Ministrar uma aula inaugural de uma faculdade de arquitetura é a ocasião – quase uma obrigação – de abordar temas que habitualmente se evitam nas conferências nas escolas.
Costumo aproveitar cada ocasião em que me dirijo a estudantes, colegas e professores para aprofundar os temas que considero fundamentais tanto para o conhecimento da arquitetura quanto para a prática de projeto. Por este motivo, meu agradecimento ao convite que me foi feito é, ao mesmo tempo, cortês e interessado, pois expressa minha gratidão pela confiança depositada no meu conhecimento, mas ao mesmo tempo celebra a oportunidade que isso me dá de aprofundar minhas idéias e, portanto, melhorar minha ação crítica sobre a realidade.
Há 35 anos me dedico à reflexão, à docência e à prática de arquitetura, o que me permitiu ter uma visão pouco comum dessas atividades; não sei se melhor mas ao menos distinta da habitual. Geralmente, a reflexão e o exercício profissional não são práticas comuns a uma mesma pessoa, o que gera perfis intelectuais muito diferentes: o estudioso, que centra o seu trabalho na primeira, e o profissional, que se dedica inteiramente à segunda. Quanto a mim, não posso me identificar com nenhum deles; na verdade, se a prática do projeto me levou a conhecer a arquitetura “por dentro”, a reflexão me permitiu relacioná-la com as idéias e valores que fundamentam os princípios e critérios em que, ao longo da história, a ação ordenadora do projeto tem se baseado. Esta visão singular do arquitetônico – a qual, sem dúvida, me facilita o trabalho profissional e docente – criou em mim um forte sentido de responsabilidade perante a arquitetura e seus modos de aprendizagem, o que me leva a refletir continuamente sobre essas questões.
A esse respeito, pode ser paradoxal que alguém tão comprometido com o ensino tenha uma suspeita fundamentada de que, caso fossem fechadas todas as escolas de arquitetura, o nível dos projetos melhoraria de modo substancial. A tal ponto chega minha falta de confiança no modo de organizar a docência em arquitetura, pelo menos nas escolas que conheço.
A transmissão do ofício de arquiteto por meio da prática em escritórios profissionais teria, sem dúvida, o inconveniente da desorientação e do pragmatismo, patologias não muito diferentes das que afligem há décadas as escolas de arquitetura. Os escritórios profissionais – mesmo os mais pragmáticos – provavelmente garantiriam certa competência técnica e um mínimo de sentido de realidade – mesmo que se trate de uma realidade contaminada – que as escolas não oferecem.
Na realidade, há décadas as escolas de arquitetura legitimam e amplificam os excessos da arquitetura de moda, sem mostrar nenhuma capacidade de reação perante os mesmos, tanto por falta de autoridade intelectual e profissional da maioria dos seus professores, como por ausência generalizada de qualquer impulso moral que ofereça uma alternativa razoável.
Por um lado, as escolas de arquitetura são responsáveis pela consumação da separação de saberes e técnicas que confluem na atividade de projeto: não se pode entender – por mais que se esforcem em justificá-lo – porque o desenho, a construção, a estabilidade e a climatização, para falar apenas do é que mais evidente, são consideradas disciplinas autônomas que são ministradas como matérias complementares ao projeto, não como técnicas sem as quais não há concepção possível, por quanto são, ao mesmo tempo, condições e estímulo da mesma.
Por outro lado, as escolas de arquitetura difundiram a conceituação, ou seja, contribuíram de maneira decisiva para que todo critério de juízo fosse centrado na ação determinante do conceito, já que havia uma carência de critérios formais para atuar. Isso provocou o declínio da visualidade – âmbito privilegiado da arquitetura e das demais artes visuais – , o que acarreta inevitavelmente a perda da capacidade de reconhecer as qualidades que definem a identidade de uma obra, isto é, sua qualidade artística.
Sem um olhar cultivado e sem critérios de juízo não se pode projetar, em sentido genuíno, apenas se pode administrar os tópicos de moda ditados pela conjuntura, o que converte o arquiteto em um súdito estético, a mercê do que dizem uns críticos que geralmente desconhecem o fundamento do que dizem.
Não foi por acaso que as escolas de arquitetura passaram a uma posição subalterna no processo de produção do espaço habitável da atualidade: por um lado, a maioria dos que ensinam projetos – para mencionar a habilidade da que me considero mais próximo – não sabem projetar, não apenas por falta de recursos técnicos mas, sobretudo, por falta de orientação e critério. Tal situação lhes condena a emitir opiniões precárias, baseadas em crenças efêmeras por natureza, que lhes obrigam a mudar de critério cada vez que as tendências da moda o determinam.
Por outro lado, o sistema habitual de ensino parece entender que o estudante já sabe projetar desde o início; só assim se pode entender que a prática de projeto seja baseada na ficção profissional: se dá um terreno e um programa, e se pede que os estudantes projetem um edifício. Os professores se encarregam de resolver as dúvidas que cada estudante tenha, assumindo uma autoridade que não possuem e, nesse jogo, representam “a arquitetura”. Desse modo se pretende garantir a liberdade do estudante, confiando que isso estimulará a sua criatividade, sem dar-se conta que, agindo assim, se está fomentando a incompetência e a desfaçatez: com efeito, tal situação favorece a falta de vergonha do farsante que, em muitos casos, não duvida em apresentar sua incompetência como genialidade.
“Não há liberdade sem norma” – repetia Le Corbusier, a propósito das condições do projeto –, o que significa que não é mais livre quem pode escolher entre mil opções sem dispor de um critério de preferência, senão aquele que opta entre apenas duas, conhecendo o sentido da sua escolha.
As escolas têm instituído e avalizado o ensino liberal que acabo de descrever, renunciando a um ensino acadêmico, entendido no sentido forte do termo, isto é, um ensino que exige um corpo docente consciente do que trata de transmitir e, ao mesmo tempo, com competência suficiente para transmiti-lo. É surpreendente a irresponsabilidade com que em muitos âmbitos da docência arquitetônica se critica o saber acadêmico como sinônimo de esclerosado, como um impedimento com origem no passado, pelo fato de que a academia, no final do século XIX representou um freio para as mudanças artísticas. Na realidade, a própria noção de academia comporta o conhecimento do saber e objetiva a eficácia da sua transmissão, condições básicas de qualquer processo didático; um conhecimento e uma eficácia na transmissão aos quais o ensino atual renunciou, em favor de uma docência baseada na espontaneidade que acaba convertendo-se em um tipo de pantomima da criatividade que leva a “inovação e ao espetáculo”.
As escolas de arquitetura, em suma, tem atuado como aval administrativo da sobrevivência de uma atividade com um passado glorioso, garantindo seu prestígio social, sem se dar conta de que ela tem perdido progressivamente o seu sentido civil e a sua utilidade pública, até o extremo de se constituir na atualidade em uma prática supérflua com incidência nula na construção das cidades.
Para aliviar as conseqüências dessa perda de relevância, os arquitetos mais desinibidos – com a cumplicidade inestimável de alguns críticos – , obcecados por recuperar o papel que a arquitetura teve no passado por meio da notoriedade das suas intervenções, substituíram o objetivo de ordenar pela celebração da surpresa, isto é, consumaram a renúncia à qualidade em favor da “inovação”, um dos fetiches mais grosseiros do consumismo mercantil.
Agindo desse modo, as escolas de arquitetura se converteram, na prática, em creches de jovens de idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos, fascinados por um presente “criativo” e à espera de um futuro como “estrelas”, com uma popularidade comparável a de um desportista ou um cantor. A realidade é que nossas escolas estão formando mão de obra barata para os grandes escritórios multinacionais que converteram o projeto em uma atividade industrial que atua com critérios estéticos próprios de um populismo banal e com procedimentos publicitários característicos do mercantilismo mais vulgar.
Como contraponto positivo da crítica à arquitetura contemporânea e ao seu ensino, esboçada até aqui, gostaria de submeter algumas propostas à consideração dos alunos, professores e arquitetos que se encontrem na sala. Sei que alguns considerarão minha análise um tanto ácida, talvez até exagerada, pelo seu radicalismo: confesso que não me importa ser radical, se por isso se entende ir à raiz dos problemas; por outro lado, não me parece honesto sacrificar a lucidez e a clareza para ser mais amável. Não compartilho a falsa tolerância característica de certos espíritos voláteis a qual, na realidade, trata de encobrir uma desorientação que resulta no relativismo mais estéril, tão freqüente em nossas escolas.
As propostas que eu gostaria de submeter à sua apreciação são as seguintes:
a) frente a “arquitetura do espetáculo”, que se baseia em levar ao limite uma noção anacrônica e insensata de arquitetura como “expressão de uma idéia” proponho considerar a arquitetura como “representação da construção”. Não parece sensato que o dinheiro, público ou privado, tenha que financiar a simples expressão do estado de ânimo de alguns arquitetos particularmente narcisistas: sempre me pareceu que para esse tipo de desabafo é melhor utilizar um violão. Como alternativa sugiro uma prática que disponha os elementos construtivos de modo que, além de satisfazer a lógica material da construção física, respondam a outra lógica, de caráter visual, constituída por um sistema de relações entre elementos cuja consistência se relaciona com a universalidade dos critérios em que se fundamenta. Agindo assim, o arquiteto assumiria o compromisso ordenador que caracterizou o seu papel na história, o que implicaria – de novo – em um processo formador pelo que a peculiaridade de cada obra concreta adquire uma dimensão universal que – sem menosprezar o que é específico – , a relacionaria com outras. O arquiteto contribuiria, assim, com a construção de um mundo apropriado a seres inteligentes e sensíveis, o que não se infere da experiência da cidade contemporânea. b) entender a “arquitetura como material de projeto”, isto é, considerar que a ação formativa do arquiteto não age sobre o nada mas conta com uma matéria prima – elementos arquitetônicos próprios ou alheios – , cuja natureza não compromete a identidade do projeto. Pelo contrario, isso propicia uma construção formal que merece crédito, na medida em que permite concentrar o esforço na ação ordenadora, tarefa específica do arquiteto. A natureza do tecido não é irrelevante no resultado final de uma roupa, mas isso não compromete a capacidade formativa de quem o concebe e confecciona; do mesmo modo em que o fato de que estejam todas escritas em francês não reduz em nada a identidade de cada uma das obras de Flaubert, para citar um exemplo. Certas cantatas de Bach não são menos valiosas pelo fato de que – ao compô-las – tenha recorrido a melodias de Haendel, Vivaldi, ou às suas próprias, pertencentes a obras anteriores. Só quem desconheça os fundamentos da composição musical crerá que o valor de uma obra está na “novidade” da matéria melódica sobre a qual se baseia sua elaboração. c) tal noção de “materiais de projeto” – constituídos, como já se viu, por arquitetura própria ou alheia, porém adequada – complementares aos “materiais de construção” resulta, enfim, em um ensino de arquitetura entendido como (re)construção de obras exemplares, correspondentes ao ciclo cultural vigente no momento em que se projeta; no nosso caso, a arquitetura moderna. Tive ocasião de discorrer longamente sobre esse modo de propor a aprendizagem de projetos na última sessão do curso que ministrei nesta faculdade (2). Pude então mostrar tanto os critérios básicos em que se baseia esse modo de ensino como alguns exemplos dos resultados obtidos ao longo dos últimos dez anos. O valor desses exemplos reside muito menos na sua eventual qualidade visual do que no fato de que anunciam uma idéia de arquitetura distinta da que é hoje habitual nas escolas; uma arquitetura que trata de recuperar a competência técnica que garanta sua credibilidade construtiva – material e formal – e, com isso, seu sentido histórico, isto é, a qualidade artística e a utilidade social que possuiu ao longo dos séculos. d) O fato de que um projeto de arquitetura responda a um “conceito”, o que quer que seja o que se entenda por isso – desde a mera expressão de um desejo até a fabulação mais fantasiosa – , não constitui uma qualidade do mesmo. A consistência formal é o atributo essencial do projeto autêntico; uma forma que não pode ser reduzida – como se costuma fazer – aos atributos figurativos do artefato.
A forma artística é a manifestação visual da configuração interna das coisas, seja um edifício, uma paisagem ou uma sonata. Em conseqüência, uma árvore não tem forma, apenas configuração. No entanto, a representação que dela faz um pintor competente tem forma; uma representação que somente será uma obra de arte se transcender as características “dessa árvore” para aludir às características da “árvore” em geral.
Por definição, a prática da arte atende ao que é peculiar desde uma perspectiva sistemática voltada para a universalidade: nisso reside a abstração essencial da arte e, em particular, da arte moderna.
Pois bem, a única via de acesso à forma com a qual, no projeto, se aborda um programa específico, é a visão; daí que a qualidade essencial da arquitetura seja de natureza visual. O único modo, portanto, de superar o conceitualismo que tem contribuído tão eficazmente para a decadência da arquitetura das últimas décadas é cultivando a mirada ou, o que é o mesmo, adquirindo sentido da forma, isto é, ser capaz de captar relações formais onde habitualmente só se percebe imagens.
A convicção que pode ser percebida nas minhas palavras não se deve à pressão de um impulso doutrinário congênito, nem a um excesso de confiança na minha capacidade de convencer. Ela se deve ao fato de que falo de idéias que se referem a uma realidade que conheço por meio da minha experiência pessoal, não a meras hipóteses ou palavras de ordem aprendidas dos livros. Não se trata, pois, de simples conjecturas, mas de modos de proceder testados amplamente, tanto na prática do projeto como na docência.
Gostaria de concluir falando de dois projetos realizados no Laboratório onde projeto (3), e a explicar os aspectos da sua concepção e desenvolvimento que tem a ver com as idéias aqui transmitidas na forma de propostas. Trata-se de duas situações de projeto muito diferentes, não tanto no seu programa funcional quanto na sua localização.
No primeiro caso, o da Prefeitura de Benissa, o lugar é claramente urbano e o programa é o típico para a administração de uma cidade de 13.000 habitantes acrescido de um pequeno auditório e dois edifícios anexos, um destinado a serviços administrativos e outro a habitação para funcionários. A concepção e o desenvolvimento desses edifícios se baseou na noção de “materiais de projeto” que acabo de propor, matérias que são tanto oriundos da minha experiência anterior como tomados do British Art Center (New Haven, EUA,1969–1977), de Louis Kahn.
O uso de materiais próprios tem a ver com o propósito – a meu juízo razoável – de aproveitar a experiência, atitude que caracteriza tanto aos arquitetos que mais admiro como a profissionais de qualquer ramo dotados de um mínimo de sentido comum. É, provavelmente, o recurso ao sistema de vedação do British Art Center, de Louis Kahn, o que melhor ajuda a entender a noção de projeto que esbocei na primeira parte deste texto.
No segundo caso se trata de um Centro Escolar de Ensino Secundário (4), situado em um entorno singular: na ladeira de uma montanha, em cujo lado oposto se encontra um pequeno povoado de estrutura medieval, que conserva suas muralhas e as características genuínas da sua ordenação original. Neste caso, a ausência de referencias, tanto na nossa obra como em outras arquiteturas conhecidas, nos obrigou a propor o projeto desde o princípio. Recorremos ao arquétipo formal da construção escalonada como um modo de adaptar a escola a uma topografia determinada por um forte declive e, ao mesmo tempo, recuperar um critério formativo que caracteriza a topografia dessa região. Para o resto, tivemos que contar com a experiência derivada da nossa prática profissional para resolver os problemas derivados dessa proposição.
Os dois projetos estão vinculados por uma idéia forte de arquitetura, apoiada em uma noção de projeto como processo claramente construtivo, isto é, que se propõe a ordenar e inter-relacionar materiais e elementos, de maneira que a consistência formal da obra transcenda – mas incorpore – a lógica material e funcional do edifício.
Por último, a ênfase no aspecto visual – que, a meu juízo, se vê com clareza nos dois casos – está manifesta no meu modo de olhá-los; tanto nas simulações em 3D como, sobretudo, nas fotografias. Não só a quantidade mas também o tipo de vistas com as quais descrevo o centro escolar, manifestam claramente a relevância do aspecto visual, tanto no meu modo de entender a arquitetura como na minha maneira de enfrentar o projeto. Não é tanto o propósito de descrever o objeto o que estimula a minha mirada quanto a intenção de mostrar os critérios formais em que se baseia a construção, de modo que a materialidade da obra aparece sempre tensionada pela consistência visual da mirada. Desse modo, cada imagem é um novo projeto que tem uma consistência formal própria a qual não nega a da obra mas a transcende, abrangendo valores que tendem à universalidade. Assim, o processo construtivo – criativo é um termo impróprio, além de ter sido degradado pelas revistas da moda e pelas séries de televisão – não termina: enquanto houver um sujeito capaz de reconhecer a forma, haverá um olho que, ao mesmo tempo em que percebe a realidade existente, constrói uma realidade nova.
notas
1
Texto da Conferência inaugural do 2º semestre de 2007, proferida em 03 de setembro de 2007 no Salão de Atos da Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2
[Nota do tradutor] A faculdade à qual se refere o autor é a Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde Helio Pinon ministrou, de 27 a 31/8/2007, o curso intitulado Projeto, modernidade, aprendizagem.
3
[Nota do tradutor] Laboratório de Arquitectura, ETSAB, UPC, Barcelona, liderado por Helio Pinon e Nicanor Garcia.
4
[Nota do tradutor] A escola foi construída em Morella, província de Castellon, no leste da Espanha.
sobre o autor
Helio Piñón (Onda, Espanha, 1942) é arquiteto e Doutor em Arquitetura pela Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona (ETSAB-UPC), onde desde 1980 ocupa a cátedra de Projetos e. atualmente, dirige o Laboratório de Arquitetura. Foi sócio do escritório Viaplana e Piñón, responsável pela Plaza dels Països Catalans e pelo Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, ambos em Barcelona. Foi Vice-Reitor para Assuntos Culturais da Universidade Politécnica da Catalunha – UPC. É autor, dentre outros, dos livros "Arquitectura de las neovanguardias" (1989), "Curso básico de projetos" (1998), "Miradas intensivas" (1999) e "Paulo Mendes da Rocha" (2002), este último pela Romano Guerra Editora
Tradução de Edson Mahfuz