Portanto, a luz pode ser interpretada como matéria de compor; como elemento facilitador para a percepção dos fenômenos e, ao mesmo tempo, dissimulador na clareza fideísta promovida antigamente pela linearidade mística, hoje substituída pela multiplicidade das reações poéticas das produções contemporâneas.

A luz natural e o projeto de arquitetura

A luz é a “consciência da realidade”. O mundo existe enquanto é sentido, tocado e, sobretudo, visto. Mas, a luminosidade, as cores e a aparência das coisas é somente o efeito produzido sobre a retina por uma particular forma de energia conhecida com o nome de radiação eletromagnética. Aquilo que realmente existe é a energia eletromagnética, enquanto a luz pode ser definida como uma invenção do sistema constituído pelo olho-cérebro que captura a energia radiante emitida em um determinado intervalo de comprimento de onda para transformá-la em sensação visível.

Nesse quadro a visão é, sem dúvida, o sentido mais importante, pois através dos olhos são recebidas mais de 80% de todas as informações. Pode-se dizer que o mecanismo da visão é uma espécie de decodificador das informações transmitidas pela luz. Esse sentido é o grande responsável pelo relacionamento das pessoas com o mundo. O ato de ver envolve uma resposta à luz. Todos os elementos são revelados através da luz, de sua presença ou ausência relativa, reforçada por um contraste tonal. As variações de luz ou tons são os meios pelos quais se distingui oticamente a complexidade da informação visual do ambiente.(7)

Mas o processo de ver depende também da mente que interpreta os estímulos luminosos, porque o ser humano olha o tempo todo, mas realmente vê somente aquilo que sua mente está interessada assimilar. Sua experiência de vida, desejos e aversões influenciam no ato de visualizar o que o rodeia. Disso decorre então ser capaz de projetar ambientes visualmente confortáveis dependendo do modo pelos quais estuda esses problemas.(8)

Portanto, a luz natural é condicionante fundamental no processo inventivo do projeto arquitetônico, sendo quase impossível desconsiderá-la. Usá-la como diretriz no momento conceptivo, definir relações formais, espaciais e perceptivas tendo-a como geratriz dos elementos construídos resultará certamente em qualificação do ambiente concebido. O sentido final transcenderá aos aspectos apenas visuais, ajudando a modificar os hábitos de perceber as coisas isoladamente no espaço, para passar a identificá-las como parte de um “evento” que absorve o mundo tecnológico, mas também prioriza o mundo perceptivo em que outros sentidos participam. Resgatando-se, assim, as relações pessoais no vivenciar da arquitetura e do seu contexto físico-cultural.

No mundo perceptivo, o indivíduo interage com vários elementos que o envolve: o espaço e seus componentes imateriais - a luz, os odores, os sons. Isso se evidencia, por exemplo, nas diferentes emoções que as pessoas sentem quando vivenciam uma catedral vazia ou cheia de fiéis entoando cantos de louvor, sob a fumaça de incensos a modificar os efeitos dos raios de luz que transpassam suas peles vítreas coloridas.

Então, apesar dos grandes avanços tecnológicos dos últimos tempos, parece que a relação entre as pessoas e o ambiente construído segue evoluindo lentamente. Muitos valores que hoje lhes são caros continuam ancorados em arquétipos de seus ancestrais, que por sua vez demonstravam a enorme capacidade de se adaptar ao seu meio ambiente e estabelecer muitos elementos arquitetônicos relacionados diretamente com o tema da luz natural. Pode-se mesmo conjeturar que muitas das antigas necessidades funcionais e espirituais ainda permanecem vivas e determinantes na concretização dos espaços de vivência dos seres humanos. As pessoas ainda necessitam transcender ao mero dado material dos objetos construídos para projetar sobre as formas e espaços edificados valores estéticos, simbólicos e emocionais.

O estudo da luz passa a ser então qualquer coisa “mais” que mera investigação sobre iluminação, porque luz e lugar se pertencem. “Luz, acontecimentos e lugares podem somente ser compreendidos em sua mútua relação. A fenomenologia dos acontecimentos e lugares é também a fenomenologia da luz. Em geral, eles todos se relacionam à fenomenologia da Terra e do Céu. O Céu é a origem da luz, e a Terra sua manifestação”. (9) Por essa razão a matéria luminosa torna-se a base unificante do mundo, que sempre é o mesmo e sempre é diferente. Ela permite elaborar uma poesia da vida cotidiana, uma poesia de vivência que busca o estabelecimento de lugares e não de espaços amorfos.

Disso decorre o entendimento de que toda arquitetura é construção, embora nem toda construção seja arquitetura. E que toda construção gera relações formais, espaciais e lumínicas. Mas nem toda construção, nem toda arquitetura são geradas tendo a luz como diretriz de projeto.

O processo criativo em arquitetura obedece a uma série de fatores intervenientes que agem como “estímulos”, como agentes catalisadores de acontecimentos científico-artísticos chamados de “idéias”. Estas, por sua vez, são representações mentais de um objeto que se materializa através das imagens projetadas. Todo esse processo é dependente da bagagem de conhecimento acumulado e previamente assimilado, enfim, da cultura geral do projetista, tendo ligação direta com processo histórico em que este se insere.

À medida que aumenta a complexidade das relações e referências, cresce o número de decisões a ser tomadas. Os recursos disponíveis para as análises referem-se a conhecimentos específicos que intervêm cada qual com um determinado peso e são dependentes de arbítrio do arquiteto. Esse fato confere um caráter subjetivo às decisões, justificando o fato de não existirem dois projetos iguais.Por mais idênticos que sejam osmétodos e os parâmetros adotados, as soluções ou sínteses operadas pelos projetistas são atos pessoais que refletem sua leitura, sua valorização de algumas premissas em detrimento de outras.

Nesse sentido, o processo de concepção em arquitetura depende fundamentalmente da opção por parâmetros que nortearão o projeto. Um desses parâmetros pode ser a luz natural. Para alguns arquitetos ela é apenas um elemento circunstancial e condicionante luminotécnico do conforto ambiental. Para outros é material construtivo similar ao concreto e ao tijolo. Todos, de uma forma ou de outra, a consideram no processo de projeto; mas nem todos conseguem priorizá-la como condicionante geradora de elementos formais e espaciais que agreguem “valor” ao objeto construído e transcendam ao simples acaso de jogos de luz e sombra. Os mestres a consideravam elemento prioritário - funcional, estético, poético e simbólico; sem o qual não poderia existir arquitetura.(10)

Sabe-se, portanto, que não existe qualquer objeto arquitetônico desvinculado da luz natural, pois todo volume projeta sombra sob a luz. Mas a questão que se quer enfatizar é diversa. Defende-se, aqui, a tese da valorização arquitetônica através da opção consciente do uso da luz natural como diretriz de projeto, mesmo que outros parâmetros sejam também parte das premissas que definam a sua concepção.

Adotar a luz como diretriz não implica desconsiderar outros importantes parâmetros fundamentais ao desenvolvimento do projeto, como alguns aspectos ligados ao local e seus arredores, às necessidades programáticas, aos sistemas construtivos, aos elementos que propiciam conforto ambiental. Utilizar a luz natural como geratriz implica, antes, tornar esse elemento um “catalisador” de propostas, tendo ciência que isso envolverá uma série de outras tantas condicionantes diretamente relacionadas a esse tema como, por exemplo, as considerações climáticas do lugar; a mutabilidade das características luminosas na variação do tempo, dos dias e das estações; as características dos envoltórios – aberturas, filtros, materiais, texturas e cores; o diálogo entre interior e exterior, entre as áreas iluminadas e sombrias, etc.

Assim, iluminar não significa somente dar a justa medida de luz a um ambiente, mas a possibilidade de modificar e controlar a luz. Luminotécnica torna-se “mais” que uma ciência quantitativa, passando a expressar valores perceptivos conotativos aos projetos. Não somente aplicando uma série de dados pré-estabelecidos, mas refletindo objetivamente e poeticamente sobre o espaço no qual se vive.

E o que é qualificar o espaço através da luz? É estabelecer uma “boa luz”, muito diferente de fornecer apenas mais quantidade de iluminação. Uma luz que esteja ligada à idéia de contrastes que revelem a verdadeira plasticidade das formas e dos espaços. Desde uma luz intensa até uma sombra mais profunda, uma quantidade adequada de luz refletida entre as sombras a fim de aí também se obter relevo, textura e cor.(11) Uma luz que respeite as funções que serão exercidas no espaço projetado e que possa também ser considerada autônoma em sua capacidade de transformar-se em “elemento lingüístico no momento inventivo do projetar”, não só iluminando a mensagem, mas sendo a própria mensagem. Alterando o estado de ânimo das pessoas com as suas variações no decorrer do dia, no passar das horas e das estações, pulsando em intensidades, escurecendo e clareando, aparecendo e desaparecendo, tornando vivo o mundo, pois mudança e crescimento são qualidades inerentes ao processo da vida. Em suma, materializando a tese segundo a qual a luz é matéria viva da composição, inserindo-se no contexto histórico-cultural, representando as características ambientais de seu sítio (“espírito do lugar”), agregando as características expressivas, simbólicas e técnicas de hoje (“espírito do tempo”).(12)

Entretanto, nem sempre as relações que são estabelecidas no dialético processo de concepção em arquitetura se fazem através da escolha entre dois pólos opostos bem definidos. Muitas vezes o discurso permeia-se também naquilo que é interposto nas áreas de transição; como o pôr do sol e da aurora, zonas de passagem, de luzes intermediárias, belas porque inesperadas e incertas.(13)

Ao dar ênfase ao valor das gradações tem-se a oportunidade de conceber diferentes espaços-luz ricos em efeitos de soluções corpóreas, voltando-se a valorizar invenções de cheios e vazios, relações de claro e escuro, reentrâncias e saliências, massificações e rarefações, densidades e transparências, pesos e levezas, enfim, valorizando a mutabilidade dos lugares. De forma que a luz deixe de ser neutra e abra ou feche os ambientes à penetração visual, expandindo ou reprimindo os volumes, animando ou emudecendo os espaços, permitindo a experiência visual do objeto arquitetônico e tornando possível a sua utilização.

Para resolver o paradoxo de criar um estado estável em uma condição de fluxo instável - como é o que se apresenta no mundo natural, no qual a luz do macro ambiente muda constantemente de qualidade, direção, intensidade, cor e distribuição - o arquiteto tem à sua disposição elementos estruturais, de vedação e aparelhos de iluminação noturna. Muito da qualidade arquitetônica advém da manipulação desses elementos e das relações propiciadas por eles. “Fazer luz” passa a não ser mais revelar o mundo e os seus mistérios, e sim acrescentar à realidade uma nova validade qualitativa, talvez rica em mistérios, talvez clara e envolvente. Interferir com a luz significa agora modificar a qualidade do espaço do homem criando uma nova definição de “paisagem” e “atmosfera”.

No processo do projeto arquitetônico são manipulados vários tipos de materiais. Materiais “estáveis” – tijolos, concretos, vidros, etc. – e materiais “instáveis” – luz, som, temperatura, odor, etc. – que interferem na percepção das texturas, cores, tamanhos e nos efeitos variáveis com o passar do tempo.(14) Embora esses elementos “instáveis” sejam os de mais difícil domínio, quando pensados como “matéria”, podem ser controlados conforme a intenção do arquiteto.

A luz natural é um desses elementos “instáveis” que envolvem a arquitetura, podendo ser uma das diretrizes de projeto na identificação e caracterização de lugares específicos: lugares com baixa luminosidade, lugares com luminosidade gradual, lugares escuros com feixes de luz dramática, lugares fortemente iluminados. A matéria luminosa pode evidenciar a arquitetura, estimular a psique humana, facilitar as ações das pessoas tornando os espaços confortáveis, modificando a visão da volumetria do ambiente alterando as três dimensões da arquitetura. Também as sombras e as obscuridades são componentes relacionados à luz e através delas é possível perceber a tridimensionalidade dos objetos, conferindo ao ambiente uma magia que de outra forma não se obtém.

É preciso ciência de que um lugar pode mudar radicalmente sua ambiência segundo o modo como são manipuladas suas relações e elementos construídos. Por exemplo, um ambiente envolto por planos de vidro transparente terá qualidades lumínicas bastante diversas de um ambiente, com dimensões semelhantes, mas envolto por peles opacas e com uma pequena abertura no teto. Assim como certas atividades requerem luminosidade específica: a iluminação de um lugar de contemplação e oração difere muito das necessidades lumínicas de um lugar para se fazer compras. Afinal, a luz é inseparável do tema dado no programa. A escolha da quantidade e qualidade da luz depende principalmente do tema.

No entanto, o olho humano requer pouco contraste em seu campo de visão. E isso não significa que o olho “deseje” uma iluminação adirecional, uniformemente distribuída, pelo contrário, os objetos vistos exclusivamente em uma luz difusa são muito difíceis de se avaliar corretamente. É necessário, então, saber dosar a luz, a sombra, a semi-obscuridade que podem ser plasmadas para testar e indagar sobre as futuras experiências visuais. O problema relativo ao controle luminoso pode então ser resolvido somente se a iluminação diurna torna-se parte integrante e determinante no processo de projeto.

Apesar do exposto anteriormente, sabe-se que o processo de concepção em arquitetura é muito complexo, haja vista os múltiplos fatores intervenientes e as inúmeras opções possíveis. Por exemplo, mesmo partindo de diretrizes semelhantes, ligadas à luminosidade dramática que o tema religioso exige, arquitetos podem chegar a projetos diversos. É o caso da igreja do Monastério de Sainte Marie de La Tourette (1952-59), perto da vila Eveux-sur-l’Arbresle a oeste de Lyon na França, de Le Corbusier e a Catedral Metropolitana de Brasília (1958) de Oscar Niemeyer.

Em La Tourette, Le Corbusier mostrou uma atitude oposta ao pragmatismo moderno de sua fase purista. Referenciou sua arquitetura ao programa de uma comunidade que não mudou muito desde a época de sua fundação. Uma comunidade que requeria uma obra na qual a arché, a autoridade, decorresse de sua permanência, de seus princípios, de seus rituais do dia a dia. A partir disso, o arquiteto descobriu novamente a importância em reler, adaptar, interpretar uma tipologia através de uma linguagem atual. Certamente a chave que norteou o projeto foi a luz, e a luz iluminava as formas, e as formas tinham “(...) um poder emocional”.(15)

Assim como já havia ocorrido em Ronchamp (1950), La Tourette demonstrava a evolução do seu pensamento moderno que agora retomava a idéia histórica da luz e da sombra, dos cheios e dos vazios, dos “buracos” na parede – condicionada a uma leitura contemporânea. O partido geral proposto por Le Corbusier expressa a dualidade de uma comunidade que vive entre seus estudos privados e seus serviços comunitários, através de diferentes experiências em espaços ora iluminados, ora penumbrosos. As formas e a luz no monastério formam uma composição dialética revelando o perpétuo conflito entre o sagrado e o profano. A experiência essencial do sagrado é revelada pela luz e pela matéria bruta. Cada parte do monastério foi definida de acordo com o tempo e sua luz, permitindo que os monges vivenciem a passagem dos dias e das estações. A luz é o “ornamento” para todas as formas brutas do edifício, dando vida ao ritual diário do monastério, revelando o material difusor uniformemente utilizado: o concreto aparente - a luz expondo o trabalho formal das madeiras impressas em suas superfícies desformadas.(16)

O acesso à igreja foi estabelecido por uma rampa descendente iluminada homogeneamente pela lateral através de extensas janelas, as “ondulatoires”, ritmadas por placas de concreto intercaladas por planos de vidro transparente de diferentes larguras, do piso ao teto. A rampa é o primeiro ato de submissão, induzindo os fiéis a baixarem a cabeça, olhar o chão humildemente antes de entrarem no espaço sagrado. Ao adentrar, a igreja parece imersa na escuridão, lembrando uma “caverna”. Por instantes, as pessoas ficam paralisadas até seus olhos ajustarem-se ao baixo nível luminoso e haver uma compreensão do espaço. A percepção do todo é gradual, as partes delineadas pela luz de forma seqüencial, não sendo possível ter uma noção do conjunto de uma só vez. A exigüidade de envidraçados garante a relativa escuridão e a localização dessas aberturas modela o espaço.

A igreja apresenta-se, então, como um grande e alto espaço prismático em forma de paralelepípedo com rasgos de luz situados ora ao nível do teto, ora ao nível dos bancos de oração. A luz também marca um rasgo do piso ao teto provocando feixes de luz e evidenciando a verticalidade da caixa. A penumbra predomina e a reduzidíssima luz vem canalizada por pontos focais estratégicos, enfatizados pelo uso de cores primárias. Sobre os quatro altares laterais em desnível, onde os freis fazem celebrações individuais, foram alocados canhões de luz em ângulos diferentes, sublinhando o caráter subterrâneo dessas capelas. Essa luz misteriosa provoca uma atmosfera mística semelhante àquela dos antepassados da primeira parte da Idade Média, enfatizando a distância entre a porta mundana de acesso e o altar sagrado centralizado em sombra, visível aos monges e aos fiéis que se aproximam dele por lados opostos.

No projeto da Catedral Metropolitana de Brasília, Niemeyer também usou a luz e a sombra como diretrizes projetuais. Nela encontram-se diferenças e semelhanças em relação à La Tourette.

O partido geral define-se pela contraposição entre a intensa luminosidade externa tropical e uma luminosidade interna resultante da transposição da luz natural através das peles duplas do envoltório da cúpula da catedral; ambas intermediadas por um túnel de acesso em plena escuridão. A partir de um retângulo negro no piso branco da praça, a entrada “(...) em rampa leva, deliberadamente, os fiéis a percorrer um espaço de sombra antes de atingir a nave, o que acentua pelo contraste os efeitos de luz procurados”.(17) Além de marcar o primeiro ato de submissão das pessoas, assim como foi verificado anteriormente na rampa descendente da Igreja de La Tourette.

Esse projeto certamente considerou o fato de que as passagens escuras desorientam, espantam, preparam para vivenciar outras luzes, mas antes de tudo fazem emergir uma faculdade desconhecida: da alternância de luz e sombra percebe-se um tempo espacial que não tem nada a ver com aquele do relógio. Assim acontece quando as pessoas perambulam por uma cidade antiga, onde as construções determinam ruas labirínticas, muito das quais estreitas e escuras. Percorrê-las é como caminhar através de um acontecimento de claro-escuro, de contínuo nascimento e renascimento espacial, de variadas percepções qualificadas.

Normalmente Niemeyer optou por subverter o corriqueiro, o usual. Nos vários edifícios religiosos que projetou fica evidente a sua liberdade, sem angústias e inquietudes éticas, fatores limitantes aos europeus. Lendo o memorial do projeto percebe-se as referências históricas que inspiraram o arquiteto e demonstravam que ele também se rendia a tipologias: Pantheon romano, Catedral de Chartres, Templo Redondo de Bramante.

Dois ícones desse retorno a valores típicos dos templos antigos materializaram-se na proposta do arquiteto: a rusticidade da arquitetura paleocristã com suas passagens subterrâneas e criptas; e a lanterna que encima a cúpula da igreja renascentista, usada agora agigantada, como a própria nave. Externamente, a Catedral é uma composição de alguns elementos simples distribuídos sobre uma esplanada, pano de fundo para o “espetáculo arquitetural”: o campanário, o corredor de acesso ladeado por estátuas, o volume da nave maior, a massa rotunda fechada do batistério e o plano curvo que indica sua entrada. Todos visíveis para quem transita pela Avenida dos Ministérios.

Nessa esplanada de acesso nem todos os elementos são abstratos. Existem alguns signos iconográficos como uma esbelta cruz metálica colocada sobre a nave e as estátuas de bronze, realizadas por Alfredo Ceschiatti, referenciadas às esculturas realizadas por Aleijadinho na Igreja de Congonhas do Campo, em Minas Gerais. Citação barroca repetida no interior da nave, onde três anjos de bronze, do mesmo autor, suspensos no teto, insinuam-se no exterior através da transparência dos planos de vidro.

Inicialmente proposta como um cilindro, a nave foi definida através de uma série de estrias de concreto e planos de vidro refratário, placas poligonais inseridas em uma malha metálica, conservando a transparência do conjunto. Essas estrias - colunas de concreto delgadas, inclinadas e ascendentes - determinam o volume da Catedral, surgindo de uma dupla inclinação e dirigindo-se ao céu e a terra, na qual a luz solar refletida num espelho d’água ajuda a aumentar a sensação de leveza, de volume que flutua, capaz de enganar o espectador quanto as suas reais dimensões. Niemeyer implanta o edifício sobre essa lâmina d’água para ocultar a base das colunas, dando a entender que elas nascem das águas, fato que contribui para atenuar o impacto de todo volume sobre o solo – lições luminosas de sua viagem a cidade de Veneza. Elimina, assim, o problema das zonas de transição entre o edifício e o ambiente exterior, problema que em outros de seus edifícios é resolvido com uma faixa de sombra. “Assim vinte e um montantes, contidos numa circunferência de 70 metros de diâmetro, marcam o desenvolvimento da fachada, uma composição e ritmo como de ascensão ao infinito”.(18)

Já para o acesso Niemeyer não propôs um pórtico monumental como era de esperar para um grande templo. A entrada é um plano retangular negro e centralizado no piso da praça, totalmente em sombra, quase imperceptível para quem passa pela Avenida dos Ministérios, onde o acesso ao túnel, em rampa em declive, leva diretamente à nave principal rebaixada em três metros do nível da esplanada. O adentrar por uma passagem sombria, antes de se introduzir sob a coroa de concreto e vidro, é um artifício que reforça, por contraste, a intensidade luminosa e o dinamismo em ascensão do espaço interno.

A sombra sobre a rampa, quase escuridão em certas horas do dia, acentua-se pelos revestimentos escuros e pelas dimensões reduzidas do túnel de acesso. O contraste estabelecido entre essa descida escura e a luminosidade intensa da nave, proporcionada pelos painéis de vidro entre os montantes, foi atenuado com a instalação de um vitral, originalmente previsto. Esse vitral de Mariane Peretti nas cores azul, verde e branco, torna mais branda a luminância interior, criando zonas de menor luminosidade, fragmentando a iluminação que antes era mais homogênea. Nesse espaço de luz cristalina entremeada por cores, a atração pela altura é tão irresistível como numa ossatura de catedral gótica, mesmo o espaço sendo configurado de uma forma diferente.

O uso de planta circular é um outro recurso simbólico, cuja imagem de perfeição e de totalidade desenha uma metáfora do cosmos, da terra e do céu entrelaçados. Os templos de planta circular possuem grande força centrípeta, concentram as imagens em um ponto de vista privilegiado, permitindo ao usuário visualizar a perspectiva do conjunto desde seu núcleo geométrico - sensação semelhante à percebida no Pantheon romano. A grande lanterna projeta, então, uma luz materializada, matizada pelo colorido vitral, tipologicamente semelhante ao Pantheon onde um feixe de luz sólida cruza o vazio na forma de um cone, segmentando o espaço geral em espaços particulares. Niemeyer retomou assim a temática do espaço sagrado, mas subverteu o modelo e propôs um cone cilíndrico de luz permanente.

Essa relação com a luz do edifício romano ocorreria em outro projeto, não construído: a Mesquita de Argel (1968), onde uma abertura zenital projetaria um feixe de luz vertical como um relógio de sol, irradiando luz sólida na forma rotunda de suas paredes, inserindo assim uma solene monumentalidade, uma relação direta entre o sagrado e o homem. Nela predominaria uma única linha curva que sairia do pavimento térreo e seguiria sem interrupção até o vértice da zenital vertendo luz. O edifício flutuaria todo branco sobre um espelho d’água e sua forma ganharia uma qualidade etérea, leve, elegante.

Mas em relação à Catedral de Brasília nem tudo é tão iluminado. Seguindo por um túnel à esquerda de quem entra na nave principal, encontra-se o batistério. Um espaço inserido em uma forma oval, uma cobertura abobadada, uma casca de concreto aparente de textura suave, concêntrica, com uma sanca de iluminação artificial na parte inferior, sob a qual encontram-se pequenas aberturas em todo perímetro. Através delas entram feixes de luz natural, dando a impressão que toda a cúpula flutua. Outra fonte de luz natural significativa vem do vão de uma escada circular em concreto aparente, que ascende diretamente à esplanada da praça superior – local por onde deveriam entrar aqueles que ainda não tinham sido batizados, conforme as tradições antigas. As paredes do batistério são revestidas com pequenos azulejos azuis, verdes e brancos, formando um painel assinado por Athos Bulcão.

Outro espaço em penumbra é a pequena capela com uma cripta, localizada sob o altar, onde ocorre novamente a gradação de intensidade luminosa: da claridade da nave superior desce uma escada chegando à penumbra da capela, local de maior recolhimento.

Disso tudo decorre que uma visita a Catedral faz permanecer na memória das pessoas a forma expressiva e as experiências proporcionadas pela manipulação da luz como diretriz de projeto, tanto em relação à luminosidade quanto aos ambientes mais escuros. A simplicidade na proposta simbólica conduz o usuário a refletir sobre o sagrado, curvar-se ao descer por uma rampa em penumbra, visualizar uma possibilidade de redenção no final do túnel e entrar num espaço de luz mágica.

Pode-se deduzir daí a importância da luz natural na concepção arquitetônica. E concluir que nesse processo interagem múltiplas relações e elementos que definem aspectos específicos do objeto construído. Pois, dentre tantas possibilidades citáveis, a luz pode: revelar ou desmaterializar formas, espaços e superfícies; relacionar a obra com seu contexto físico-cultural, seu clima e sua orientação; promover a percepção do tempo com dinâmicos efeitos cinéticos; condicionar a escolha de uma pele, de uma matéria, pois os mesmos reforçam o caráter tátil, ótico e natural com cores e texturas diversas, além de interferir no grau de transparência e opacidade; conectar ou separar o interior do exterior - as interferências feitas no envoltório (tipos de aberturas, filtros e vãos) serão decisivas na forma como a luz adentrará nos espaços interiores e na maneira como o jogo de luz e sombra modificará a articulação volumétrica; unir, diferenciar, conectar ambientes; bem como dirigir e orientar, estabelecendo pontos focais, hierarquias e movimentos dinâmicos; enfatizar no espaço um sentido de verticalidade ou horizontalidade; juntamente com a sombra, modificar as proporções óticas do conjunto edificado e seus detalhes, promovendo efeitos de leveza ou peso - como também reforçar volumes e perfis, marcar acessos, articular superfícies e projetar rendilhados; criar atmosferas, podendo simbolizar ou representar uma idéia, um conceito, um valor como o cosmos, a vida, a morte, o sagrado e o profano; bem como promover associações, podendo expressar sentimentos. Enfim, uma boa iluminação molda e modifica a realidade, condicionando o estado de ânimo das pessoas e sua percepção geral dos ambientes que vivenciam.

notas

1
O artigo que enviamos é parte do primeiro capítulo de: BARNABÉ, Paulo Marcos Mottos. "A luz natural como diretriz de projeto para a concepção do espaço e da forma na obra dos arquitetos modernos brasileiros – 1930/60". Tese de doutorado. São Paulo, FAU-USP, 2005.

2
Numerosas civilizações adotaram a estética “claritas” (clareza e luminosidade) ao correlacionar Deus e luz: o Baal semítico, o Rá egípcio, o Ahura Mazda iraniano, o Kinich Ahau Maia, o Guaraci Tupi, são exemplos da materialização do sol ou da benéfica ação de sua luminosidade. ECO, Umberto (org.). História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.102.

3
PLATÃO. A República. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.

4
DIERNA, Salvatore. In: PONTE, Silvio de. Architetture di luce. Luminoso e sublime notturno nelle discipline progettuali e di produzione estetica. Roma:  Gangemi, 1999, p.15.

5
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva,1973, p.10.

6
SANTAELLA, Lúcia. In: BARROS, Anna. A arte da Percepção. Um namoro entre a luz e o espaço. São Paulo: Annablume, 1999, p.11.

7
DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [1993], pp.60-61.

8
KALFF, L.C. Criative light. Londres:Macmillan, 1971, p.3.

9
NORBERG-SCHULZ, Christian. In: PLUMMER, Henry. Poetics of light. Tókio: A+U, n.12, 1987, p.5.

10
KAHN, Louis apud NORBERG-SCHULZ, Christian. Louis Kahn. Idea e imagem. Madrid: Xarait, 1981, p.12.

11
RASMUSSEN, Steen Eiler. Arquitetura vivenciada. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 82.

12
CREMONINI, Lorenzino. Luce naturale, luce artificiale. Firenze: Alínea, 1992, p.8.

13
PONTE, op. cit., p.23.

14
UNWIN, Simon. Análisis de la arquitectura. Barcelona: Gili, 2003, p.25.

15
LE CORBUSIER apud MILLET, Marietta S. Light revealing architecture. New York: Nostrand Reinhold, 1996, p.76.

16
PORTOGHESI, Paolo. In: FUTAGAWA, Yukio (org.). Light & Space. Modern architecture. Tókio: GA especial, ADA. Tokio Co., 1994, p.17.

17
NIEMEYER, Oscar. A catedral. Módulo, Rio de Janeiro, n.11, 1958, p.7.

18
Idem, ibidem, p.8.

sobre o autor

Paulo Marcos Mottos Barnabé. Doutor e Mestre em Arquitetura pela FAU/USP - 2005 e 2001; Especialista em Didática do Ensino Superior pela PUC/PR em 1998; Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela PUC/PR em 1981; Professor da Área de Projeto no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Londrina desde 1985 e Coordenador do TFGI/UEL/2007.

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